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    Sumários do STJ (Boletim) - Criminal
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ACSTJ de 22-10-2008
 Competência do Supremo Tribunal de Justiça Vícios do art. 410.º do Código de Processo Penal Conclusões da motivação Rejeição de recurso Repetição da motivação Prova indiciária Regras da experiência comum Intenção de matar Homicídio qualificado Mo
I -O recurso para o STJ de acórdão proferido, em recurso, pela Relação, terá que visar exclusivamente o reexame da decisão recorrida (a da Relação) em matéria de direito (com exclusão, por isso, dos eventuais vícios, processuais ou de facto, do julgamento de 1.ª instância), embora se admita que, para evitar que a decisão de direito se apoie em matéria de facto ostensivamente insuficiente, fundada em erro de apreciação ou assente em premissas contraditórias detectadas por iniciativa do Supremo Tribunal, para além do que tenha de aceitar-se já decidido definitivamente pela Relação, aquele se abstenha de conhecer do fundo da causa e ordene o reenvio nos termos processualmente estabelecidos.
II - Se o recorrente, nas conclusões que formula, discorda da factualidade assente, nomeadamente de ter sido considerada provada a intenção de matar, encontramo-nos no domínio da matéria de facto, cujo conhecimento está excluído do poderes do STJ.
III - O recurso, enquanto remédio jurídico, se intentado de uma decisão da Relação, há-de dirigir-se aos seus fundamentos, em ordem a abalá-los e a conseguir uma solução para o erro decisório, seja ele de mérito ou procedimental.
IV - A repetição das conclusões ante as instâncias de recurso, particularmente das apresentadas na Relação perante o STJ, ignorando o teor da decisão proferida pelo tribunal de 2.ª instância, a qual subsiste inimpugnada e não contrariada em ordem à reparação do erro, conduz à manifesta improcedência do recurso, tudo se passando como se, por falta de conclusões, a motivação estivesse ausente.
V - É evidente que tal conclusão não implica um juízo valorativo sobre a questão de repetição junto do STJ de linha argumentativa explanada junto do Tribunal da Relação. As questões podem ser legitimamente de novo suscitadas e repetidas, ainda que com os mesmos fundamentos aduzidos no anterior recurso, de cuja improcedência a Relação não convenceu o recorrente. Porém, em tais situações, entende-se que a motivação de qualquer recurso deverá incidir o seu esforço argumentativo sobre pontos concretos da fundamentação da decisão recorrida que, no entender do recorrente, sejam criticáveis, sendo certo que a decisão recorrida é o acórdão do Tribunal da Relação.
VI - O meio probatório por excelência a que se recorre na prática para determinar a ocorrência de processos psíquicos sobre os quais assenta o dolo não são as ciências empíricas, nem tão-pouco a confissão auto-inculpatória do sujeito activo. As enormes dúvidas que suscita a primeira e a escassa incidência prática da segunda levam a que a maioria das situações acabe por se resolver através de um terceiro meio de prova: a chamada prova indiciária ou circunstancial, plasmada nos juízos de inferência. A conclusão é então imposta pela aplicação das regras da experiência – premissa maior – aos factos previamente provados e que constituem a premissa menor.
VII - Não faz a nossa lei processual penal qualquer referência a requisitos especiais em sede de prova indiciária. O funcionamento e creditação desta está dependente da convicção do julgador, que, sendo uma convicção pessoal, deverá ser sempre objectivável e motivável.
VIII - No caso vertente, estando questionada a demonstração da intenção de matar, é essencial a análise da decisão recorrida para que se possa concluir sobre o processo lógico que foi seguido para considerar aquela provada, ou seja, quais os factos em que a mesma se baseia e as inferências que permitem a respectiva conclusão.
IX - Merece todo o aplauso e não oferece qualquer reparo a justificação de que, partindo da «conjugação de depoimentos que refere, entre si e com as aludidas fotografias, ficou o tribunal com a plena convicção de que o arguido N, quando acelerou o veículo que tripulava e atropelou CM, não podia ter deixado de o ver, estava perfeitamente ciente da presença daquele a escassa distância da viatura, bem sabendo que assim iria passar com esta por cima do corpo dele. Nessa parte e pelo que se tentou sumariamente explanar, as declarações – claramente desculpabilizantes e incoerentes do arguido N – não lograram convencer, minimamente, o tribunal e resultaram completamente infirmadas pelos meios de prova acabados de referir. Mais se entendeu que quem direcciona um veículo com as dimensões da Iveco Daily contra o corpo de uma pessoa que está mesmo junto dele, nas circunstâncias em que o aludido arguido o fez, tem intenção (pois não pode deixar de ter) de matar essa pessoa. Na verdade, ninguém pode pretender não configurar que ao acto de passar com tal veículo por cima do corpo de um ser humano se siga a morte deste, como consequência necessária e previsível daquele acto. Aliás, ao que se perspectiva, o acto de atropelar alguém naquelas circunstâncias é mais idóneo a provocar a morte da vítima do que grande parte dos ataques que se possam imaginar com arma branca ou mesmo com arma de fogo. Ficou, pois, o tribunal plenamente convencido, após ter analisado e ponderado os mencionados meios de prova e de haver valorado os factos objectivos que deles emergem, à luz das regras da experiência comum, que, da parte do arguido, houve, efectivamente, intenção de matar CM, não como primordial escopo da sua actuação – que visava, confessada e logicamente, em primeira linha, não ser apanhado, pôr-se em fuga –, mas como consequência necessária para alcançar aquele seu primeiro objectivo».
X - Motivo fútil é o motivo de importância mínima; será também o motivo “frívolo, leviano, a ninharia que leva o agente à prática desse grave crime, na inteira desproporção entre o motivo e a extrema reacção homicida”; o que se apresenta notoriamente inadequado do ponto de vista do homem médio em relação ao crime de que se trate; o que traduz uma desconformidade manifesta entre a gravidade e as consequências da acção cometida e o que impeliu o agente a essa comissão; o que acentua o desvalor da conduta por via do desvalor daquilo que impulsionou a sua prática.
XI - O vector fulcral que identifica o “motivo fútil” não é tanto aquele que, de tão pouco ou imperceptível relevo, quase pode nem chegar a ser motivo, mas sim o que realce a inadequação e faça avultar a desproporcionalidade entre o que impulsionou a conduta desenvolvida e o grau de expressão criminal com que ela se objectivou.
XII - Resultando demonstrado, no caso concreto, que o que estava em causa era a possibilidade de o arguido ser detectado e responsabilizado pela subtracção de combustível, ou seja, uma “bagatela penal”, e que tal circunstância não evitou que, perante a possibilidade de ser interceptado, tivesse optado pela utilização do veículo que conduzia como instrumento, conduzindo-o por forma a violar o mais essencial de todos os bens, a vida de quem apenas tentava proteger a sua propriedade perante a sua actuação ilícita, é patente que a conduta do arguido se inscreve numa olímpica indiferença perante a vida de terceiro, com o intuito de fugir à responsabilidade pelos seus actos, sendo intensa a culpa, bem como o grau de censura e reprovação que aquela merece, pelo que não oferece qualquer crítica a qualificação do crime de homicídio.
Proc. n.º 3274/08 -3.ª Secção Santos Cabral (relator) Oliveira Mendes