ACSTJ de 10-07-2008
Pedido de indemnização civil Princípio da adesão Absolvição crime Direitos de personalidade Pessoa colectiva Abuso de liberdade de imprensa Títulos Liberdade de expressão Causas de exclusão da ilicitude Princípio da necessidade Princípio da prop
I -O art. 71.º do CPP («processo de adesão») consagra a interdependência das acções penal, para aplicação das reacções criminais adequadas, e civil, para a reparação dos danos patrimoniais e não patrimoniais a que a infracção tenha dado causa. II - A interdependência das acções significa que mantêm a independência nos pressupostos e nas finalidades (objecto), sendo a acção penal dependente dos pressupostos que definem um ilícito criminal e que permitem a aplicação de uma sanção, e a acção civil dos pressupostos próprios da responsabilidade civil; a indemnização de perdas e danos emergente de um crime é regulada pela lei civil (art. 129.º do CP) nos respectivos pressupostos, e só processualmente é regulada pela lei processual penal. A interdependência das acções significa, pois, independência substantiva e dependência (a «adesão») processual da acção cível ao processo penal. III - Aderindo ao processo penal, o pedido («a acção») para indemnização civil mantém, no entanto, alguma autonomia funcional, quer por regras procedimentais próprias a que está vinculado (art. 73.º e ss. do CPP), quer pela possibilidade de intervenção dos responsáveis meramente civis que, enquanto tais, seriam extraneus no processo penal. IV - A obrigatoriedade, como regra, da adesão (que só por excepção e nos casos enumerados cede – art. 72.º do CPP, permitindo-se, então, o uso autónomo dos meios processuais civis), determina, porém, para respeitar a finalidade funcional do princípio, que a autonomia qualitativa dos pressupostos se sobreponha e exija a continuidade instrumental do processo para apreciação do pedido de indemnização sempre que, cedendo por circunstâncias próprias a acção penal, se mantenham, ainda assim, em aberto possibilidades de verificação dos pressupostos da reparação civil. V - Os fundamentos da acção que, aderindo ao processo penal, ficam interdependentes, sendo qualitativamente diversos, têm, no entanto, que revelar uma unidade material que constitui a base relevante para a verificação, positiva ou negativa, dos respectivos pressupostos. A reparação fundada na prática de um crime reverte, na base, às correlações factuais e ao complexo de factos que constituem, ou são processualmente identificados como constituindo, um crime: tipicidade dos factos, ilicitude, imputação ao agente, dignidade penal. VI - Consistindo a ilicitude penal numa «ilicitude qualificada», não está excluído que uma base factual, com autonomia e identidade próprias, que não atinja a dimensão «qualificada» do nível de ilicitude, possa suportar ou exigir uma valoração de outro nível segundo uma outra fonte de antinormatividade, nomeadamente no plano dos pressupostos da responsabilidade civil. VII - Deste modo, se o arguido for absolvido de um crime e subsistir, apesar da absolvição, uma base factual com autonomia que suscite, ou permita suscitar, outros níveis de apreciação da normatividade como pressuposto ou fonte de indemnização civil (autonomia qualitativa dos pressupostos), haverá que consi-derar o pedido de reparação civil (dependência ou adesão especificamente processual) que se possa fundamentar nos mesmos factos – seja responsabilidade por facto ilícito, seja responsabilidade pelo risco. VIII - No que respeita a valores inerentes à personalidade, a lei tutela em geral, no art. 70.º do CC, a personalidade individual, determinado a protecção dos indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à personalidade física e moral, e especificamente protege no art. 484.