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    Sumários do STJ (Boletim) - Criminal
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ACSTJ de 08-10-2008
 Competência do Supremo Tribunal de Justiça Medida da pena Prevenção geral Prevenção especial Tráfico de estupefacientes Medida concreta da pena Perda de bens a favor do Estado Perda de bens a favor de Região Autónoma
I -Tem havido consenso em que é susceptível de revista a correcção do procedimento ou das operações de determinação da medida da pena, o desconhecimento pelo tribunal ou a errónea aplicação dos princípios gerais de determinação, a falta de indicação de factores relevantes para aquela, ou, pelo contrário, a indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis. Não falta, todavia, quem sustente que a valoração judicial das questões de justiça ou de oportunidade estariam subtraídas ao controlo do tribunal de revista, enquanto outros distinguem: a questão do limite ou da moldura da culpa estaria plenamente sujeita a revista, assim como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto da pena, salvo perante a violação das regras de experiência, ou a desproporção da quantificação efectuada – cf. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, pág. 211, § 278, e Ac. do STJ de 15-11-2006, Proc. n.º 2555/06 -3.ª.
II - O modelo de prevenção acolhido pelo CP – porque de protecção de bens jurídicos – determina que a pena deva ser encontrada numa moldura de prevenção geral positiva e que seja definida e concretamente estabelecida também em função das exigências de prevenção especial ou de socialização, não podendo, porém, na feição utilitarista preventiva, ultrapassar em caso algum a medida da culpa.
III - Dentro desta medida de prevenção (protecção óptima e protecção mínima – limite superior e limite inferior da moldura penal), o juiz, face à ponderação do caso concreto e em função das necessidades que se lhe apresentem, fixará o quantum concretamente adequado de protecção, conjugando-o a partir daí com as exigências de prevenção especial em relação ao agente (prevenção da reincidência), sem poder ultrapassar a medida da culpa.
IV - As circunstâncias e critérios do art. 71.º do CP devem contribuir tanto para codeterminar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente.
V - Estando em causa a prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21.º, n.º 1, do DL 15/93, de 22-01, e tendo em consideração que: -a ilicitude do facto é elevada, quer pelo tempo que durou a actividade de tráfico, quer pela área geográfica envolvida, quer pela variedade dos estupefacientes e quantidades transaccionadas [a partir dos contactos que mantinha com toxicodependentes, especialmente desde o ano de 2006, o FM começou a vender cocaína, heroína e haxixe, a indivíduos que o contactavam em vários locais de P…, inicialmente no Campo de S…, posteriormente, na zona da C…, no jardim em frente ao Liceu A… e no Largo de S…, junto ao Café do P…., actividade que se desenvolveu nos anos de 2006 e 2007]; -o modo de execução revela um negócio estrategicamente definido e sedimentado, que se foi ampliando [o FM adquiria os produtos estupefacientes que vendia a vários indivíduos na Ilha… em pequenas quantidades (5 g) e, posteriormente, com os lucros da venda dos mesmos, começou a adquirir quantidades cada vez maiores (10 g), especialmente heroína e cocaína; os produtos estupefacientes adquiridos pelo arguido eram posteriormente divididos em pequenas doses (pacotes de 0,5 g de heroína ou de cocaína e palitos de haxixe), que vendia a consumidores que o contactavam nos locais acima indicados, pagando os consumidores € 50 por cada pacote de heroína ou de cocaína com 0,5 g e € 15 por cada panfleto dos mesmos produtos, e € 5 por cada palito de haxixe; os indivíduos que pretendiam adquirir produtos estupefacientes ao FM telefonavam-lhe ou mandavam-lhe uma mensagem para o telemóvel, através do qual combinavam os locais de encontro para a entrega dos produtos estupefacientes e o pagamento dos mesmos]; -foram apreendidos ao arguido dois telemóveis, usados na actividade referida; -é patente a intensidade do dolo [o FM conhecia as características ilícitas das substâncias que adquiriu, possuiu, cedeu ou vendeu a terceiros e, ainda assim, quis adquirir, possuir, ceder e vender tais substâncias ilícitas; sabia que não se encontrava autorizado a deter a navalha que lhe foi apreendida; e sabia ainda que as suas condutas eram proibidas por lei e criminalmente punidas]; -são graves as consequências da conduta do arguido, gravidade expressa na regularidade da actividade de venda [no período de Outubro a Dezembro de 2006, o FM vendeu ao NM um a dois panfletos de heroína por dia, ao preço de € 15, o que aconteceu quase todos os dias, num total de cerca de 50 panfletos; ao RP vendeu, em vários locais da cidade, entre os meses de Abril e Maio de 2007, todos os dias, cocaína a € 15 o «panfleto» e «pacotes» de meio grama, a € 50]; -o arguido também vendeu