ACSTJ de 15-10-2008
Recurso penal Recurso da matéria de facto Acórdão da Relação Fundamentação Exame crítico das provas Duplo grau de jurisdição Omissão de pronúncia Nulidade da sentença Conhecimento oficioso Livre apreciação da prova Princípio da imediação In dub
I -Os recursos são remédios jurídicos que se destinam a despistar e corrigir erros in judicando ou in procedendo, reexaminando decisões proferidas por jurisdição inferior. II - Ao tribunal superior pede-se que aprecie a decisão à luz dos dados que o juiz recorrido possuía. Para tanto, aproveita-se a exigência dos códigos modernos, inspirados nos valores democráticos, no sentido de que as decisões judiciais, quer em matéria de facto, quer em matéria de direito, sejam fundamentadas. III - Por força do art. 205.º, n.º 1, da CRP, as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei. Por sua vez, o art. 374.º, n.º 2, do CPP, sobre os requisitos da sentença, determina que ao relatório se segue a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal. IV - O dever constitucional de fundamentação da sentença basta-se, assim, com a exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, bem como com o exame crítico das provas que serviram para fundar a decisão, sendo que tal exame exige não só a indicação dos meios de prova que serviram para formar a convicção do tribunal, mas também os elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do Tribunal se formasse em determinado sentido, ou a que este valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência (Ac. do STJ de 14-06-2007, Proc. n.º 1387/07 -5.ª). V - Com a exigência de fundamentação consegue-se que as decisões judiciais se imponham não em razão da autoridade de quem as profere, mas antes pela razão que lhes subjaz (Marques Ferreira, Jornadas de Direito Processual Penal, pág. 230). Ao mesmo tempo, permite-se a plena observância do princípio do duplo grau de jurisdição, podendo, desse modo, o tribunal superior verificar se, na sentença, se seguiu um processo lógico e racional de apreciação da prova, ou seja, se a decisão recorrida não se mostra ilógica, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, pág. 294), sem olvidar que, face aos princípios da oralidade e da imediação, é o tribunal de 1.ª instância aquele que está em melhores condições para fazer um adequado uso do princípio da livre apreciação da prova (Ac. do STJ de 17-052007, Proc. n.º 1608/07 -5.ª). VI - Como decidiu este Supremo Tribunal (Ac. de 03-10-2007, Proc. n.º 07P1779 -3.ª), a fundamentação da sentença em matéria de facto consiste na indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, que constitui a enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção. VII- A obrigatoriedade de indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal e do seu exame crítico destina-se a garantir que na sentença se seguiu um procedimento de convicção lógico e racional na apreciação das provas, e que a decisão sobre a matéria de facto não é arbitrária, dominada pelas impressões, ou afastada do sentido determinado pelas regras da experiência. A integração das noções de “exame crítico” e de “fundamentação” de facto envolve a implicação, ponderação e aplicação de critérios de natureza prudencial que permitam avaliar e concluir se as razões de uma decisão sobre os factos e o processo cognitivo de que se socorreu são compatíveis com as regras da experiência da vida e das coisas e com a razoabilidade das congruências dos factos e dos comportamentos. VIII - Mas a lei não exige que em relação a cada facto se autonomize e substancie a razão de decidir, como também não exige que em relação a cada facto fonte de prova se descreva como a sua dinamização se desenvolveu em audiência, sob pena de se transformar o acto de decidir num tarefa impossível (Ac. do STJ de 30-06-1999, in SASTJ, n.º 32, pág. 92). IX - O art. 379.º do CPP determina que é nula a sentença quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento (n.º 1, al. c)), sendo que as questões impostas à apreciação do julgador são as suscitadas pelos sujeitos processuais ou as de conhecimento oficioso. X - A omissão de pronúncia traduz-se num non liquet em relação ao objecto contestado, à questão ou situação colocada, legalmente relevante, e que, por isso, tem de ser expressamente decidida. Mas, como bem salientou o acórdão deste Supremo Tribunal de 23-05-2007 (Proc. n.º 1405/07 -3.ª), a pronúncia cuja omissão determina a consequência prevista no art. 379.º, n.º 1, al. c), do CPP – a nulidade da sentença (vício de conhecimento oficioso pelo tribunal de recurso) – deve incidir sobre problemas e não sobre motivos ou argumentos; é referida ao concreto objecto que é submetido à cognição do tribunal e não aos motivos e razões alegadas. XI - Relativamente aos tribunais de recurso, a norma do art. 374.