º do CC aspectos particulares da personalidade moral, impondo a reparação dos danos causados por «quem afirmar ou difundir facto capaz de prejudicar o crédito ou o bom nome de qualquer pessoa singular ou colectiva». IX - O crédito ou o bom-nome são, pois, elementos que compõem e integram os direitos inerentes à personalidade, tanto no plano da seriedade e honestidade negocial, como na reputação, que é «a consideração dos outros na qual se reflecte a dignidade pessoal» e que pode ser afectada «independentemente de se atribuírem qualidades eticamente aviltantes». A reputação «representa a visão exterior sobre a dignidade de cada um, o apreço social, o bom-nome de que cada um goza no círculo das suas relações» ou da comunidade onde se insere (cf. Ac. do STJ de 12-01-2000, Proc. n.º 761/99). X - A ofensa ao crédito resultará da divulgação de facto que tenha como consequência a diminuição ou a afectação da confiança sobre a capacidade de cumprimento das obrigações da pessoa visada; a ofensa ao bom-nome abala o prestígio e a consideração social de que uma pessoa goze, perturbando o conceito e a apreciação positiva com que alguém é considerado no meio social onde se insere e se desenvolve a sua vida: o prestígio coincide, assim, com a consideração social das pessoas, que se projecta em perspectiva relacional entre a pessoa e o meio social. XI - Os direitos de personalidade não estão, por seu lado, excluídos da capacidade de gozo das pessoas colectivas, que têm direito ao bom-nome e à honra e consideração social – arts. 26.º, n.º 1, da CRP, e 70.º, n.º 1, e 72.º, n.º 1, do CC. O direito ao bom-nome das pessoas colectivas está, assim, protegido por lei, entendido no quadro da actividade que desenvolvem, ou seja, na imagem e consideração exterior, na honestidade da acção, na credibilidade e no prestígio social (cf. Ac. do STJ de 08-03-2007, Proc. n.º 566/07). XII - A afirmação ou divulgação de facto susceptível («capaz», na expressão da lei – art. 484.º do CC) de prejudicar o crédito ou o bom-nome constitui, pois, um facto ilícito que integra um dos pressupostos da obrigação de indemnizar com base em responsabilidade civil – art. 483.º, n.º 1, do CC. XIII - Na imprensa escrita, os títulos, bem como as fotografias ou outras representações gráficas, têm uma função de destaque preliminar, imediato, impressivo que se destina a transmitir uma mensagem de primeira aparência, simples e mais facilmente apreensível sobre determinados factos noticiados ou sobre comentários produzidos. XIV - Os títulos pretendem evidenciar os aspectos mais característicos da notícia, «apresentando-a de forma icástica e sintética», com «particular força impressiva», possuindo, por isso, muitas vezes, «uma acrescida eficácia corrosiva»; constituem uma «síntese» que «por antonomásia se identifica com o conteúdo total da notícia», com a consequência de muitas vezes a imagem ou a impressão resultante do título ser aquilo que se retira e se fica a saber (cf. Faria Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal, I, págs. 620-621). Por isso, para intensificar a força das impressões, o título exorbita, por vezes, dos factos narrados, em «escala variável» de distanciamento com maior ou menor deformação ou desvio dos textos a que se refere e que pretende apresentar de forma sintética. XV - Os títulos possuem, assim, um conteúdo informativo ou de mensagem que existe (pode existir) autonomamente na análise de conjunto com o conteúdo do artigo ou da notícia a que se referem, identificam ou titulam. Possuindo conteúdo autónomo, que pode descolar dos textos titulados que assinalam, possuem uma «intrínseca idoneidade» para afectar o direito ao crédito ou ao bom-nome, que pode ser particularmente reforçada pela natureza «sintética, apelativa e assertiva» que usualmente revelam (Faria Costa, ibidem, pág. 621). XVI - O grau de autonomia do conteúdo do título está, pois, dependente da leitura conjunta com o texto a que se refere, e da relação de confirmação, infirmação, proximidade ou afastamento, ou da natureza assertiva dos juízos de valor que impressivamente transmite, e do maior, menor ou mesmo inexistente fundamento nos factos narrados ou comentados no texto que enquadra, ou até na identificação externa com o conteúdo total da notícia. XVII - Na construção do título, o