ACSTJ de 10-09-2008
Admissibilidade de recurso Aplicação da lei no tempo Qualificação jurídica Vícios do art. 410.º do Código de Processo Penal Tráfico de estupefacientes agravado Avultada compensação remuneratória
I -A lei que regula a recorribilidade de uma decisão, ainda que esta tenha sido proferida em recurso pela Relação, é a que se encontrava em vigor no momento em que a 1.ª instância decidiu, salvo se lei posterior for mais favorável para o arguido. II - Assim, é recorrível para o STJ a decisão proferida pela Relação já depois da entrada em vigor da nova lei de processo que não reconheça esse grau de recurso, se a lei que vigorava ao tempo da decisão da 1.ª instância o mandasse admitir. III - A questão da qualificação jurídica dos factos não se confunde com a dos vícios aludidos no art. 410.º, n.º 2, do CPP: enquanto a existência destes supõe uma decisão em matéria de facto viciada na suficiência, descrição e correlacionamento dessa factualidade e (ou) respectiva fundamentação, nos termos do texto da decisão recorrida, ainda que em conjugação com as regras da experiência comum, a qualificação jurídica dos factos tem estes por defi-nitivamente válidos, assentes e eficazes, bastantes para uma decisão de direito, e sobre eles a subsunção se resume a saber se integram ou não norma legal típica. IV - A jurisprudência deste STJ tem entendido, relativamente à al. c) do art. 24.º do DL 15/93, de 22-01, que agrava o ilícito em função da «avultada compensação remuneratória» obtida ou procurada obter pelo agente, que têm de estar causa valores elevados, que excedem em muito os habituais no mundo dos negócios, “ordens de valorações próprias dos grandes tráficos, das redes de importação e comercialização e da grande distribuição” – cf. Ac. de 3101-2008, Proc. n.º 1411/07 -5.ª Secção. V - Na verdade, o crime base de tráfico de estupefacientes, tipificado no art. 21.º do referido diploma legal, está delineado para assumir uma função de defesa social ou protecção da comunidade perante a actividade de tráfico de mediana dimensão, utilizando recursos e propondo meios e objectivos que não apresentam grande traço de dissemelhança perante o perfil que apresenta, normalmente, a patologia criminal deste tipo. VI - A agravação supõe, pelo contrário, uma exasperação do grau de ilicitude já definido e delimitado na muito ampla dimensão dos tipos base – os arts. 21.º, 22.º e 23.º do DL 15/93, de 22-01 – e, consequentemente, uma dimensão que, referenciada pelos elementos específicos da descrição das circunstâncias, revele um quid específico que introduza uma medida especialmente forte do grau de ilicitude que ultrapasse consideravelmente o círculo base das descrições tipo. VII - É de concluir pela avultada compensação remuneratória, mesmo que não se apure qual a efectiva remuneração do traficante, «sempre que, pela qualidade da droga, pela sua quantidade e pela posição que o agente ocupa no negócio (não sendo mero “correio” ou “vendedor de rua”) este iria obter uma larguíssima vantagem económica caso concluísse a transacção» – cf. Ac. do STJ de 13-03-2008, Proc. n.º 4086/07 -5.ª. VIII - No caso dos autos, a quantidade e natureza dos estupefacientes transaccionados, que as apreensões havidas denotam (cerca de 1700 g de cocaína – peso líquido –, 250 g de heroína e 36 g de canabis), bem como o período de tempo (durante mais de um ano) e o número de vezes em que ocorreu, a actuação conjunta delineada e combinada entre os arguidos e a manutenção ininterrupta da actividade ilícita de tráfico, implicando, na sua exequibilidade, substituição do elemento que era preso, a existência de várias “casas de recuo” e utilização de veículos automóveis para a prossecução da actividade criminosas, a aquisição em Espanha de produtos estupefacientes e o preço pago (€ 500 ao motorista por cada transporte de droga), os bens apreendidos, mormente a quantia de mais de uma dezena de milhar de euros, e a grande quantidade de telemóveis utilizados para a actividade de tráfico, traduzem a ideia clara de que o negócio ilícito de tráfico levado a cabo pelos arguidos se situa num patamar superior e muito distante de uma organização de modesta ou mediana dimensão, apontando para operações ou “negócios” de grande tráfico, longe, por regra, das configurações da escala de base típicas e próprias do dealer de rua urbano e suburbano ou do seu sucedâneo no espaço rural, mostrando-se correcta a agravação do tráfico de estupefacientes pela integração da previsão constante da al. c) do art. 24.º do DL 15/93, de 22-01.
Proc. n.º 2506/08 -3.ª Secção
Pires da Graça (relator)
Raul Borges
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