ACSTJ de 02-07-2008
Homicídio por negligência Violação do dever de cuidado Negligência Regras da experiência comum Erro notório na apreciação da prova Indemnização Responsabilidade pelo risco Nexo de causalidade Exclusão da responsabilidade objectiva Dever de vigilâ
I -As regras de precaução que estão subjacentes ao dever objectivo de cuidado, cuja violação integra a prática do crime negligente, podem ter uma fonte social ou uma fonte jurídica. São qualificadas de normativos sociais a negligência, a imprudência e a imperícia – cf. Fiandaca e Musco, Diritto Penale – Parte Generale, pág. 489 e ss. –, pois as regras da diligência, prudência e perícia não se encontram predeterminadas na lei ou noutra fonte jurídica, mas têm na sua génese a experiência da vida social. Haverá negligência se a regra de conduta violada prescreve uma actividade positiva; existirá imprudência na transgressão de uma regra de conduta de que advém a obrigação de não realizar uma determinada acção ou de a realizar em termos diferentes daqueles que foram efectivamente realizados; e a imperícia consiste numa forma de imprudência ou negligência qualificada e refere-se a actividades que exigem particulares conhecimentos técnicos. II - A fonte daquelas regras cautelares também pode ser jurídica. Na verdade, o mundo moderno assiste a uma crescente positivização das regras de prudência de forma a disciplinar as situações de perigo mais típicas, como é o caso da circulação estradal, com a consequente imposição de um catálogo de normas próprias para regular tal circulação. III - Assim, em sede de acidentes rodoviários, a imputação de um tipo de crime negligente terá subjacente a violação de um dever objectivo de cuidado que emergirá ou daquela fonte das regras de experiência comum, ou da violação das normas do CEst, ou da violação de ambas. Estamos inteiramente de acordo com a tese defendida por este STJ de que, tendo existido uma violação das normas estradais, se o evento produzido foi do tipo que a lei quis evitar quando impôs a disciplina violada, se deve presumir a negligência. IV - As regras da experiência comum não impõem necessariamente a conclusão de que, pelo facto de ser dia, a via ser uma recta e não existir obstáculo impedindo a visão, o acidente tenha na sua génese a desatenção do condutor. Tais regras apenas permitem a formulação de conjecturas sobre uma pluralidade de hipóteses explicativas do acidente. V - Num caso em que a recorrente faz apelo ao facto de, em seu entender, as circunstâncias de tempo, lugar e modo em que ocorreu o acidente imprimirem necessariamente a ideia de que a condutora do veículo, ao não se aperceber da vítima, estava desatenta e, consequentemente, provocou o evento, ou seja, o atropelamento do menor, o que está em causa é uma diversa inferência que a recorrente faz em relação aos factos considerados provados, com uma diferente convicção em termos probatórios e uma diversa valoração da prova produzida em audiência, o que não se pode confundir com erro notório na apreciação da prova. VI - No domínio da responsabilidade civil extracontratual, a formação da obrigação de indemnizar pressupõe, em princípio, a existência de um facto voluntário ilícito – isto é, controlável pela vontade do agente e que infrinja algum preceito legal, e um direito ou interesse, de outrem, legalmente protegido –, censurável àquele do ponto de vista ético-jurídico – ou seja, que lhe seja imputável a título de dolo ou culpa –, de um dano ou prejuízo reparável, e, ainda, de um nexo de causalidade adequada entre este dano e aquele facto (arts. 483.º, n.º 1, 487.º, n.º 2, 562.º, 563.º e 564.º, n.º 1, do CC). VII - Embora predomine a responsabilidade subjectiva, ou baseada na culpa, sancionam-se também situações excepcionais de responsabilidade objectiva ou pelo risco, isto é, situações independentes de qualquer dolo ou culpa da pessoa obrigada à reparação, entre as quais se situa a responsabilidade pelos danos causados por veículos de circulação terrestre (arts. 483.º, n.º 2, e 503.º a 508.º do CC). VIII - São pressupostos desta modalidade de responsabilidade civil: a prática pelo agente de um facto; a existência de um dano reparável na esfera jurídica de um terceiro e o nexo de causalidade adequada entre o referido facto e o dano (arts. 499.