qualificativo «maus tratos», associado a «terror» e «pesadelo», transmite, por si, uma ideia de imensa e pavorosa gravidade, dada a carga significante ligada a «maus tratos» que é assimilada a crimes contra menores e vista como atitudes ou comportamentos em que se manifestam no mais elevado grau qualidades muito desvaliosas, sobretudo estando em causa uma instituição que se destinaria precisamente a garantir segurança, tranquilidade e bem-estar aos menores para o adequado desenvolvimento psicológico e educativo destes e para segurança e tranquilidade dos pais, pelo que a publicação dos títulos com o referido conteúdo constitui um facto «capaz» de prejudicar o crédito e o bom-nome, sendo, por isso, ilícito, com o sentido dos arts. 483.º, n.º 1, e 484.º do CC, salvo se concorrer alguma causa de justificação que afaste a ilicitude da afirmação ou divulgação. XVIII - A circunstância de a afirmação e a divulgação terem ocorrido através da imprensa introduz um elemento específico de decisão, porque a ilicitude será excluída se a divulgação constituir o exercício do direito de expressar opiniões ou o pensamento, ou o cumprimento do dever de informar. XIX - A liberdade de expressão e a liberdade de imprensa, não obstante o respectivo lugar constitucional (arts. 37.º e 38.º da CRP), estão, como outros direitos fundamentais, sujeitas a condições ou limites que são impostos pela consideração de outros valores ou direitos com semelhante dignidade constitucional, de entre os quais avultam, pela natureza e pela susceptibilidade de frequência do conflito, os direitos de personalidade, especialmente os direitos ao bom-nome e reputação, à imagem e à reserva da intimidade da vida privada e familiar, também constitucionalmente protegidos no art. 26.º, n.º 1, da CRP, e no art. 70.º e ss. do CC. XX - A coordenação, compatibilidade ou concordância prática em casos de confluência ou conflito devem considerar o «efeito recíproco de mútuo condicionamento entre normas protectoras de diferentes bens jurídicos», que impõe que «a violação do núcleo essencial do direito ao bom nome e reputação dificilmente poderá ser legitimada com base no exercício de um outro direito fundamental» (cf. Jónatas Machado, Liberdade de Expressão: Dimensões Constitucionais da Esfera Pública no Sistema Social, 2002, pág. 767). XXI - Na consideração do «efeito recíproco de mútuo condicionamento», a demonstração da existência de um interesse socialmente relevante, não estritamente político ou público, que justifique a conduta expressiva, constitui um elemento essencial de avaliação, uma vez que «dadas as dimensões públicas do crédito e do bom nome há que ponderar o impacto negativo efectivo da expressão nos bens jurídicos em presença, comparando-a com o impacto positivo das expressões na transparência e na verdade das relações sociais» (ibidem, pág. 770). XXII -Na interpretação e aplicação do art. 10.º da CEDH (que garante a «liberdade de expressão») no que respeita à liberdade de imprensa, a jurisprudência do TEDH tem revelado acentuada coerência em registo de protecção forte, por vezes numa função de verdadeira quarta instância – cf., v.g., os acórdãos Gomes da Silva c. Portugal, de 28-09-2000, Roseiro Bento c. Portugal, de 18-04-2008, e Azevedo c. Portugal, de 27-03-2008. XXIII -Tendo em consideração que: -no contexto em que foram produzidas, as expressões em causa («creche do terror» e «maus tratos denunciam terror e pesadelo na creche …») não têm relação nem correspondência factual, ou, ao menos, proporcionada, com os factos mencionados nos artigos que sinalizam ou titulam, não constituindo, por isso, uma forma forte, simples, imediata e sintética de apresentação dos artigos publicados no jornal C, pela amplitude da «escala» de afastamento que revelam entre a narrativa factual das disfunções ocorridas na creche e o conteúdo semântico e significante das expressões utilizadas; -as disfuncionalidades ou os incidentes relatados sobre o funcionamento da creche, embora geradores de legítima preocupação dos