º, n.º 2, do CPP não se aplica em toda a sua extensão, nomeadamente não faz sentido a aplicação da parte final de tal preceito (exame crítico das provas que serviram para formar a livre convicção do tribunal) quando referida a acórdão confirmatório proferido pelo Tribunal da Relação ou a acórdão do STJ funcionando como tribunal de revista. Se a Relação, reexaminando a matéria de facto, mantém a decisão da 1.ª instância, é suficiente que do respectivo acórdão passe a constar esse reexame e a conclusão de que, analisada a prova respectiva, não se descortinaram razões para exercer censura sobre o decidido (Ac. do STJ de 13-11-2002, in SASTJ, n.º 65, pág. 60). XII - Aliás, como se elucida no acórdão deste Supremo Tribunal de 14-06-2007 (Proc. n.º 1387/07 -5.ª), se a Relação sindicou todo o processo, fundamentou a decisão sobre a improcedência do recurso em matéria de facto nas provas examinadas no processo, acolhendo, justificando-o na parte respectiva, a fundamentação do acórdão do tribunal colectivo, que se apresenta como detalhada, então as instâncias cumpriram suficientemente o encargo de fundamentar, sendo que a discordância quanto aos factos apurados não permite afirmar que não foi (ou não foi suficientemente) efectuado o exame crítico pelas instâncias. XIII - A livre apreciação da prova não se confunde com a apreciação arbitrária da mesma, nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova; trata-se antes de uma liberdade para a objectividade. Daí a íntima ligação entre o princípio da livre apreciação da prova e o da fundamentação e, através desta, a possibilidade/dever de ampla, efectiva e substancial intervenção do tribunal de recurso, verificando se as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, susceptíveis de objectivar a apreciação dos factos, foram observados, a respeito de cada um deles, na motivação apresentada pelo tribunal recorrido. XIV - Sendo a decisão impugnada, no recurso para o STJ, a da Relação, e a fundamentação em causa a desta última e não a da 1.ª instância, não é exigível ao tribunal de recurso que tenha de «refazer e deixar expresso todo o processo de avaliação e de ponderação dos meios de prova levada a cabo pela decisão de 1.ª instância, cuja correcção apreciava» (Ac. do TC n.º 387/05, DR II Série, de 19-10-2005). XV- O princípio da imediação não pode constituir obstáculo à efectivação do recurso em matéria de facto, por aí intervirem elementos não racionalmente explicáveis e insusceptíveis de ser importados para a gravação da prova. Para registar os «elementos subtis» que intervêm na formação da convicção do tribunal é que se exige que, na fundamentação da decisão, se faça o exame crítico das provas. XVI - A violação do princípio in dubio pro reo – que respeita à matéria de facto e é um princípio fundamental em matéria de apreciação e valoração da prova – só pode ser sindicada pelo STJ dentro dos seus limites de cognição, devendo, por isso, resultar do texto da decisão recorrida em termos análogos aos dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, ou seja, quando, seguindo o processo decisório evidenciado através da motivação da convicção, se chegar à conclusão de que o tribunal, tendo ficado num estado de dúvida, decidiu contra o arguido, ou quando a conclusão retirada pelo tribunal em matéria de prova se materialize numa decisão contra o arguido que não seja suportada de forma suficiente, de modo a não deixar dúvidas irremovíveis quanto ao seu sentido, pela prova em que assenta a convicção. XVII - O juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador (art. 163.º, n.º 1, do CPP). E, sempre que a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, deve aquele fundamentar a divergência (n.º 2 do preceito). Face ao regime vigente, se o julgador acatar o juízo técnico, científico ou artístico dos peritos, inerente à prova pericial, nada terá que dizer. Se o não acatar, e dele divergir, terá que fundamentar a sua divergência (Ac. deste STJ de 07-112007, Proc. n.º 3986/07 -3.ª). XVIII - Porém, a factualidade que fundamentou o parecer está sujeita à livre apreciação pelo julgador, de harmonia com os parâmetros do art. 127.º do CPP. Assim, se a valoração da prova contrariar os dados de facto que serviram de alicerce ao parecer – como ocorreu no caso concreto –, a eficácia deste torna-se inoperante, pela invalidade que lhe subjaz advinda da realidade de facto apurada contrária à dos seus pressupostos factuais.
Proc. n.º 2864/08 -3.ª Secção
Pires da Graça (relator)
Raul Borges
Pereira Madeira
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