Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa
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    Sumários do STJ (Boletim) - Criminal
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ACSTJ de 22-10-2008
 Admissibilidade de recurso Aplicação da lei no tempo Direitos de defesa Direito ao recurso Reenvio do processo Âmbito do recurso Erro notório na apreciação da prova In dubio pro reo Vícios do art. 410.º do Código de Processo Penal Declarações do
I -Numa situação em que: -o arguido foi condenado na 1.ª instância, por acórdão 09-06-2005, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art. 21.º, n.º 1, do DL 15/93, de 22-01, numa pena de 5 anos e 6 meses de prisão; -por acórdão da Relação, de 08-03-2006, foi detectado na decisão do tribunal colectivo o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e, consequentemente, foi determinado o reenvio parcial do processo, julgando-se prejudicado o conhecimento das demais questões; -após novo julgamento, o arguido foi condenado, pela prática do referido crime, na pena de 5 anos e 5 meses de prisão; -o Tribunal da Relação, por acórdão de 08-11-2007, proferido em recurso, confirmou tal condenação; é inequívoco que, à luz do art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP, na redacção introduzida pela Lei 48/2007, de 29-08, não é admissível recurso para o STJ do acórdão da Relação, uma vez que foi aplicada ao arguido uma pena de prisão inferior a 8 anos (era-o, contudo, face à anterior redacção do preceito, por se estar perante crime punível com pena de prisão superior a 8 anos).
II - Como tem sido decidido nesta 3.ª Secção, em sede de admissibilidade de recursos, será de aplicar o anterior regime sempre que a decisão recorrida proferida na 1.ª instância o tenha sido em data anterior a 15-09-2007, por assim se mostrarem acautelados os direitos do arguido.
III - No caso concreto, se não tivesse ocorrido o referido vício o acórdão da Relação (de 08-032006) teria cumprido a vinculação temática proposta pelo recurso e o arguido teria visto, desde logo, a sua impugnação plenamente apreciada pelo Tribunal da Relação, o que lhe permitiria recorrer de seguida para o STJ. Ou seja, o arguido em nada contribuiu para a situação de não conhecimento global atempado, imediato, do seu recurso, não devendo, por isso, ver-se expropriado do seu direito a uma apreciação pelo tribunal superior da sua discordância em relação ao decidido na 1.ª instância.
IV - No caso de reenvio parcial do processo para realização de novo julgamento pelo tribunal colectivo – como ocorre na situação em apreço –, o recurso a interpor do acórdão proferido pela 1.ª instância há-de circunscrever-se a questões novas relacionadas com o objecto deste segundo julgamento, para além daquelas que, embora tendo sido invocadas no primitivo recurso, não tivessem sido apreciadas no primeiro acórdão da Relação, designadamente por o seu conhecimento ter ficado prejudicado pela procedência do vício constatado.
V - O erro notório na apreciação da prova, vício previsto no art. 410.º, n.º 2, do CPP, não se confunde com errada apreciação e valoração das provas. Tendo como denominador comum a sindicância da matéria de facto, são muito diferentes na sua estrutura, alcance e consequências. Aquele examina-se, indaga-se, através da análise do texto; esta, porque se reconduz a erro de julgamento da matéria de facto, analisa-se em momento anterior à produção do texto, na ponderação conjugada e exame crítico das provas produzidas, de que resulta a formulação de um juízo que conduz à fixação de uma determinada verdade histórica que é vertida no texto; daí que a exigência de notoriedade do vício se não estenda ao processo cognoscitivo/valorativo cujo resultado vem a ser inscrito no texto.
VI - O princípio in dubio pro reo, sendo um princípio fundamental em matéria de apreciação e valoração da prova, diz respeito à matéria de facto.
VII - Se o recurso da matéria de facto que pende no Tribunal da Relação se mostra restrito aos vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP, a violação daquele princípio deve resultar do texto da decisão recorrida em termos análogos aos dos referidos vícios. Ou seja, só ocorre quando, seguindo o processo decisório evidenciado através da motivação da convicção, se chegar à conclusão de que o tribunal, tendo ficado num estado de dúvida, decidiu contra o arguido ou quando a conclusão retirada pelo tribunal em matéria de prova se materialize numa decisão contra o arguido que não seja suportada de forma suficiente – de modo a não deixar dúvidas irremovíveis quanto ao seu sentido – pela prova em que assenta a convicção.
VIII - Ocorrendo um dos vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP, o tribunal ad quem só deverá reenviar os autos para novo julgamento se não lhe for possível proferir decisão sobre a causa.
IX - As declarações de co-arguido, sendo um meio de prova legal, cuja admissibilidade se inscreve no art. 125.º do CPP, podem e devem ser valoradas no processo. O depoimento incriminatório de co-arguido está sujeito às mesmas regras de outro e qualquer meio de prova, isto é, aos princípios da investigação, da livre apreciação e do in dubio pro reo. Assegurado o funcionamento destes e o exercício do contraditório, nos termos preconizados pelo art. 32.º da CRP, nenhum argumento subsiste contra a validade de tal meio de prova. Vai neste sentido, aliás, a jurisprudência dominante deste Supremo Tribunal.
X - Mas, naturalmente, a credibilidade do depoimento incriminatório do co-arguido está na razão directa da ausência de motivos de incredibilidade subjectiva, o que, na maioria dos casos, se reconduz à inexistência de motivos espúrios e à existência de uma autoinculpação – cf. Acs. do STJ de 12-03-2008, Proc. n.º 694/08, e de 04-06-2008, Proc. n.º 1126/08, ambos da 3.ª Secção.
