Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa
Actualidade | Jurisprudência | Legislação pesquisa:


    Sumários do STJ (Boletim) - Criminal
Procurar: Assunto    Área   Frase
Processo   Sec.                     Ver todos
ACSTJ de 25-06-2008
 Infracção de regras de construção Agravação pelo resultado Morte Pedido de indemnização civil Recurso interlocutório Recurso penal Regime de subida do recurso Aplicação subsidiária do Código de Processo Civil Responsabilidade civil emergente de cr
I -De acordo com o art. 407.º, n.º 1, al. g), do CPP, “Sobem imediatamente os recursos interpostos (…) de despacho que não admitir a constituição de assistente ou a intervenção de parte civil. E, nos termos do n.º 3 do preceito, “Quando não deverem subir imediatamente, os recursos sobem e são instruídos e julgados conjuntamente com o recurso interposto da decisão que tiver posto termo à causa”.
II - O recurso interposto pelo demandado, da decisão interlocutória [que negou ao recorrente o pedido da intervenção provocada nos autos da Companhia de Seguros], e o recurso interposto pela arguida, da decisão final [que a condenou, pela prática de um crime de infracção de regras de construção, agravado pelo resultado, p. e p. pelos arts. 277.º, n.ºs 1, al. a), e 2, e 285.º do CP, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 anos, e que condenou a arguida e o demandado a pagarem, solidariamente, à assistente, a quantia de € 62 500, acrescida de juros de mora], foram admitidos no mesmo despacho, ambos a subir imediatamente e nos próprios autos.
III - Se o recurso da decisão interlocutória tivesse sido admitido imediatamente subiria também imediatamente, com efeito devolutivo, e teria sido conhecido pelo Tribunal da Relação. Ora, o facto de o demandado não ter interposto recurso da decisão final, obviamente no tocante ao pedido cível, não deverá precludir a possibilidade do recurso já por si interposto ser conhecido, juntamente com o recurso interposto da decisão final. Mesmo que este tenha sido interposto por outrem, no caso a arguida.
IV - O CPP não tem disposição aplicável à situação, mas, por força do disposto no seu art. 4.º, importará aplicar as normas do processo civil que se harmonizem com o processo penal e que resolvam questão paralela.
V - Nos termos do n.º 1 do art. 735.º do CPC, os agravos a que o artigo anterior, o art. 734.º, não atribua uma subida imediata, sobem “com o primeiro recurso que, depois de eles serem interpostos, haja de subir imediatamente”. E, de acordo com o preceito, este recurso ulterior não tem evidentemente, que ser interposto pelo mesmo agravante. Mais, de acordo com o n.º 2 do art. 735.º citado, o agravo até poderia subir, mesmo não havendo recurso da decisão que ponha termo ao processo, se tivesse interesse para o agravante, independentemente daquela decisão final.
VI - No caso em apreço, não se está perante um recurso, concretamente o da decisão interlocutória, a que a lei negue subida imediata. Mas, seja como for, está-se perante recurso que, de facto, não teve subida imediata, e acabou por subir com o recurso interposto da decisão final, interposto pela arguida. Quanto ao facto de o demandado não ter, ele mesmo, interposto recurso da decisão final, designadamente impugnando uma condenação solidária, em indemnização a que a Companhia de Seguros foi estranha, daí não se poderá aduzir que aceitou a não responsabilização desta entidade. O acórdão final não podia condenar uma entidade que não era sujeito do processo, pelo que, nesse específico ponto, estava a salvo de uma impugnação em sede de recurso.
VII - O art. 73.º, n.º 1, do CPP refere que “o pedido de indemnização civil pode ser deduzido contra pessoas com responsabilidade meramente civil e estas podem intervir voluntariamente no processo penal”. Do facto de se não ter incluído ali qualquer referência à intervenção provocada, já se pretendeu concluir que esta não podia ter lugar, no âmbito do pedido cível formulado em processo penal. A redacção do preceito nunca sofreu alterações e, dos trabalhos preparatórios do CPP, parece poder retirar-se uma vontade legislativa nos termos da qual o artigo não incluía a previsão da intervenção provocada, mas sem que daí se pudesse extrair que a mesma não tinha lugar em processo penal, porque caberia na previsão do n.º 3 do art. 74.º (referido por Simas Santos e Leal-Henriques, in Código de Processo Penal Anotado, 1.º vol., pág. 402).
VIII - É certo que a intervenção espontânea e a provocada não se equivalem, do ponto de vista do processamento, porque ao interveniente chamado tem que ser dada a oportunidade de se pronunciar quanto a tal chamamento, o que não acontece quando a intervenção é da iniciativa do próprio sujeito chegado ao processo. No entanto, parece-nos precipitada a conclusão de que o legislador quis impedir por completo a intervenção provocada em processo penal. Entendemos, na verdade, que a sua admissibilidade deve ser ponderada caso a caso, em face, exactamente, de preocupações de celeridade, de economia processual, e da ausência de alternativas processuais para se fazer valer a pretensão que estiver em causa.
IX - Quanto à primeira exigência, recorde-se que é a própria lei processual penal a prever a remessa das partes para os meios cíveis, em nome dum rigor da decisão, que no caso fosse incompatível com o enxerto em processo penal, ou então, por razões de celeridade (n.º 3 do art. 82.º).
