ACSTJ de 03-09-2008
Recurso da matéria de facto Ónus da impugnação especificada Fundamentação Exame crítico das provas Princípio da imediação Princípio da oralidade Regras da experiência comum Tráfico de estupefacientes Tráfico de estupefacientes agravado Avultada c
I -Tem sido enfatizado (cf. Ac do STJ de 04-01-2007, Proc. n.º 4093/06) que o recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2.ª instância aprecia, em toda a sua extensão, a prova produzida e documentada em 1.ª instância, como se o julgamento aí realizado não existisse, mas sim um remédio jurídico destinado a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com a nota das provas que demonstram esses erros (cf. Ac. n.º 59/06 do TC, de 18-01-2006). II - Nesta senda, as menções a que alude o art. 412.º, n.ºs 3, als. a) a c), e 4, do CPP não traduzem um ónus de natureza puramente secundária ou formal que impende sobre o recorrente, antes se conexionando com a inteligibilidade e a concludência da própria impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto. III - “Impugnar especificadamente” é enumerar os factos um a um: primeiro, porque o novo julgamento que deles se pede à Relação, para assegurar um efectivo grau de jurisdição de recurso em sede de matéria de facto, é um julgamento segmentado, respeitando a aspectos parcelares, um remédio para questões pontuais e nunca uma reapreciação global daquela matéria; depois, porque o tribunal de recurso não dispõe de poderes divinatórios, exigindo, numa óptica de colaboração, de lealdade, mas sobretudo de celeridade processual, a satisfação daquela enumeração, bem como das concretas provas que autorizam uma diferente solução, por referência aos suportes magnéticos onde constam as provas, havendo lugar à sua transcrição. IV - É à luz da concreta conformação dada pelos recorrentes à impugnação da decisão de facto que este Supremo Tribunal haverá que apreciar a resposta do tribunal recorrido. V - Está completa essa apreciação se o Tribunal da Relação, conquanto não faça uma análise ponto por ponto da matéria de facto impugnada, não deixou de se debruçar sobre as questões que lhe foram colocadas, que é, afinal, o que a lei impõe. VI - Não existindo imediação das provas, o tribunal de recurso não pode julgar a causa como o havia feito a 1.ª instância, o que, evidentemente, não o exime de, com rigor, reponderar os suportes documentais, testemunhais e periciais que especificamente se revelarem decisivos e nos exactos limites dos seus poderes de cognição. VII - E se, finda essa avaliação, se retirar que a convicção é uma convicção possível e explicável pelas regras de experiência comum, deve acolher a opção do julgador, até porque o mesmo beneficiou da oralidade e da imediação na recolha da prova. VIII - Apenas se coloca a questão da uma eventual inconstitucionalidade, por violação dos arts. 20.º, n.º 4, e 32.º da CRP, se o Tribunal da Relação, em recurso da matéria de facto, se limita a afirmar que os dados objectivos indicados na fundamentação da sentença da 1.ª instância foram colhidos na prova produzida, transcrita nos autos, já que o que a lei veda, de todo, é que o tribunal superior se cinja a uma referência abstracta ou generalista, a uma adesão acrítica e despida de juízo reflexivo, que tolhe as garantias mínimas de defesa, contende com o duplo grau de jurisdição em matéria de facto e inviabiliza a instância recursiva – cf. Ac. n.º 116/2007 do TC, de 16-02-2007, Proc. n.º 522/06 -3.ª, DR n.º 79, de 23-042007. IX - O exame crítico das provas, compreendido no dever de fundamentação da decisão (arts. 205.º, n.º 1, da CRP e 97.º, n.º 4, do CPP), impõe que o julgador consigne o iter de formação da convicção subjacente às decisões tomadas, desde logo como fonte de legitimação na comunidade, mas sobretudo como forma de convencimento do seu destinatário directo e para permitir a sua sindicação e controlabilidade por parte do tribunal superior – cf. Ac. n.º 680/98 do TC, de 02-12-1998. X - Mas também é unânime que, apesar de não ser suficiente a mera enunciação dos meios de prova utilizados em 1.ª instância, a observância do dever de fundamentar de facto não chega ao ponto de impor a indicação individualizada dos meios de prova relativamente a cada um dos factos assentes ou para cada um dos arguidos. XI - A lei não visa aqui a reprodução mecânica dos depoimentos ou do teor dos documentos, mas sim que, concisa e coerentemente, o tribunal esclareça as razões de ter aderido a uma determinada posição em detrimento de outra; os motivos pelos quais atribuiu credibilidade a um depoimento, exame ou documento e porque não atendeu a provas de sentido contrá-rio; as razões de ciência; as inferências dedutivas; as presunções ou as regras de experiência. XII - E se assim é, só em face de cada situação se há-de aferir se houve ou não exame crítico da prova produzida, por forma a que se conclua se se seguiu um processo racional na apreciação da prova, se a decisão em matéria de facto não é intuitiva, arbitrária ou dominada pelas impressões ou, ainda, se a mesma padece de vícios que a inquinem. XIII - A formulação legal do art. 21.