ACSTJ de 15-10-2008
Acórdão do tribunal colectivo Recurso da matéria de direito Competência do Supremo Tribunal da Justiça Antecedentes criminais Contradição na fundamentação de facto Sanação Medida concreta da pena Fundamentação Homicídio qualificado Tentativa Pre
I -Estando em causa a reapreciação de acórdão final de tribunal colectivo, visando o recorrente a reapreciação do decidido apenas em sede de matéria de direito, atento o disposto nos arts. 26.º da LOFTJ (Lei 3/99, de 13-01, ainda em vigor, face ao art. 187.º, n.º 1, da Lei 52/2008, de 28-08) – que estabelece que, fora dos casos previstos na lei, o STJ apenas conhece de matéria de direito – e 432.º, al. d), e 434.º do CPP, bem como a explicitação constante do acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 8/2007, de 1403-2007, lavrado no Proc. n.º 2792/06 -5.ª (DR, I Série, de 04-06-2007), é competente para conhecer do recurso o STJ. II - A factualização da vida criminal pregressa do recorrente encerra contradição nos termos, se reportada à data da decisão, sendo este o momento a atender para o efeito (cf. art. 369.º, n.º 1, do CPP): no ponto de facto n.º 15 deu-se por provado que o ora recorrente «não tem antecedentes criminais nem processos pendentes», e do ponto de facto provado n.º 1 resulta que o arguido foi condenado, no Proc. n.º 5…, por sentença de 11-06-2007, por factos ocorridos desde tempos após o casamento e até 04-02-2005, pela prática de crime de maus tratos ao cônjuge, em pena de 1 ano e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 anos, com sujeição a observância de condição. III - Trata-se de contradição na fundamentação de facto, integrante do vício decisório previsto no art. 410.°, n.º 2, al. b), do CPP, que se resolve dentro da lógica do processo e do próprio texto da decisão recorrida, sem necessidade de reenvio para novo julgamento. IV - Para o efeito de determinação da medida concreta ou fixação do quantum da pena que vai constar da decisão o juiz serve-se do critério global contido no art. 71.º do CP (preceito que a alteração introduzida pela Lei 59/2007, de 04-09, deixou intocado), estando vinculado aos módulos/critérios de escolha da pena constantes do preceito. V - Como se refere no acórdão de 28-09-2005, CJSTJ 2005, tomo 3, pág. 173, na dimensão das finalidades da punição e da determinação em concreto da pena, as circunstâncias e os critérios do art. 71.º do CP têm a função de fornecer ao juiz módulos de vinculação na escolha da medida da pena; tais elementos e critérios devem contribuir tanto para codeterminar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente. Observados estes critérios de dosimetria concreta da pena, há uma margem de actuação do julgador dificilmente sindicável, se não mesmo impossível de sindicar. VI - O dever jurídico-substantivo e processual de fundamentação da medida da pena (art. 375.º, n.º 1, do CPP) visa justamente tornar possível o controlo – total no caso dos Tribunais de Relação, limitado às «questões de direito» no caso do STJ, ou mesmo das Relações quando se tenha renunciado ao recurso em matéria de facto – da decisão sobre a determinação da pena. VII- A intervenção do STJ em sede de concretização da medida da pena, ou melhor, do controle da proporcionalidade no respeitante à fixação concreta da pena, tem de ser necessariamente parcimoniosa, sendo entendido de forma uniforme e reiterada que «no recurso de revista pode sindicar-se a decisão de determinação da medida da pena, quer quanto à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto da pena, salvo perante a violação das regras de experiência, ou a sua desproporção da quantificação efectuada». VIII - Estando em causa a prática pelo arguido de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, a que corresponde, nos termos dos arts. 22.º, 23.º, 73.º, n.º 1, als. a) e b), 131.º e 132.º, n.º 2, als. h) e i), do CP, a moldura abstracta de 2 anos, 4 meses e 24 dias a 16 anos e 8 meses de prisão, e tendo em consideração que: -a conduta do arguido consubstanciou a violação do dever de respeito emergente da relação conjugal, sendo o arguido casado com a assistente há mais de 26 anos, sendo esta a mãe dos seus 4 filhos, ultrapassando os contramotivos sociais e ético-jurídicos que se impõem em particular na situação conjugal; -o grau de culpa é muito elevado, na forma de dolo directo; -o modo de execução releva por o tiro ter sido disparado de surpresa quando a mulher se encontrava de costas; -são significativas as consequências da conduta do recorrente na integridade física da assistente, com as lesões produzidas, internamento no serviço de Cirurgia durante nove dias, ficando com as sequelas descritas no ponto 9 dos factos provados [vários vestígios de ferimento, com cerca de 2 mm de diâmetro, localizados do lado direito da face posterior do pescoço; múltiplos vestígios de ferimentos, com cerca de 2 mm de diâmetro, no 1/3 superior da face posterior do hemitórax direito, em maior número ao nível da omoplata direita; vários vestígios de ferimentos, com 2 mm de diâmetro, localizados à face posterior direita]; -não há notícia de qualquer arrependimento; -são intensas as necessidades de prevenção geral – o bem jurídico tutelado é a vida humana, reflectindo o crime a tutela constitucional da vida, que proíbe a pena de morte e consagra a inviolabilidade da vida humana (art. 24.º da CRP), estando-se face à mais forte tutela penal; a criminalidade violenta, em que se integra o crime de homicídio, assume alguma preocupação comunitária em crescendo, pelo que, para confiança da colectividade na lei, em nome de uma desejável tranquilidade e segurança de respeito pela vida humana, as necessidades de prevenir a prática de tal crime são muito presentes; -a conduta do arguido insere-se no âmbito de uma continuada vivência de violência doméstica; -no que toca à prevenção especial, avulta a personalidade do arguido caracterizada na decisão recorrida [sofre de adição ao álcool, o qual, quando consome em excesso, lhe provoca comportamentos violentos e determinou, ao longo da vida em comum, actos de violência contra a assistente; actualmente, no âmbito dos cuidados de saúde prisionais, segue tratamento adequado para esta dependência]; -muito embora à luz da verdade registral o arguido seja primário (no sentido de até à data do julgamento destes autos não ter sido julgado e condenado por qualquer crime), a verdade é que a vítima, mulher e mãe de 4 filhos do arguido, padecera de maus tratos por parte do arguido, entre data não apurada após o casamento e o dia 04-02-2005; -a descrição factual não permite concluir que o alcoolismo do arguido tenha diminuído a sua capacidade de entender nem de se determinar, nem que o tenha impossibilitado de agir em liberdade, voluntária e conscientemente, sendo que, conforme jurisprudência assente, estar embriagado na comissão de crimes não tem natureza atenuativa, podendo a consideração ser de sinal contrário, atento o disposto no art. 86.º do CP; -a ausência de agressão física não significa socialização do arguido, sendo certo que o arguido veio a ser condenado justamente por maus tratos, cujo conceito não se compõe apenas de agressões físicas; é de concluir que no acórdão recorrido, que fixou a pena concreta em 8 anos de prisão, foram respeitados os parâmetros legais, não se estando perante desproporção da quantificação efectuada nem face a violação de regras da experiência comum, não se justificando, pois, intervenção correctiva deste STJ.
Proc. n.º 1964/08 -3.ª Secção
Raul Borges (relator)
Fernando Fróis
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