º, 563.º e 564.º, n.º 1, do CC). Aquele que tiver a direcção efectiva de qualquer veículo de circulação terrestre e o utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário, responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que se não encontre em circulação (art. 503.º, n.º 1, do CC). IX - Tais danos, que a pessoa responsável é obrigada a indemnizar, são os que tiverem como causa jurídica o acidente provocado pelo veículo, ou seja, compreende-se no risco tudo o que se relacione com a máquina enquanto engrenagem de complicado comportamento. Fora do círculo de danos abrangidos pela responsabilidade ficam os que não têm conexão com os riscos específicos do veículo, os que são estranhos aos meios de circulação ou transporte terrestre, entendendo-se como tal os que foram causados pelo veículo como poderiam ter sido provocados por qualquer outra coisa móvel. X - Assim, não estando demonstrados factos que fundamentem a violação de um dever objectivo de cuidado, ou seja, inexistindo qualquer demonstração de culpa do condutor, estamos perante a eclosão de um evento indissociavelmente ligado à circulação de um veículo automóvel (responsabilidade pelo risco), mas ficando em crise um pressuposto da responsabilidade civil por facto ilícito. XI - Resulta do art. 505.º do CC que a lei não exige que o acidente seja imputável ao lesado, e/ou a terceiro a título de dolo ou de culpa para que seja excluída a referida responsabilidade pelo risco, bastando para o efeito que ele seja devido, em termos de causalidade, a facto de um ou de outro. XII - A possibilidade de concurso, em acidente de viação, do perigo especial do veículo com facto de terceiro ou da vítima (culposo ou não), de modo a conduzir a uma repartição da responsabilidade, ou a uma atenuação da obrigação de indemnizar fundada no risco, é rejeitada, com o argumento de não ser justa, nem ter consagração legal. Se o acidente ocorre porque o lesado, ou terceiro, não observaram as regras de prudência exigíveis em face do perigo normal do veículo, cessa a responsabilidade do detentor, porque, não obstante o risco inerente à viatura, os danos provêm de facto de outrem. A responsabilidade (objectiva) imposta ao detentor do veículo é já de tal modo severa que não é justo nem razoável «sobrecarregá-la», ainda, com os casos em que, não havendo culpa dele, o acidente é imputável a quem não adoptou as medidas de prudência exigidas pelo risco da circulação. XIII - O que se coloca é, não propriamente um problema de culpa, mas, antes, um problema de causalidade, uma vez que o relevante não é saber se o lesado é responsável pelos danos provenientes dos factos que haja praticado, mas sim se esses factos são consequência do facto por si praticado, se o evento danoso é atribuível à sua actuação. XIV - Relevará aqui, porque de causalidade se trata, a necessidade de, num juízo de prognose posterior objectiva, formulado a partir das circunstâncias conhecidas e cognoscíveis de um observador experiente, se poder afirmar que o acto do lesado, tendo em conta a actuação do lesante, «favorecia aquela espécie de dano, surgindo este, pois, como uma consequência provável ou típica daquele facto». É preciso, em suma, que o comportamento do lesado se não mostre indiferente para a verificação do dano, o que sucederá se «segundo o decurso normal das coisas e da experiência da vida, não eleva, nem favorece, nem modifica os riscos da verificação do dano», pois que, se assim for, haverá inadequação – cf. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, pág. 518, Rui Alarcão, Obrigações, Lições, pág. 328, e Brandão Proença, A Conduta do Lesado…, pág. 445. XV - Essa relação de imputação tem de ser objectiva, configurada em concreto nos termos do art. 505.º do CC (exclusão da responsabilidade objectiva), e não com base numa presunção, nomeadamente a afirmada no art. 491.