ACSTJ de 03-09-2008
Admissibilidade de recurso Acórdão da Relação Aplicação da lei processual penal no tempo Direito ao recurso Duplo grau de jurisdição
I -Tem sido entendimento jurisprudencial deste STJ o de que o recurso se rege pela lei em vigor à data da decisão recorrida ou, pelo menos, da sua interposição, pois o direito ao recurso só surge com a prolação da respectiva decisão (cf. Acs. de 23-11-2007, Proc. n.º 4459/07 -5.ª, e de 30-04-2008, Proc. n.º 110/08 -5.ª – este citando José António Barreiros, in Sistema e Estrutura do Processo Penal Português, 1997, I, pág. 189: «…em matéria de recursos, o problema da lei aplicável à prática dos actos processuais respectivos haverá de encontrar-se em função da regra geral – a da vigente no momento do acto – e não em função de um critério especial, pelo qual se atenda à lei vigente no momento da interposição do recurso a qual comandaria inderrogavelmente toda a tramitação do recurso»). II - Também Germano Marques da Silva parece concordar com tal interpretação pois, para ele, a excepção da não aplicação imediata da lei nova só se impõe «quando desta resultar, no caso concreto, diminuição do direito de defesa do arguido, frustrando as expectativas de defesa relativamente à admissibilidade de certos actos de defesa que ficariam prejudicados pela aplicação imediata da lei nova». III - Como diz Cavaleiro de Ferreira (Curso de Processo Penal, I, págs. 62-63), do princípio geral da aplicação da lei processual no tempo, segundo o qual a lei aplicável é a vigente no momento em que o acto processual foi ou é cometido, resulta que se um processo terminou no domínio de uma lei revogada o mesmo mantém pleno valor; se o processo se não iniciou ainda, embora o facto que constitua o seu objecto tenha sido cometido no domínio da anterior legislação, é-lhe inteiramente aplicável a nova legislação; e, se a lei nova surge durante a marcha do processo, são válidos todos os actos processuais realizados de harmonia com a lei anterior, sendo submetidos à nova lei todos os actos ulteriormente praticados. IV - Em matéria de recursos tal significa, em conjugação com o princípio jurídico-constitucional da legalidade, que a lei nova será de aplicar imediatamente, sem embargo da validade dos actos já praticados, a menos que por efeito da aplicação da lei nova se verifique um agravamento da situação do arguido ou se coloque em causa a harmonia e unidade do processo. Assim, a lei nova é aplicável a todos os actos processuais futuros, com a ressalva imposta pelas als. a) e b) do n.º 2 do art. 5.º. É esta a orientação que este Supremo Tribunal tem assumido, de forma pacífica (cf. Ac. de 20-02-2008, Proc. n.º 4838/07 -3.ª). V - Integrando o recurso e o respectivo direito de interposição um direito fundamental do arguido, se a lei nova lhe retirar um grau de recurso – para o STJ – que em abstracto lhe assistia face ao regime processual anterior, é de admitir o recurso interposto (Ac. do STJ de 05-03-2008, Proc. n.º 100/08). VI - O recurso penal – que consta do art. 2.º do protocolo n.º 7 à Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, aprovado, para ratificação, pela Resolução da AR n.º 22/90, de 27-09, e ratificado pelo Decreto do PR n.º 51/90 – é um dos direitos fundamentais do arguido, com consagração no art. 32.º, n.º 1, da CRP (após a 4.ª revisão constitucional), pelo que há que salvaguardar sempre a existência de um duplo grau de jurisdição (o que não é a mesma coisa que um duplo grau de recurso). VII - Na verdade, o TC tem decidido que o núcleo essencial de garantias de defesa abrange o «direito a ver o caso examinado em via de recurso, mas não abrange já o direito a novo reexame de uma questão já reexaminada por uma instância superior» (cf. Ac. do TC n.º 565/07, DR II Série, de 03-01-2008). Por isso, deve aceitar-se que o legislador possa fixar um limite abaixo do qual não é possível um terceiro grau de jurisdição – duplo grau de recurso –, reservando o STJ para a apreciação dos casos mais graves. VIII - Tendo em consideração que: -o crime por que o arguido/recorrente foi condenado, de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art. 21.º, n.º 1, do DL 15/93, de 22-01, é punível com pena de 4 a 12 anos de prisão, pelo que, face à anterior redacção do art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP, admitia recurso até ao STJ; -a nova redacção dada àquela al. f) já não permite o recurso para o STJ, pois o acórdão da Relação (de que agora se pretende recorrer) é condenatório e confirmou – em recurso – a pena de 5 anos de prisão (portanto, não superior a 8 anos); -até ao momento em que foi proferido o acórdão da 1.ª instância, o arguido ainda não tinha o direito de recorrer, pois que tal direito só se concretiza quando é proferida a decisão recorrida e se esta lhe for desfavorável; tal recurso rege-se pelas normas vigentes nessa ocasião, pelo que não pode dizer-se que, agora, se esteja a retirar-lhe esse direito ao recurso (para o STJ); e a expectativa que o arguido tinha (de poder recorrer para o STJ se o acórdão da Relação fosse contrário às suas pretensões) não tem protecção jurídica (neste sentido cf. os Acs. deste STJ nos Procs. n.ºs 4562/07 e 4828/07, ambos da 5.ª Secção, e Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do CPP, pág. 997, anotação 12); é de concluir que o direito de defesa do arguido não fica limitado, nem se verifica um agravamento sensível da sua posição, com a aplicação imediata do art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP, na sua actual redacção, introduzida pela Lei 48/2007, de 29-08, e a consequente não admissão do presente recurso.
Proc. n.º 2150/08 -3.ª Secção
Fernando Fróis (relator)
Henriques Gaspar
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