pais das crianças, não eram de natureza exponencialmente grave que indignasse, justificasse, ou estivesse «à medida» da «resposta» contida nas expressões dos títulos em causa; -embora a função da imprensa na revelação de situações que podem causar inquietação, exercendo o direito de denúncia em assuntos de interesse público e social relevante, possa justificar alguma dose de exagero ou mesmo de provocação, como meio de sublinhar a força da mensagem ou da revelação, não poderá chegar ao limite de afectar o direito ao bom nome sem qualquer necessidade ou proporcionalidade, usando modos verbais impressionistas cujo significado não tem escala de correspondência com as contingências narradas no artigo elaborado com rigor informativo e de acordo com as regras de cuidado, responsabilidade e deontologia da profissão de jornalista. Neste particular aspecto, tem de haver algum sentido grano salis, sem leituras de valor facial, que a adequação e a proporcionalidade não suportariam. Alguma «dose de exagero e mesmo de provocação», na interpretação da jurisprudência, tem de ser sem-pre compreendida no contexto, pela gravidade dos factos relatados e «na medida» da indignação que suscitem; é de concluir que ao títulos se constituem assim, autonomamente, como desproporcionados, ultrapassando manifestamente a necessidade própria ao exercício da liberdade de informação e expressão. XXIV -E, nestas circunstâncias, em leitura conjugada e em contexto comunicante dos arts. 10.º, § 2, da CEDH, e 483.º, n.º 1, e 484.º do CC, não se verifica uma causa de justificação, porque a publicação dos títulos com o referido conteúdo não integra, nas condições referidas, o exercício do direito de criação jornalística e expressão adequada e proporcional à afirmação da liberdade de imprensa. A publicação das expressões contestadas constitui um facto ilícito, e a reparação no âmbito da responsabilidade civil, se integrados os restantes elementos de que depende, uma ingerência que se impõe numa sociedade democrática, e proporcional à necessidade de protecção dos direitos da pessoa visada. XXV -Da conjunção normativa dos arts. 19.º a 21.º e 29.º da Lei 2/99, de 13-01 (Lei de Imprensa), sobre as competências e as obrigações do director, resulta que, por directa imposição da lei, a orientação e a determinação do conteúdo da publicação competem àquele – ou a quem legalmente o substitua nas ausências e impedimentos –, ficando constituído em primeiro e último responsável pelos «escritos ou imagens» inseridos em publicação periódica que dirija (cf., também, Ac. do STJ de 14-05-2002, Proc. n.º 4212/01, e Ac. do TC n.º 270/87, BMJ 369.º/250). XXVI -A imputação ao director da publicação do «escrito», que resulta da própria titularidade e exercício da função e dos inerentes deveres de conhecimento, integra, na construção conceptual, uma presunção legal, que dispensa o interessado da prova do facto (o conhecimento, a aceitação e a imputação da publicação) a que a presunção conduz (art. 350.º, n.º 1, do CC), admitindo, porém, que o onerado ilida a presunção mediante prova em contrário (art. 350.º, n.º 2, do CC). Deste modo, demandado civilmente o director, e vista a amplitude da formulação dos termos da responsabilidade e da consequente presunção, basta invocar os factos que integrem o ilícito (no caso, a publicação do «escrito») e a qualidade de director do demandado, cabendo a este ilidir a presunção, alegando e provando que o escrito foi publicado sem o seu conhecimento ou com oposição sua ou do seu substituto legal. XXVII -Não tendo o director do jornal, demandado civil, alegado sequer qualquer facto que, se provado, permitisse ilidir a base da presunção, há que concluir, segundo as regras materiais e processuais referidas, que agiu com culpa, por ter aceite, expressa ou tacitamente – ou por, no cumprimento dos deveres do cargo, não ter impedido –, a publicação dos textos questionados.
Proc. n.º 1410/08 -3.ª Secção
Henriques Gaspar (relator)
Armindo Monteiro
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