ACSTJ de 10-07-2008
Abuso de confiança fiscal Crime continuado Alteração da qualificação jurídica Conhecimento oficioso Competência do Supremo Tribunal de Justiça Reformatio in pejus Falência Culpa Escolha da pena Fins das penas Pena de prisão Medida concreta da p
I -Mesmo não constituindo a qualificação dos factos objecto directo do recurso, não está o STJ impedido de se pronunciar oficiosamente acerca de tal qualificação jurídica, embora, no caso de recurso interposto pelo arguido, qualquer alteração nessa matéria, quando desfavorável ao recorrente, tenha por limite o princípio da proibição da reformatio in pejus. II - Existindo uma repetição trimestral da conduta omissiva, realizada por forma essencialmente homogénea [falta de entrega nos competentes serviços da administração fiscal do valor de IVA apurado] mas não revelando a matéria de facto qual tenha sido a solicitação exterior que determinou o agente a repetir a actividade, nem que tal solicitação tenha sido tão forte que tornou cada vez menos exigível a assunção pelo arguido de um comportamento diferente, haveria que afastar a existência de crime continuado. III - Todavia, a falência da sociedade e a ausência de património [a sociedade foi declarada falida e o processo de falência foi arquivado por inutilidade, dada a falta de bens] fazem pressupor que, pelo menos a partir de certo momento, passaram a verificar-se dificuldades de tesouraria, circunstância que explica o facto de o arguido ter passado a utilizar no normal giro da sociedade as disponibilidades financeiras resultantes da liquidação do IVA. IV - Aditando à matéria de facto provada a prova da falência da sociedade e respectiva falta de património, é lícito extrair a ilação de que as dificuldades de tesouraria, que acabaram por dar motivo à falência, funcionaram também como circunstância exterior que determinou o agente a praticar o crime. E não tendo os negócios da sociedade melhorado, vindo a ser decretada a falência, o passar dos trimestres com a consequente constituição de novas obrigações de entrega do IVA teriam determinado o arguido a repetir a actividade criminosa, sendo cada vez menos de lhe exigir que se comportasse de maneira diferente. V - Justificar-se-á, deste modo, que se proceda a uma unificação da conduta, considerando-se a existência de um crime continuado [de abuso de confiança fiscal]. VI - Por razões de prevenção geral [“A reacção penal não se compadece com a adopção de penas simbólicas que perpetuam um sentimento de impunidade, ou pecuniárias, pois não levam à interiorização, por parte do agente, da responsabilidade pelo acto danoso, subestimando-o” – Ac. de 21-12-2006, Proc. n.º 2946/06 -5.ª, relatado pelo Conselheiro Rodrigues da Costa] deverá optar-se pela aplicação ao recorrente de uma pena de prisão, suspensa na sua execução, por força do princípio da proibição da reformatio in pejus. VII - Uma vez que a suspensão da execução da pena, no domínio das infracções fiscais, está sempre sujeita ao pagamento, no mínimo, das prestações tributárias e legais acréscimos, (suspensão … condicionada ao pagamento, em prazo a fixar … – determina o art. 14.º do RGIT) o tempo de duração da medida não pode deixar de ter em consideração o valor das importâncias a pagar ao Estado. VIII - Tendo o legislador português, ao criminalizar as infracções fiscais, optado por uma concepção de carácter patrimonialista do bem jurídico tutelado, centrada na obtenção das receitas tributárias, procurando a administração fiscal a outrance obter o pagamento dos impostos em dívida, compreende-se que o regime da suspensão da execução da pena por infracções fiscais se afaste, neste ponto, do novo regime geral do CP, continuando o juiz, independentemente da duração da pena, a ter a faculdade de fixar, para a suspensão, um prazo que, na realidade, permita ao condenado proceder ao pagamento das prestações tributárias em falta, existindo, nesta matéria, uma nova especialidade no RGIT. IX - Por via da sucessão de leis no tempo, o n.º 5 do art. 50.º do CP é inaplicável, pois, sendo embora, em abstracto, a nova norma do art. 50.º CP, mais favorável ao agente, por ter retirado ao julgador a possibilidade de alargar o período de suspensão para limites superiores ao da pena aplicada de harmonia com o seu juízo de prognose, em concreto mostra-se tal regime desfavorável porque, ao restringir o período de duração da suspensão, obriga o condenado a um esforço financeiro bem maior para conseguir pagar, num período mais curto, o elevado montante da prestação tributária em dívida e legais acréscimos e, assim, beneficiar da suspensão da execução da pena que foi fixada.
Proc. n.º 103/06 -5.ª Secção
Arménio Sottomayor (relator) **
Souto Moura
António Colaço
Soares Ramos
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