ACSTJ de 10-09-2008
Admissibilidade de recurso Acórdão da Relação Aplicação da lei processual penal no tempo Dupla conforme Confirmação in mellius Direito ao recurso Tráfico de estupefacientes Detenção ilegal de arma Medida concreta da pena Suspensão da execução da
I -A nossa jurisprudência e doutrina reconhecem, no plano civilístico, que a lei reguladora da admissibilidade do recurso é a vigente na data em que é proferida a decisão recorrida – lex temporis regit actum, considerando que as expectativas eventualmente criadas às partes ao abrigo da lei antiga se dissiparam à face da lei nova, não havendo que tutelá-las (cf. Antunes Varela, Miguel Beleza, Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 1984, págs. 54-55). II - Mas, no plano do direito e processo penal, a consideração de interesses extrapolando os meramente privatísticos, situando-se ao nível da protecção de interesses predominantemente públicos, dita a inserção no CPP do seu art. 5.º, que ressalva a aplicabilidade imediata da lei nova aos processos já iniciados anteriormente quando compromete, restringindo-o, de forma desproporcionada e arbitrária, o direito de acesso aos tribunais, com consagração no art. 20.º da CRP e 6.º da CEDH. III - Importa, no entanto, distinguir, para efeitos de aplicação da lei no tempo, entre regras que fixam as condições de admissibilidade do recurso e as que se limitam a regular as formalidades de preparação, instrução e julgamento daquele, estas, sem margem para dúvida, de imediata aplicação (cf. Alberto dos Reis, RLJ, Ano 86.º, págs. 49-53 e 84-87). IV - Assim, tendo-se presente que a decisão da Relação (recorrida), proferida já sob a égide das alterações introduzidas ao CPP pela Lei 48/2007, de 29-08, é confirmativa in mellius, ainda que parcialmente, da decisão anterior, e que a condenação não excede a pena de 8 anos de prisão, estaríamos perante uma decisão irrecorrível. V - Porém, uma vez que o acórdão proferido em julgamento a que primitivamente se procedeu, em 02-05-2007, como ordenado pelo acórdão de Relação de 12-07-2007, em vista da valoração dos meios de prova apresentados, produzidos ou examinados pelos sujeitos processuais ou pelo tribunal, fez criar no arguido, pelo desencadear da fase processual do julgamento, a expectativa do direito ao recurso que, pela lei processual anterior, lhe assegurava o acesso ao STJ, há que salvaguardar essa posição, que não deve ser-lhe retirada, tanto mais que não lhe é imputável o vício detectado no julgamento – seguimento processual imposto para obviar a um agravamento sensível do direito de defesa do arguido, à luz do art. 5.º, n.º 2, al. a), do CPP. VI - Resultando dos autos que: -o arguido detinha, no apartamento que arrendou na Rua…, para depósito de estupefacientes, 1015,606 g de haxixe, em placa e pedaços de resina, 1 saco de sementes de haxixe (canabis sativa) com o peso de 5,090 g, e folhas do mesmo estupefaciente com o peso de 22,100 g, uma listagem de nomes e quantias, € 275 em dinheiro, proveniente da venda de estupefacientes, e uma balança digital, usada naquele tráfico, absolutamente inconciliável com o simples consumo; -a posse ilegal da arma e munições, aquela adaptada clandestinamente, vem ao encontro do carácter altamente criminógeno do tráfico a que o arguido se dedicou, que, por se ter prolongado desde, pelo menos, Setembro de 2005 até 19 de Dezembro de 2005, é revelador de reiterada vontade, intenção criminosa, de vender, sabendo que tal lhe era proibido, inculcando dolo intenso; há que concluir que o arguido não se situa no grupo do dealer de rua, praticando o tráfico para sobreviver e satisfazer o vício, antes denotando alguma organização, logística no tráfico, de volume não insignificante, sendo o grau de desvalor da acção, da ilicitude, também considerável. VII - Considerando ainda que: -o arguido relegou-se ao silêncio no que respeita ao núcleo duro do objecto do processo, negando os factos integrantes do crime, revelando com isso, à falta de qualquer arrependimento, sentimento de pura indiferença para com a miséria alheia que o seu tráfico causou e potenciou; -durante o prazo de suspensão da execução da pena, por 3 anos, imposta em virtude de condenação por acórdão transitado de 20-02-2003, por crime de roubo, o arguido envolveu-se no tráfico e detenção ilegal de arma, com o que significa que afastou a esperança na transformação em homem de bem que o tribunal depositou ao condená-lo naquela pena de substituição; -a prática dos factos naquele prazo refrange ao nível da prevenção especial, fortemente sentida, trazendo à colação o passado criminal do arguido; -o crime de tráfico de estupefacientes, justamente ao nível da venda de haxixe, entre as camadas mais jovens, não dá mostras de abrandar, entre nós, pelo que se impõe, por meio da pena, prevenir a sua prática, fundar a eficácia da ameaça legal, na medida em que sem ela tal ameaça seria vã (prevenção geral); as penas parcelares fixadas, de 4 anos e 6 meses de prisão para o crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art. 21.º, n.º 1, do DL 15/93, de 22-01, e de 3 meses de prisão para o de detenção ilegal de arma, situadas próximo dos limiares mínimos, não merecem reparo, por serem criteriosas e justas, como o é a pena de concurso, de 4 anos e 7 meses de prisão. VIII - Tendo o arguido já beneficiado uma vez da suspensão da execução da pena, evidente se torna a maior dificuldade em fundá-la com apoio na lei, a não dispensar, e até a ser mais exigente, um juízo de prognose favorável ao arguido, como suporte da formulação de um juízo de fundada esperança de ressocialização do arguido em liberdade, tendo sempre como limite o não atropelo pelos fins das penas – art. 50.º, n.º 1, do CP. IX - Tal pena de substituição, de reconhecido alcance no âmbito da média e pequena criminalidade, assume um carácter pedagógico e reeducativo, apresentando a vantagem de não quebrar os vínculos familiares, laborais e sócio-profissionais, foi tornada possível relativamente a penas excedentes a 3 anos de prisão pela alteração introduzida ao CP pela Lei 59/2007, de 04-09. X - A mesma não é de aplicar quando os autos não fornecem quaisquer elementos de que o arguido, em liberdade, não voltará a delinquir, merecendo a confiança do tribunal, além de que a suspensão não satisfaria os fins das penas, de emenda cívica e de prevenção de crimes graves como são aqueles por que foi condenado. Este STJ tem-se, de resto, mostrado adverso à suspensão da execução da pena ante o flagelo do crime de tráfico de estupefacientes, a não ser em casos excepcionais, bem longe do caso em ponderação.
Proc. n.º 1666/08 -3.ª Secção
Armindo Monteiro (relator)
Santos Cabral
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