XI - Por outro lado, está «vedado ao tribunal valorar as declarações de um co-arguido, proferidas em prejuízo de outro, quando, a instâncias deste, o primeiro se recusa a responder, no exercício do direito ao silêncio (cf. Acs. do TC n.º 524/97, de 14-07-1997, DR II, de 27-11-1997, e do STJ de 25-02-1999, CJSTJ, VII, tomo 1, pág. 229).
XII - E é exactamente esse o sentido da alteração introduzida pelo n.º 4 do art. 345.º do CPP quando proíbe a utilização, como meio de prova, das declarações de um co-arguido em prejuízo de outro nos casos em que aquele se recusar a responder às perguntas que lhe forem feitas pelo juiz ou jurados ou pelo presidente do tribunal a instâncias do Ministério Público, do advogado do assistente ou do defensor oficioso» – cf. Ac. do STJ de 12-032008, Proc. n.º 694/08 -3.ª.
XIII - O tráfico de estupefacientes tem sido englobado na categoria do crime “exaurido”, “de empreendimento” ou “excutido”, que se vem caracterizando como um ilícito penal que fica perfeito com o preenchimento de um único acto conducente ao resultado previsto no tipo.
XIV - Dito de outra forma, o resultado típico alcança-se logo com aquilo que surge por regra como realização inicial do iter criminis, tendo em conta o processo normal de actuação, envolvendo droga que se não destine exclusivamente ao consumo. A previsão molda-se, na verdade, em termos de uma certa progressividade, no conjunto dos diferentes comportamentos contemplados, que podem ir de uma mera detenção à venda propriamente dita.
XV - A consumação exige que se dê por provada, pelo menos, uma das ocorrências mencionadas no preceito em causa: cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, pôr à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fazer transitar, ou ilicitamente deter produto estupefaciente. Assim, a consumação verifica-se com a comissão de um só acto de execução, ainda que sem se chegar à realização completa e integral do tipo legal pretendido pelo agente.
XVI - Conforme se afirmou no Ac. do TC n.º 262/01, de 30-05-2001, «o preceito encontra o seu fundamento na particular perigosidade das condutas que justifica uma concepção ampla de tráfico, desligada da obtenção do resultado da transacção. Porque se trata de condutas que concretizam de modo particularmente intenso o perigo inerente à actividade relacionada com o fornecimento de estupefacientes, o legislador antecipa a tutela penal relativamente ao momento da transacção». E acrescenta, «A não punição da tentativa tem por justificação o facto de este crime não ser um crime de dano nem de resultado efectivo. Assim, a não punição de tentativa é apenas consequência de não se pretender antecipar mais a tutela penal já suficientemente antecipada na descrição típica».
XVII - Comete um crime de tráfico de estupefacientes aquele (A) que encomenda a terceiro (B) 90 g de cocaína, desencadeando uma actividade por parte deste último, que se traduziu num contacto com um outro indivíduo (C), que por sua vez solicitou o produto estupefaciente a um outro, que lho fez chegar, e que o C se propunha entregar a B, com vista a ser por este entregue ao A, o que nunca chegou a acontecer por tal substância ter sido apreendida ao C.
XVIII - Na verdade, com a encomenda o arguido fez transitar a cocaína referida e com isso consumado ficou o crime, pouco importando a sua motivação, pois a lesão efectiva que viesse a ter lugar não fazia parte do tipo substanciado neste específico iter, erigido em conduta bastante e suficiente para configurar o delito pelo perigo que ele próprio envolve de aquele produto estupefaciente vir a ser traficado, no sentido de introduzido no circuito de distribuição final.
XIX - Neste caso, a imagem global do facto, a avaliação da conduta do arguido no contexto em que operou, não revela uma projecção menor de ilicitude, tendo por referência os pressupostos que enquadram o tipo base do art. 21.º do DL 15/93, de 22-01.
XX - Em sede de verificação dos pressupostos da reincidência, a declaração de que a anterior condenação sofrida pelo arguido não lhe serviu de suficiente advertência contra a prática de novos crimes, mais do que um facto, é uma conclusão a extrair de outros factos. Neste domínio, é jurisprudência dominante que a referida circunstância qualificativa não opera como mero efeito automático das anteriores condenações (suposta a sua correcta narrativa), não sendo suficiente erigir a história delitual do arguido em pressuposto automático da agravação.
XXI - No condicionalismo da parte final do n.º 1 do art. 75.º do CP encontra-se espelhada a essência da reincidência, sendo exactamente face à necessária análise casuística que se distinguirá o reincidente do multiocasional. XXII -A pluriocasionalidade verifica-se quando a reiteração na prática do crime seja devida a causas meramente fortuitas ou exclusivamente exógenas, que não se radicam na personalidade do agente, em que não se está perante a formação paulatina do hábito enraizada na personalidade, tratando-se antes de repetição, de renovação da actividade criminosa, meramente ocasional, acidental, esporádica, em que as circunstâncias do novo crime não são susceptíveis de revelar maior culpabilidade, em que desaparece a indicação de especial perigosidade, normalmente resultante da reiteração de um crime.
Proc. n.º 215/08 -3.ª Secção Raul Borges (relator) Fernando Fróis