ACSTJ de 03-09-2008
Repetição da motivação Rejeição de recurso Violação Coacção sexual Coacção grave Danos não patrimoniais Nexo de causalidade Crime continuado Medida concreta da pena Indemnização
I -A solução jurídica encontrada para dar resposta às situações em que, em recurso para o STJ de acórdão proferido, em recurso, pelas Relações, o recorrente se limita a reeditar os argumentos e as questões anteriormente postas à consideração da 2.ª instância, como se estivesse, afinal, a recorrer da decisão do tribunal colectivo, tem divido a jurisprudência deste STJ: -no sentido da rejeição do recurso pronunciaram-se os acórdãos de 14-11-2002, Proc. n.º 3092 -5.ª; de 27-05-2004, CJSTJ, 2004, tomo 2, pág. 209; de 24-01-2007, Proc. n.º 4812/07 -3.ª; e de 12-04-2007, Procs. n.ºs 255/07 e 516/07, ambos da 5.ª Secção; -em sentido oposto decidiram os acórdãos de 10-10-2007, Procs. n.ºs 3315/07 e 2684/07; de 17-10-2007, Proc. 3265/07; e de 17-04-2008, Procs. n.ºs 677/08 e 823/08, todos da 3.ª Secção. II - É de acolher a segunda orientação, por a repetição de motivação não dever ser equiparada à sua falta e não estar prevista a possibilidade de rejeição de recurso para os casos em que o recorrente se limita a repetir a argumentação já apresentada no recurso interposto para o Tribunal da Relação. III - Tendo o arguido sido condenado pela prática de um crime agravado de violação, na forma consumada (p. e p. pelos arts. 164.º, n.º 1, e 177.º, n.º 4, do CP), um crime agravado de violação na forma tentada (p. e p. pelos arts. 22.º, n.º 2, als. b) e c), 23.º, n.º 2, 73.º, n.º 1, als. a) e b), 164.º, n.º 1, e 177.º, n.º 4, do CP), um crime agravado de coacção sexual agravado (p. e p. pelos arts. 163.º, n.º 1, e 177.º, n.º 4, do CP) e três crimes de coacção grave (p. e p. pelos arts. 154.º, n.º 1, e 155.º, n.º 1, al. a), do CP), e dando-se por assente, para além do mais, que a menor vítima dos crimes, e neta da mulher do arguido, «Para além da vergonha, sentiu-se profundamente revoltada porque a avó e as tias diziam que ela era mentirosa e que inventou tudo», há que reconhecer que, em rigor, ainda existe um nexo de causalidade adequada entre a revolta sentida pela menor e a apurada conduta do recorrente, por ser uma consequência de uma situação por este criada para a qual a menor em nada contribuiu. IV - Na verdade, não sendo exigível ao arguido que, perante aquelas, corroborasse o relatado pela menor, a falta de crédito desta perante alguns dos seus familiares constitui ainda uma forma de sofrimento originada pela situação de invasão da sua liberdade e autodeterminação sexual. V - Para que funcione a unificação das condutas sob a forma de crime continuado há que se estar perante vários actos entre os quais haja uma conexão temporal, sendo por esta que se evidenciará uma diminuição sensível da culpa, mercê de factores exógenos que facilitaram a recaída ou recaídas. VI - Pressuposto da continuação criminosa será, verdadeiramente, a existência de uma relação que, de maneira considerável, facilitou a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito – cf. Ac. do STJ de 24-01-2007, Proc. n.º 4066/06 -3.ª. VII- Este STJ tem considerado que não integra a figura do crime continuado a realização plúrima do mesmo crime se não forem as circunstâncias exteriores ao agente que o levaram a sucumbir, mas sim o desígnio inicialmente formado de, através de actos sucessivos, lesar o queixoso. VIII - Assim, sempre que a repetição da conduta criminosa seja devida a uma tendência da personalidade do agente, a quaisquer razões de natureza endógena, que ocorra independentemente de qualquer solicitação externa, ou que decorra de oportunidade provocada ou procurada pelo próprio agente, haverá pluralidade de crimes e não crime continuado. IX - O crime continuado funciona como excepção à regra da acumulação de infracções; a pluralidade de crimes subsiste no crime continuado e este considera-se ficticiamente unificado para excluir um cúmulo material de penas ou de efeitos gravosos no tratamento daquela continuação – cf. Acs. do STJ de 24-01-2007, Procs. n.