ACSTJ de 15-07-2008
Tráfico de estupefacientes In dubio pro reo Recurso da matéria de facto Recurso da matéria de direito Competência da Relação Competência do Supremo Tribunal de Justiça Vícios do art. 410.º do Código de Processo Penal Conhecimento oficioso Duplo gra
I -A invocação do princípio in dubio pro reo só tem razão de ser se, depois do tribunal a quo reconhecer ter caído num estado de dúvida, contornasse um non licet decidindo-se, sem mais, no sentido mais desfavorável para o arguido. Mas já não assim se, depois de ultrapassadas as dúvidas que o pudessem ter assaltado, perfilhasse uma determinada convicção e decidisse coerentemente. II - O conhecimento de recurso em matéria de facto, interposto de decisão final do tribunal colectivo, é só da competência do Tribunal da Relação, mesmo tratando-se da mera invocação dos vícios do art. 410.º do CPP. III - Quando o art. 434.º do CPP nos diz que o recurso para o STJ visa exclusivamente matéria de direito, “sem prejuízo do disposto nos n.ºs 2 e 3 do art. 410.º”, não pretende, sem mais, com esta afirmação, que o recurso interposto para o STJ possa visar sempre a invocação dos vícios previstos neste artigo. Pretende simplesmente admitir o conhecimento dos vícios mencionados pelo STJ, oficiosamente, mesmo não se tratando de matéria de direito. O âmbito dos poderes de cognição do STJ é-nos revelado pela al. c), hoje al. d), do n.º 1 do art. 432.º, que restringe o conhecimento do STJ a matéria de direito. IV - Mesmo que se defenda a garantia, de incidência constitucional, de um duplo grau de jurisdição, também em matéria de facto, ela fica preservada, devendo simplesmente, se for o caso, optar o arguido pela interposição do recurso para a Relação, quando invocar os vícios do art. 410.º do CPP. V - Ao pronunciar-se de direito, nos recursos que para si se interponham, o STJ tem que dispor de uma base factual escorreita, no sentido de se apresentar expurgada de eventuais insuficiências, erros de apreciação ou contradições que se revelem ostensivos. Por isso conhece dos vícios aludidos por sua iniciativa. Aliás, tem mesmo de os conhecer, nos termos do Acórdão de Fixação de Jurisprudência de 19-10-1995, do Pleno das Secções Criminais deste STJ (publicado no DR n.º 298, I-A, de 28-12-95). VI - O erro notório na apreciação da prova, como tem sido repetido à saciedade na jurisprudência deste STJ, tem que decorrer da decisão recorrida ela mesma. Por si só, ou conjugada com as regras da experiência comum. Tem também que ser um erro patente, evidente, perceptível por um qualquer cidadão médio. E não configura um erro claro e patente o entendimento que possa traduzir-se numa leitura possível, aceitável, razoável, da prova produzida. VII - A infracção do art. 21.º do DL 15/93, de 22-01, constitui o que a doutrina tem apelidado de crime “exaurido”, “excutido” ou “de empreendimento”, em que o resultado típico se alcança logo, com aquilo que surge por regra como realização inicial do iter criminis, tendo em conta o processo normal de actuação, envolvendo droga que se não destine exclusivamente a consumo. A previsão molda-se, na verdade, em termos de uma certa progressividade, no conjunto dos diferentes comportamentos contemplados, que podem ir de uma mera detenção à venda propriamente dita. E por isso se tem defendido não ser configurável neste tipo de crime, que é de perigo abstracto, a figura da tentativa ou a da desistência (cf., v.g., Fernando Gama Lobo, in “Droga e Legislação – Notas Doutrina Jurisprudência”, pág. 47 e jurisprudência aí citada). VIII - Aceita-se que a natureza de crime de perigo abstracto, no crime do art. 21.