Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa
Actualidade | Jurisprudência | Legislação pesquisa:


    Sumários do STJ (Boletim) - Criminal
Procurar: Assunto    Área   Frase
Processo   Sec.                     Ver todos
ACSTJ de 10-09-2008
 Concurso de infracções Conhecimento superveniente Cúmulo jurídico Tribunal competente Pena única Princípio do contraditório Fundamentação Pena cumprida, prescrita ou extinta Cúmulo por arrastamento Medida concreta da pena
I -Em caso de conhecimento superveniente do concurso de crimes, ou seja, quando posteriormente à condenação se denotar que o agente praticou anteriormente àquela condenação outro ou outros crimes, são aplicáveis as regras do disposto no art. 77.º do CP, segundo o n.º 1 do art. 78.º do mesmo diploma, não dispensando o legislador a interacção entre as duas normas. II Para a imposição da pena de concurso é territorialmente competente o tribunal da última condenação, realizando o tribunal, oficiosamente ou a requerimento, as diligências reputadas essenciais à decisão – arts. 471.º, n.º s 1 e 2, e 472.º do CPP.
III - A atribuição da competência ao tribunal da última condenação deriva da circunstância de ser ele que detém a melhor e mais actualizada perspectiva do conjunto dos factos e da personalidade do agente, retratada no conjunto global das condenações e do trajecto de vida do arguido, concebida como «o mais idóneo substracto a que pode ligar-se o juízo de culpa jurídico-penal», «a forma viva fundamental do indivíduo humano por oposição a todos os outros», na definição que dele se colhe em Liberdade, Culpa, Direito Penal, da autoria do Prof. Figueiredo Dias, pág. 171.
IV - No concurso superveniente de infracções tudo se passa como se, por pura ficção, o tribunal apreciasse, contemporaneamente com a sentença, todos os crimes praticados pelo arguido, formando um juízo censório único, projectando-o retroactivamente. A formação da pena conjunta é, assim, a reposição da situação que existiria se o agente tivesse sido atempadamente condenado e punido pelos crimes à medida em que os foi praticando (cf. Lobo Moutinho, Da Unidade à Pluralidade dos Crimes no Direito Penal Português, ed. da FDUC, 2005, pág. 1324); o cúmulo retrata, assim, o atraso da jurisdição penal em condenar o arguido e a atitude do próprio agente em termos de condenação pela prática do crime, tendo em vista não prejudicar o arguido por esse desconhecimento ao estabelecer limites à duração das penas a fixar.
V - A pena de concurso é imposta em audiência de julgamento, no estabelecimento das garantias de defesa do condenado, pautada pelo respeito pelo princípio do contraditório e, como não pode deixar de ser, fundamentada, nos termos dos arts. 205.º, n.º 1, da CRP e 374.º, n.º 2, do CPP.
VI - Mas essa fundamentação afasta-se da prevista, em termos gerais, no art. 374.º, n.º 2, do CPP, tudo se resumindo a uma especial e imprescindível fundamentação onde avultam, na fixação da pena unitária, a valoração, em conjunto, dos factos, enquanto “guia” e a personalidade do agente, mas sem o rigor e a extensão pressuposta nos factores de fixação da pena previstos no art. 71.º do CP (cf. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Editorial Notícias, §§ 420 e 421).
VII - Tem sido pacífico neste STJ o entendimento de que o concurso de infracções não dispensa que os vários crimes tenham sido praticados antes de ter transitado em julgado a pena imposta por qualquer um deles, representando o trânsito em julgado de uma condenação penal o limite temporal intransponível no âmbito do concurso de crimes, excluindo-se da pena única os praticados posteriormente; o trânsito em julgado de uma dada condenação obsta a que se fixe uma pena unitária em que, englobando as cometidas até essa data, se cumulem infracções praticadas depois deste trânsito.
VIII - A Lei 59/2007, de 04-09, apenas alterou o regime do concurso superveniente de infracções no caso de uma pena que se encontre numa relação de concurso se mostrar devidamente cumprida: essa pena, doravante, será descontada no cumprimento da aplicável ao concurso de crimes, nos termos da nova redacção trazida ao art. 78.º, n.º 1, do CP. Quanto à exigência de uma infracção ter sido praticada antes de ter transitado em julgado a pena imposta por qualquer outra, nos termos do art. 77.º, n.º 1, do CP, deixou-a aquela Lei intocada.