º do DL 15/93, de 22-01, pela sua abrangência, permite acolher uma diversidade de actuações em que se pode desdobrar a actividade ilícita do tráfico de estupefacientes, desde o seu cultivo ou fabrico, detenção, transporte, até à sua venda. XIV - Aqui, contém-se a descrição fundamental, isto é, o tipo base, no que se refere à previsão e ao tratamento penal destas actividades. E, da sua análise, verifica-se, que a lei se contentou com a aptidão que as condutas ali enunciadas revelam para os valores e bens comunitária e juridicamente protegidos; daí tratar-se de um crime de perigo comum, abstracto ou presumido, em que o perigo surge como o resultado da acção típica. XV - O STJ tem alertado para que, quando o legislador prevê um tipo simples, acompanhado de um tipo privilegiado e de um tipo agravado, é no primeiro que traça a conduta proibida enquanto elemento do tipo e prevê o quadro abstracto de punição dessa mesma conduta; depois, nos tipos privilegiado e qualificado, vem definir os elementos atenuativos ou agravativos que modificam o tipo base conduzindo a outros quadros punitivos. E só a verificação afirmativa, positiva, desses elementos atenuativo ou agravativo é que permite o abandono do tipo simples. XVI - Relativamente aos arts 21.º e 24.º do DL 15/93, de 22-01, há um espaço punitivo comum – que se cifra entre os 5 e os 12 anos de prisão –, razão pela qual o julgador deverá ser particularmente exigente na indagação dos pressupostos do art. 24.º, quanto mais não seja porque a dosimetria penal abstracta do tipo simples já permite integrar casos de elevada ilicitude ou de grande intensidade desvaliosa. XVII - Como desde logo sugere a sua epígrafe – Agravação –, as circunstâncias taxativamente previstas no art. 24.º do referido diploma legal, não constituem elementos típicos qualifica-dores, mas antes circunstâncias modificativas agravantes, que têm um valor predeterminado na lei, que acresce à medida legal da pena do art. 21.º, n.º 1. Constituem «pressupostos ou conjuntos de pressupostos que, não dizendo directamente respeito nem ao tipo de ilícito (…), nem ao tipo de culpa, nem mesmo à punibilidade em sentido próprio, todavia contendem com a maior (…) gravidade do crime como um todo (…)» – cf. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, § 259 e ss., pág. 198 e ss, e Acs. do STJ de 12-09-2007, Proc. n.º 2165/06, e de 16-01-2008, Proc. n.º 4638/07 -3.ª. XVIII - Assim, sempre que esteja em causa um crime de tráfico de estupefacientes, nele concorrendo alguma das circunstâncias constantes do art. 24.º, o aplicador terá sempre, num primeiro momento, de verificar se, face à imagem global do facto, mas sem entrar em linha de conta com a factualidade integradora da circunstância modificativa agravante, o grau de ilicitude revelada é o correspondente ao padrão de ilicitude do tipo matricial. Não haverá justificação para a aplicação da norma do art. 24.º se, perante a imagem global do facto, o julgador concluir estar em causa, nomeadamente, uma ilicitude consideravelmente diminuída por referência ao padrão de ilicitude do tipo matricial, sob pena de afrontar os princípios da necessidade e da proporcionalidade das penas. XIX - A avultada compensação remuneratória obtida ou procurada obter pelo agente, inscrita na al. c) do art. 24.º do DL 15/93, de 22-01, encontra a sua razão de ser no combate ao grande tráfico lucrativo, de cariz transfronteiriço, e remete para “ordens de valorações próprias dos grandes tráficos, das redes de importação e comercialização e da grande distribuição” (Ac. de 06-10-2004, Proc. n.º 1875/04 -3.ª), ou para alguma intervenção, mesmo que ocasional, mas directamente conformadora ou decisivamente relevante, que seja determinada a obter – ou produza – a tal compensação extraordinária e em que os riscos de detecção são substancialmente menores. XX - Aqui a lei utilizou um conceito indeterminado que, como tal, carece de ser preenchido: enquanto circunstância que exaspera a ilicitude e aumenta a dimensão do perigo para os bens jurídicos tutelados pelas incriminações do tráfico, tem de apresentar uma projecção de especial saliência, a avaliar através de parâmetros objectivos, demonstradora de uma ordem de grandeza que ultrapasse o crime base, pois é consabido que qualquer traficante age na mira do lucro que o negócio ilícito possa proporcionar. XXI - Exige-se uma gravidade exponencial que reflicta marcadamente um plus de ilicitude, materializado em dados concretos, ainda que por aproximação, e que estribe o preenchimento da infracção e o concomitante aumento em ¼ dos limites mínimo e máximo da moldura penal, pelo que devem ser sopesados em globo a intensidade da actividade danosa, conjugada com as quantidades e natureza de produto transaccionado e os montantes envolvidos. XXII -Exemplificativamente, configuram factores ou critérios a percepcionar para o enquadramento neste preceito, as circunstâncias da acção; os índices de risco; a logística que preside ao desenvolvimento da actividade; a sofisticação organizativa e de meios; o preço de aquisição; a expectativa do preço de comercialização do estupefaciente.XXIII -A decisão das instâncias de fundarem a punição pela al. c) do art. 24.