º citado, se traduza numa antecipação da tutela penal, independentemente da efectiva lesão do bem jurídico em causa, a saúde pública, antecipação cifrada na punição dos primeiros actos de execução do agente. Sem se exigir, para preenchimento do tipo, o desenvolvimento da acção projectada por esse mesmo agente. Mas isto é uma coisa, outra completamente diferente será considerar-se o crime consumado, mesmo sem ocorrer o preenchimento do tipo, só porque o agente iniciou um qualquer processo executivo para cometimento do crime. IX - A consumação exige pois que se dê por provada, pelo menos, uma das ocorrências ali referidas, “Cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar, ou ilicitamente detiver” produto estupefaciente. Daí que se não veja como é que se possa dizer, de um ponto de vista dogmático, que o tipo em questão não é compatível com a figura da tentativa. X - Deter pressupõe, para o efeito em apreço, a possibilidade do exercício de um poder, ainda que só fáctico, sobre a droga. XI - Num caso em que: -os co-arguidos MR e VC se deslocaram a Portugal para providenciarem pelo transporte da droga com os recorrentes; -o recorrente EP contactou o recorrente RC para o efeito, sendo este sócio gerente de uma sociedade de transportes públicos rodoviários de mercadorias; -o recorrente RC disponibilizou um veículo da firma, mais um reboque, e foi ele mesmo que o conduziu; -o recorrente EP, depois de ficar a saber onde estava armazenado o produto, para lá se dirigiu no seu “Mercedes” e ajudou a abrir os armazéns e o recorrente RC também para lá levou o camião e o meteu de marcha atrás no armazém “com vista a iniciarem as operações de carregamento de cocaína”; -o recorrente RC tinha € 1000 no camião, destinados a ser despendidos em despesas com o transporte; -entretanto, a intervenção da polícia impediu a efectivação dos carregamentos ou a deslocação da droga no camião; a factualidade de que se dispõe não é suficiente para se ter por assente um real poder, especificamente por parte dos recorrentes, e até esse momento, sobre o estupefaciente; não é possível dizer, com os dados de facto fornecidos, que os recorrentes detiveram as perto de quatro toneladas de cocaína. XII - No entanto, sabemos que os dois recorrentes se propuseram participar no transporte da droga, como um com um papel próprio: o recorrente EP se propôs fazer transitar a droga e o recorrente RC se propôs transportar a droga. Daí que o preenchimento do crime, em relação a estes dois recorrentes, se tenha que ater às expressões do tipo que acabam de se destacar. XIII - Como porém a droga não chegou a ser transportada, nem chegou a mudar de lugar, está-se perante o cometimento do crime do art. 21.º sob a forma tentada. A actividade descrita em relação aos recorrentes EP e RC integra actos de execução a que se iriam seguir outros, não fora a intervenção da autoridade, que se pautariam no carregamento do camião e a deslocação da droga para outro sítio. XIV - Não se está perante meros actos preparatórios. O transporte da droga estava no plano psicológico dos recorrentes (Von Buri e Von Bar). Os actos praticados pelos recorrentes situaram-se temporalmente muito próximos do transporte projectado (Mittermeier). Os actos praticados eram unívocos e inequívocos por isso: só tinham explicação com vista ao transporte (Carrara). Os actos praticados ligam-se ao acto típico (no caso o transporte) numa unidade, segundo uma concepção natural (Frank), ou segundo uma normalidade social (Figueiredo Dias). Finalmente, se se considera que a consumação através do transporte põe em perigo o bem jurídico protegido, saúde pública, com os actos praticados ficou iminente esse perigo. Houve “grande perigo desse perigo”. XV - Com a imputação aos recorrentes do crime tentado, cumpre-se o desiderato da Convenção da ONU de 1988 (“Convenção de Viena”), ratificada por Portugal (DR n.º 205/91, I-A, de 06-09-1991), e que obriga a tipificar como crime o transporte de droga (art. 3.º, n.º 1, al. a), § i) e também “a organização, direcção ou financiamento” desse transporte (§ v).
Proc. n.º 1787/08 -5.ª Secção
Souto Moura (relator) **
António Colaço
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