IX - Assim, o momento determinante para a sujeição de um conjunto de crimes a uma pena única é, nos termos do art. 77.º, n.ºs 1 e 2, aplicável por força do art. 78.º, n.º 2, do CP, o trânsito em julgado da primeira condenação, pois os crimes praticados posteriormente a essa decisão transitada não estão em relação de concurso, devendo ser encarados e punidos na perspectiva da sucessão criminal.
X - Esta jurisprudência afasta-se da do chamado «cúmulo por arrastamento», que conheceu alguma aplicação neste STJ até 1997, mas que constituía uma forma de, divergindo dos termos legais, aniquilar a «teleologia» e a «coerência interna» do sistema, «dissolver a diferença entre as figuras do concurso de crimes e da reincidência» (cf. Vera Lúcia Raposo, in RPCC, Ano 13, n.º 4, pág. 592).
XI - O critério para formação da pena de conjunto é fornecido pelo art. 77.º, n.º 1, do CP, tomando-se em apreço os factos globalmente, em conjugação com a personalidade do agente.
XII - Enquanto o conjunto dos factos fornece a imagem global do facto, o grau de contrariedade à lei, ou seja, a grandeza da sua ilicitude, já na avaliação da personalidade do arguido se perscruta se o facto global exprime uma tendência ou mesmo uma “carreira” criminosa, “uma autoria em série”, uma “cadeia” criminosa de gravidade em crescendo, ou uma simples pluriocasionalidade, caso em que a pena é exacerbada ou simplesmente mitigada, respectivamente.
XIII - Este STJ, na esteira do que é jurisprudência sua, de tempos recuados, vem procedendo por forma a que se introduza uma “compressão” às penas parcelares residuais, remanescentes, decidindo-se mesmo, como critério possível, caminho de solução, até porque não está inscrito no texto legal, que deve descer-se ao nível de 1/3 – cf. Ac. de 09-02-2006, Proc. n.º 109/06 -5.ª.
XIV - Tendo em consideração que: -a maior parte dos crimes cometidos pelo arguido são furtos simples, incluindo o de bebidas alcoólicas, menos os de furto qualificado, alguns em estabelecimento comercial e, menos ainda, em habitação, estes com o concurso de arrombamento e escalamento, acrescidos de condução ilegal e perigosa de viatura, bem como de evasão e desobediência; -o máximo valor patrimonial subtraído, em um furto, ascende a € 2500, nunca tendo o arguido usado de violência contra as pessoas na subtracção de coisa alheia, nalguns casos para obtenção de dinheiro para satisfação do vício como consumidor de estupefacientes; -o arguido praticou os factos criminosos englobados no cúmulo ao longo dos anos de 2001 e 2004 (antes, e desde 1997 até 1998, já havia praticado 8 crimes de furto qualificado, por que foi condenado antes de o ser pelos factos aludidos no cúmulo); -o factor criminógeno foi a sua toxicodependência no momento da prática dos factos, a ela se ficando a dever os ilícitos por que foi condenado; -os crimes englobados no cúmulo foram cometidos num mesmo contexto espacio-temporal e, nessa medida, mesmo ponderando as condenações excluídas do cúmulo, estaremos a meio caminho entre uma pluriocasionalidade e uma propensão para o crime, mas sem que se possa, desde já, por excessivo, considerar o arguido um criminoso empedernido, perigoso, sem qualquer hipótese de recuperação; -contando o arguido 34 anos, encontrando-se preso actualmente, e considerando o efeito pernicioso que uma longa pena de prisão acarretaria para a sua reintegração, sendo ainda expectável a sua ressocialização, hoje erigida a par da prevenção geral na teleologia da pena – enquanto na redacção do CP anterior à alteração introduzida pela Lei 59/2007, de 04-09, a prevenção especial era encarada num plano secundário, nos termos do art. 40.º –, é justo e equitativo equacionar-se a redução da pena de conjunto; -não são desprezíveis as exigências de prevenção geral, de estado de necessidade social de repressão, para tutela das expectativas comunitárias contra o facto, de dissuasão de potenciais delinquentes, nem as de prevenção especial, que reclamam, pela via da pena, a interiorização da consciência do acto ilícito, em termos de prevenção da reincidência; -a pena a aplicar oscila entre 3 anos de prisão, a parcelar mais grave das aplicadas ao arguido, e 24 anos, 7 meses e 15 dias de prisão, o limite máximo da moldura de concurso; entende-se dever fixar-se a pena de conjunto em 9 anos de prisão.
Proc. n.º 2500/08 -3.ª Secção Armindo Monteiro (relator) Santos Cabral