ºs 4347/06 e 4061/06, ambos da 3.ª Secção; de 17-05-2007, Proc. n.º 1133/07 -5.ª; de 13-09-2007, Procs. n.ºs 2170/07 e 2795/07, ambos da 5.ª Secção; e de 24-10-2007, Proc. n.º 3193/07 -3.ª. X - É de concluir pela inexistência de factos que indiciem a ocorrência de um circunstancialismo exterior capaz de facilitar ou propiciar a repetição dos comportamentos delituosos do arguido, tornando cada vez menor exigível a opção por conduta diversa, e que, de alguma maneira, diminua consideravelmente a sua culpa, se dos autos resulta assente a seguinte factualidade: -na primeira situação, a do crime consumado de violação agravada, a ocasião foi toda ela criada pelo próprio arguido, que, quando transportava a menor no seu veículo a propósito de a conduzir a casa da avó (sua esposa), decidiu desviar-se do seu percurso e, em local não concretamente apurado, concretizar a sua intenção criminosa [(…) o arguido na viatura em que seguia com a menor, após ter passado a mão pelas pernas da AC, disse-lhe para desapertar as calças que ela trazia vestidas, o que esta fez, introduzindo-lhe ele, de seguida, os seus dedos na vagina; após, o arguido disse à AC para lhe lamber o pénis que, entretanto, ele retirara erecto do interior das calças que envergava e, puxando com força para ele a cabeça da menor, obrigou-a a introduzi-lo na sua boca; acto contínuo, a seu mando, ela lambeu-lhe e chupou-lhe o pénis durante algum tempo, após o que a AC, a seu pedido, tirou um lenço do porta-luvas, onde ele ejaculou]; -na segunda, o do crime tentado de violação agravada, os factos foram procurados pelo arguido, que, em dia em que a menor se encontrava na casa da avó, a tomar conta de uma prima de 3 anos de idade, e aproveitando-se da ausência da sua mulher e da mãe da ofendida, se aproximou quando ela se dirigia à casa de banho e tentou forçá-la a manter consigo relações sexuais [quando a AC se dirigia à casa de banho, o arguido JM abeirou-se dela e, fazendo uso da força física, agarrou-a por trás e encostou-a a uma parede, após o que lhe baixou as calças que ela vestia; de seguida, encontrando-se ambos em pé e ela de costas para ele, o JM encostou o seu pénis erecto na vagina da AC e aí procurou introduzi-lo; como a AC tivesse sentido muitas dores e começado a gritar, o arguido, com medo de que alguém escutasse tais gritos, largou-a, tendo aquela de imediato fugido]; -finalmente, na terceira, o do crime de coacção sexual agravada, também em dia em que a menor se encontrava em casa da avó e se deslocou à garagem para ir buscar sumos, o arguido ali a surpreendeu e, fazendo mais uma vez uso da força física, praticou os actos descritos no ponto 3 da factualidade assente [despiu-lhe as calças que vestia, colocou-a de pé sobre uma coluna de som que ali se encontrava, afastou-lhe as pernas e começou a lamber-lhe a vagina], «só parando algum tempo depois quando se apercebeu que a avó da AC se aproximava do local por ter ouvido os cães a ladrar». XI - Na verdade, em todas as ocasiões descritas não houve qualquer acordo da menor, pelo contrário, sempre ofereceu resistência, não facilitando, por qualquer forma, a prática dos actos em causa, que não só não se mostram temporalmente próximos (tendo decorrido, pelomenos, um mês entre cada um deles), como nem sequer se revestem de homogeneidade na forma de execução. XII - Por outro lado, após a prática de cada um desses actos, o arguido disse à menor «que lhe batia e a matava se contasse a alguém o sucedido, o que a impediu, por mais de um ano, de revelar a quem quer que fosse o sucedido, receosa como ficou de que o arguido concretizasse o mal anunciado», o que mostra ter aquele