heroína em troca de objectos em ouro, que posteriormente revendeu a pessoas que não foi possível identificar; -o dinheiro que o FM auferiu com a venda de produtos estupefacientes ou era de imediato gasto nas necessidades diárias de alimentação do arguido ou era usado para adquirir mais produtos estupefacientes; -confessou parte dos factos, o que tem fraca relevância, dado que não vem provado que a sua confissão fosse essencial ao apuramento dos mesmos, e não garante qualquer intenção de não reincidência, tanto mais que não vem provado o arrependimento; -veio repatriado do Canadá e viveu maritalmente com MM; trabalhou para AB durante cerca de 4 meses, entre Agosto e Novembro de 2006, como servente de pedreiro, auferindo € 25 por dia, após o que desistiu de trabalhar; -a prevenção geral ao nível do combate ao crime de tráfico de estupefacientes é especialmente intensa, face à disseminação da actividade ilícita do tráfico por todo o mundo, com prejuízo para incolumidade pública e sanidade da estirpe; -as exigências de prevenção especial reclamam adequada socialização do arguido; -a culpa do arguido é elevada, pois que fazia modo de vida da actividade do tráfico, apesar de conhecer a ilicitude da sua conduta; -o facto de os rendimentos obtidos com a venda da droga não poderem ser considerados avultados, nem ter enriquecido com os mesmos, não diminui a culpa do arguido perante a gravidade e circunstâncias do crime; é de concluir que, embora o arguido não tivesse antecedentes criminais, a pena que lhe foi aplicada, de 5 anos e 3 meses de prisão, é adequada ao restabelecimento da norma legal violada e às exigências de socialização do arguido, e contém-se no quadro da culpa, não sendo, por isso, excessiva nem desproporcional.
VI - O art. 39.º do DL 15/93, de 22-01, refere-se ao destino dos bens declarados perdidos a favor do Estado, que revertem em determinada percentagem para a entidade coordenadora do Programa Nacional do Combate à Droga (destinando-se ao apoio de acções, medidas e programas de prevenção do consumo de droga), para o Ministério da Saúde (visando a implementação de estruturas de consulta, tratamento e reinserção de toxicodependentes), e para os organismos do Ministério da Justiça (visando o tratamento e reinserção social dos toxicodependentes em cumprimento de medidas penais ou tutelares).
VII - Desse preceito não resulta que quando o crime a que respeita a declaração de perda de bens ocorra em Região Autónoma sejam declarados perdidos os bens ou revertido o seu valor a favor da Região Autónoma.
VIII - Nem a lei autoriza o tribunal a adjudicar ou afectar os bens declarados perdidos a favor do Estado: é ao proprietário, em exclusivo, que compete dar destino à coisa que passou a ser sua (art. 1305.º do CC). E é assim, mesmo que o proprietário seja o Estado (art. 1304.º do CC).
IX - Os arquipélagos dos Açores e da Madeira constituem regiões autónomas dotadas de estatutos político-administrativos e de órgãos e governo próprios (art. 6.º, n.º 2, da CRP), mas essa autonomia político-administrativa regional não afecta a integridade da soberania do Estado e exerce-se no quadro da Constituição – art. 225.º, n.º 3, da CRP.
X - As regiões autónomas têm os poderes definidos nos respectivos estatutos (art. 227.º, n.º 1), sendo que, segundo o art. 228.º da CRP, «1. A autonomia legislativa das regiões autónomas incide sobre as matérias enunciadas no respectivo estatuto político-administrativo que não estejam reservadas aos órgãos de soberania. 2. Na falta de legislação regional própria sobre matéria não reservada à competência dos órgãos de soberania, aplicam-se nas regiões autónomas as normas legais em vigor».
XI - Daqui resulta que a perda de bens a favor da Região Autónoma há-de necessariamente resultar de lei expressa, que poderá ser a definidora do Estatuto da Região Autónoma.
XII - Ora, o art. 113.º, al. e), do Estatuto da Região Autónoma dos Açores, que se refere apenas aos bens abandonados e aos que integrem heranças declaradas vagas para o Estado, desde que uns e outros se situem dentro dos limites territoriais da Região, não permite que os objectos relacionados com tráfico de droga sejam declarados perdidos a favor dessa Região e não do Estado (cf. Ac. deste STJ de 08-11-2007, Proc. n.º 3763/07 -5.ª).
XIII - A Lei 130/99, de 21-08, nomeadamente o disposto no seu art. 145.º, al. g), diz apenas respeito à Região Autónoma da Madeira. Daí que não possa, para tal efeito, fazer-se uma aplicação extensiva, ou mesmo analógica, da lei definidora do Estatuto da Região Autónoma da Madeira, para integrar a lei definidora do Estatuto da Região Autónoma dos Açores. São leis diferentes, que definem estatutos próprios (cf. art. 225.º, n.º 1, da CRP).
XIV - Inexistindo lei expressa que legitime a decisão recorrida quanto ao destino dos bens declarados perdidos a favor da Região Autónoma dos Açores, não pode legalmente acolher-se essa decisão.
Proc. n.º 2878/08 -3.ª Secção Pires da Graça (relator) Raul Borges