º do CC (responsabilidade das pessoas obrigadas à vigilância de outrem), cujo campo de aplicação é totalmente distinto, incidindo sobre os danos produzidos pela pessoa sujeita à vigilância de outrem. XVI - Em concreto, a responsabilidade do progenitor apenas poderá ser afirmada a partir do momento em que se demonstre que este não respeitou os deveres que sobre si impendiam, derivados da sua qualidade de pai, e da menoridade da vítima, sendo certo que o dever de vigilância não significa um controlo omnipresente, tutor de toda e qualquer actividade ou movimento do menor, mas uma obrigação com a finalidade de prevenir os perigos que lhe possam advir, através dos cuidados normais, a apreciar segundo as circunstâncias de cada caso. XVII - Numa situação em que da materialidade considerada provada apenas consta que, antes da ocorrência do acidente, o menor H se encontrava na varanda que tem acesso para a rua, tendo sido advertido pelo pai para não sair, desconhecendo-se por completo o circunstancialismo que rodeou os factos, desde esse momento até ao atropelamento pela viatura, não está demonstrado que aqueles cuidados não tenham existido – bem como não está demonstrado o seu contrário –, o que, à partida, invalida qualquer afirmação da existência de um acto ou omissão do pai do menor ao qual seja imputável a eclosão do sinistro. XVIII - De qualquer forma, o art. 491.º do CC respeita à presunção de culpa in vigilando relativa aos danos causados a terceiro e não aos danos causados à pessoa vigiada. Quanto a estes vigoram os princípios gerais, pois que, em relação às próprias pessoas obrigadas à vigilância de outrem, elas não são apenas responsáveis pelos danos que este cause a terceiro, nos termos do art. 491.º, mas respondem também, por força do disposto no art. 486.º, pelos danos que as pessoas vigiadas sofram com a omissão do dever de vigilância (v.g., se elas se ferirem ou morrerem em consequência dessa omissão). XIX - Mas, mesmo admitindo que, para além da responsabilidade pelo risco inerente à condução do veículo, estivesse demonstrada a existência do concurso de culpa de terceiro, sempre seria de perfilhar a perspectiva inovadora desenhada no Ac. deste STJ de 04-10-2007, interpretação progressista ou actualista do art. 505.º segundo a qual importa que se tenha em conta (art. 9.º, n.º 1, do CC) a unidade do sistema jurídico, isto é, que se considere o sistema jurídico global de que a norma faz parte e, neste, o acervo de normas que consagra o concurso da culpa da vítima com o risco da actividade do agente, e se repute adquirida, como princípio geral e universal do pensamento jurídico contemporâneo, em que a responsabilidade pelo risco é enfocada a uma nova luz, iluminada por novas concepções de solidariedade e justiça, e acolhida naquele normativo, a regra do concurso da culpa do lesado com o risco próprio do veículo, e as condições do tempo em que tal norma é aplicada. XX - É assim que o acórdão referido acaba por concluir que as regras sobre a responsabilidade civil objectiva, nomeadamente os arts. 503.º, 505.º, e 570.º do CC, consagram a possibilidade de concurso do risco do condutor do veículo com a conduta culposa do lesado, e que a responsabilidade pelo risco só é excluída, tal como entende Calvão da Silva, quando o acidente for imputável – i.e., unicamente devido, com ou sem culpa – ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte (exclusivamente) de força maior estranha ao funcionamento do veículo. Não sendo esse o caso, logrará aplicação, na fixação da indemnização, o art. 570.º. XXI - No que respeita à determinação do valor do direito à vida, a jurisprudência, sem nunca ter caído na arbitrariedade, tem feito apelo à regra da equidade, verificando-se hoje em dia uma tendência para acentuar o valor absoluto de um direito fundamental, e que é a génese de todos os outros direitos, perante objectos referenciados como parâmetros da sociedade de consumo em que vivemos. Tem sido percorrido um caminho de afinamento de critérios jurisprudenciais que leva, hoje em dia, à consideração de valores situados cerca dos € 50.000, dependendo o montante concreto de factores subjacentes àquele apelo à equidade. Esse montante afigura-se ajustado em relação ao direito à vida de uma criança que, tudo o indicava, tinha o futuro à sua espera.
Proc. n.º 2156/08 -3.ª Secção
Santos Cabral (relator)
Oliveira Mendes
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