sentido o mesmo grau de culpa e de receio em todos os actos cometidos, com a inerente necessidade de, em cada uma das três ocasiões, praticar os actos típicos do crime de coacção grave, com vista a evitar que a menor revelasse o seu comportamento ilícito. XIII - Não é, pois, de concluir que o arguido se deixou arrastar por qualquer oportunidade que diminuísse a censurabilidade da sua conduta, ao invés, foi ele próprio quem criou ou fomentou as oportunidades, não se podendo aceitar que o «êxito» da primeira acção criminosa e de cada uma das seguintes possa determinar a diminuição da respectiva culpa. XIV - A repetição criminosa ficou, assim, a dever-se, não a uma efectiva diminuição da culpa do agente – que não existiu –, mas sim à sua persistente vontade em satisfazer os seus desejos, que superou até a natural inibição inerente à relação de afinidade que o liga à ofendida. XV - Esta conclusão mantém-se, apesar da redacção do n.º 3 do art. 30.º do CP, introduzido pela Lei 59/2007, de 04-09, segundo o qual «o disposto no número anterior [que prevê o crime continuado] não abrange os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais, salvo tratando-se da mesma vítima», posto que tal aditamento ao preceito se limitou a consagrar o «regime que se encontra implícito no seu n.º 2 e que a doutrina e a jurisprudência sempre assumiram, mesmo antes da entrada em vigor da versão originária do Código» – cf. Ac. do STJ de 12-06-2008, Proc. n.º 1771/08 -3.ª, e ainda Maria do Carmo Silva Dias, Repercussões da Lei n.º 59/2007, de 04-09 nos crimes contra a liberdade sexual (Revista do CEJ, 1.º trimestre de 2008, n.º 8 (especial), pág. 225), e Maria da Conceição Valdágua, As Alterações ao Código Penal de 1995, relativas ao crime continuado, propostas no Anteprojecto de Revisão do Código Penal (RPCC, Ano 16, n.º 4, Outubro-Dezembro 2006, págs. 531-533). XVI - Não suscita qualquer intervenção correctiva deste Supremo Tribunal a decisão da Relação que, perante o enunciado quadro factual, e tendo em atenção as molduras penais abstractas correspondentes aos crimes pelos quais o arguido foi condenado – 4 anos a 13 anos e 4 meses de prisão, para o crime de violação agravado, na forma consumada; 9 meses e 18 dias a 10 anos de prisão, para o crime de violação agravado, na forma tentada; 1 ano e 4 meses a 10 anos e 8 meses de prisão, para o crime de coacção sexual agravada; e 1 a 5 anos de prisão, para o crime de coacção grave –, condenou o arguido, relativamente aos três primeiros ilícitos, nas penas parcelares de 5 anos de prisão, 1 ano e 6 meses de prisão e 2 anos de prisão, respectivamente, e na pena de 1 ano e 6 meses de prisão por cada um dos crimes de coacção grave, e, em cúmulo jurídico, na pena única de 6 anos de prisão. XVII - Tendo em atenção a factualidade assente e ponderando ainda que: -a capacidade económica do arguido não é grande, pois exerce a actividade profissional por conta de outrem, auferindo mensalmente pouco mais de € 400, o equivalente ao salário mínimo nacional, desconhecendo-se a capacidade económica da mulher ou se, inclusive, terá emprego; -o montante a encontrar não poderá nunca atingir valor que redunde numa extrema dificuldade de cumprimento, ou num convite ao incumprimento, devendo assumir patamar mínimo de exigibilidade, havendo que ter em conta que nem mesmo aquele salário apurado será percebido atenta a situação de reclusão que se seguirá; mostra-se adequada a fixação da indemnização por danos não patrimoniais a atribuir à menor ofendida no montante de € 15 000 –e não de € 20 000, conforme se decidiu no acórdão recorrido –, o qual ainda reflectirá a importância e gravidade dos danos causados pelas condutas ilícitas do demandado.
Proc. n.º 3982/07 -3.ª Secção
Raul Borges (relator)
Henriques Gaspar
Armindo Monteiro
Fernando Fróis
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