º do DL 15/93, de 22-01, na factualidade assente nos pontos de facto n.ºs 73 [Os arguidos AC e JA auferiram lucros resultantes do diferencial de preços de compra e de venda dos produtos supra referidos], 74 [Tais lucros permitiram ao arguido AC, além do mais, adquirir vários veículos automóveis de alta cilindrada, dos quais se destaca o GOLF TDI, o BMW (pelo qual pagou 4.500 contos em dinheiro) e o Porsche (pelo qual pagou 8.500 contos)] e 75 [Por sua vez, em 6 de Julho de 2001, o arguido JA outorgou, como promitente comprador, um contrato-promessa de compra e venda, que teve por objecto uma moradia tipo T4, em construção, pelo preço de PTE 46.000.000$00, tendo, na altura, declarado que entrega o montante de PTE 2.000.000$00, como sinal e princípio de pagamento] suscita a seguinte análise: -a expressão contida sob o n.º 73 é conclusiva, sendo inócua para sustentar este tipo legal, já que em lado algum se indicaram as quantias, ainda que aproximadas, da compra e da venda do estupefaciente, logo, é desconhecido “o lucro resultante do diferencial de preços de compra e de venda dos produtos supra referidos”, o que deve ser valorado pro recorrente; -tal circunstância, por si só, não seria decisiva para afastar a agravação: já foi afirmado que é de concluir pela avultada compensação remuneratória ainda que não se apure em concreto qual a efectiva remuneração do traficante, sempre que, quer pela qualidade da droga, quer pela sua quantidade, quer ainda pela posição que o agente ocupa no negócio, se conclua que este iria obter uma larguíssima vantagem económica, caso concluísse a transacção – cf. Ac. de 13-03-2008, Proc. n.º 4086/07 -5.ª. E é certo que da demais matéria de facto provada resulta que os arguidos se situavam no topo da pirâmide do negócio [recebiam encomendas, escolhiam fornecedores e compradores, organizavam e controlavam as idas a Espanha (em 28-06, 29-06, 07-07 e 12-07), adquirindo ou alugando veículos automóveis para o efeito, e fixavam o preço, logrando fazê-lo com o auxílio de vários arguidos] e que no intervalo temporal de duas semanas – 28-06 a 12-07 – foram responsáveis pela introdução em território nacional de “mais de 100 Kg” e “cerca de 150 Kg” de haxixe, proveniente de Espanha, dissimulado no interior de veículos automóveis. Porém, no que concerne concretamente a esta forma agravada, dos factos n.ºs 74 e 75 nada de definitivo se retira, já que os montantes ali mencionados são, para o efeito agora em causa, relativamente modestos. Ou seja, para o efeito que aqui se cuida, nem os valores monetários, nem os objectos apreendidos impressionam pelo seu volume, opulência ou expressividade; -fundamental é que não é indiferente tratar-se de uma apreensão de haxixe (por contraposição ao desvalor que teria caso se tratasse de idêntica quantidade de heroína ou de cocaína); e não é possível descortinar qual o preço que o arguido pagaria pelo mesmo, nem os custos inerentes à operação do transporte ou guarda (nem, sequer, a contrapartida que pagaria aos demais arguidos), ou a que título o venderia (a retalho, a grosso); donde, apenas se pode considerar, para efeito de enquadramento jurídico da conduta, a quantidade de droga, a sua qualidade e o (conhecido) preço médio da respectiva venda. No caso, não obstante a quantidade de droga apreendida ser apreciável – e, portanto, a respectiva venda geradora de lucros, em maior ou menor medida –, da matéria de facto apurada não constam elementos factuais que permitam quantificar, mesmo por aproximação, o montante de compensação que o arguido pretendia obter, não podendo, por isso, concluir-se que o arguido procurava obter avultada compensação remuneratória, e, consequentemente, subsistir a subsunção a que chegaram as instâncias (art. 24.º, al. c), do DL 15/93, de 22-01), antes devendo a conduta dos arguidos reconduzir-se à previsão do art. 21.º daquele diploma legal. XXIV -Vista a imagem global dos factos e percorridos os critérios do art. 71.º do CP, ponderando a ausência de antecedentes criminais e a situação pessoal, social e profissional conhecida dos recorrentes [o arguido AC exerce, esporadicamente, a função de segurança de discoteca; tem um filho de 8 meses de idade, o qual vive com a mãe, de quem aquele está separado; o arguido JA é casado e tem dois filhos, de 6 anos e 1 ano e 6 meses de idade; é proprietário de um ginásio, que explora comercialmente; também exerce as funções de segurança de discoteca], a culpa e a ilicitude no seu globo, mostra-se proporcional, mas necessária, a pena de 7 anos e 6 meses de prisão, para cada um dos arguidos.
Proc. n.º 2031/04 -3.ª Secção
Soreto de Barros (relator)
Armindo Monteiro (com voto de vencido quanto à desqualificação do crime de tráfico de
estupefacientes)
Santos Cabral
Oliveira Mendes (com voto de vencido quanto à desqu
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