X - A revogação pelo presente recurso da decisão de 21-04-2005, que não admitiu a intervenção, implicaria fazer regredir o processo a uma fase anterior à da elaboração da sentença. O interesse da vítima em ver ressarcido o dano moral sofrido, por factos que já são de 2000, não se compadece com mais delongas neste processo. Por outro lado, independentemente de se saber se a chamada, a Companhia de Seguros, pode ser responsabilizada em acção de regresso, pelos danos morais sofridos pela mãe da vítima, sempre essa Companhia de Seguros poderá ser accionada, se for esse o caso, em acção cível em separado. Pelo exposto se entende dever ser mantida a decisão recorrida, que indeferiu o pedido de intervenção provocada.
XI - A dogmática penal acolheu um princípio de ofensividade e não de ofensa dos bens jurídicos, porque a tutela destes bens reclama, não só a punição de quem os viole, como de quem, pelo seu comportamento, represente apenas uma potencial lesão desses bens jurídicos. Tal antecipação de tutela aflora, por exemplo, na punição da tentativa, sendo patente na introdução dos crimes de perigo.
XII - Enquanto que nos crimes de dano ou de lesão a consumação típica da agressão representa uma perda directa de valor, nos crimes de perigo o crime consuma-se havendo apenas um risco de lesão de interesses.
XIII - Depois, enquanto que certas condutas, segundo a experiência comum, criam um perigo que lhes é próximo, porque é uma sua resultante normal, outras existem em que a acção básica não gera, sem mais, um potencial dano ulterior. Ali, o perigo não precisa de ser elemento do tipo porque se presume juris et de jure, é só o motivo da incriminação, e o crime é de perigo abstracto. Aqui, será preciso demonstrar, em cada caso, que alguém ou algo correu um efectivo perigo. O resultado da acção é o perigo para o bem jurídico, e o perigo torna-se elemento do tipo, que é de crime de perigo concreto (cf. Maurach/Zipf, Derecho Penal – Parte General – I, pág. 358). Em relação a esta última espécie de infracções, o elemento subjectivo tem que ser preenchido, a título de dolo ou negligência, tanto em relação à acção básica como em relação ao perigo concreto que ela gerou.
XIV - No caso concreto, provou-se que: -a arguida é engenheira civil e era a chefe da Divisão de Águas da Câmara Municipal de L…; -a Assembleia Municipal de L… deliberou a aprovação genérica do plano de actividades, no qual se incluía a rubrica de reparação e ampliação da rede de saneamento, da qual fazia parte a realização de uma obra de instalação de águas residuais, consistindo na abertura de uma vala e na instalação de colectores, a levar a cabo no lugar da C…, freguesia de B…, em área desta comarca de L…, complementando tais trabalhos com a execução do arruamento; -a execução da obra iniciou-se no dia 15-03-2000 e prosseguiu até ao dia 16-03-2000, data em que ocorreu o desprendimento de uma massa compacta de solo, que comprimiu e soterrou parcialmente, contra uma das paredes da própria vala, um dos trabalhadores que se encontrava no seu interior e que, como consequência directa, sofreu lesões que lhe determinaram, de forma necessária e directa, a morte; -a arguida sabia que a intersecção da escavação de uma nova vala com o terreno de uma vala anteriormente aberta no mesmo local era susceptível de causar o descolamento entre o terreno natural e o aterro e consequentemente o colapso e desprendimento deste último terreno; e sabia que, devido a esse facto, no planeamento e execução da obra, constitui uma regra de boa execução técnica a de se informar sobre a existência da anterior abertura de outras valas e de determinar, em conformidade, o local da abertura da nova vala, por forma a que esta não interceda com aquelas; não obstante ter conhecimento destes factos e da inexistência do cadastro das valas referido, não efectuou qualquer diligência no sentido de se informar sobre a existência ou não da abertura de outras valas anteriormente por outros departamentos que não o seu, naquele mesmo armamento, confiando que tal não se verificava por se tratar de um armamento recente e por, em regra, as caixas das águas pluviais serem visíveis.
XV - Por outro lado, não se deu por provado que a arguida sabia que a obra a executar implicava a verificação de riscos especiais para a segurança e saúde dos trabalhadores que a executavam, já que os expunha a riscos de soterramento, como veio a ocorrer. No caso concreto, a criação do perigo foi negligente e situou-se mesmo ao nível da negligência inconsciente.
XVI - No tocante à acção base, ela cifra-se num comportamento omissivo. Prevê a lei que, num contexto de “planeamento, direcção ou execução de construção, demolição ou instalação, ou na sua modificação”, alguém infrinja “regras legais, regulamentares ou técnicas que devam ser observadas”. Ora, o compor-tamento omissivo radica, fundamentalmente, na não observância de tais regras, pelo que é em relação a tal inobservância que se terá que analisar o elemento subjectivo.
XVII - A regra omitida foi, no caso, a de verificação de anteriores aberturas de valas no local, para que a consequência a evitar – proximidade das valas – se não concretizasse.
XVIII - Se a agente sabia da existência da regra em foco e a não quis cumprir, porque, por absurdo, quisera que as valas ficassem próximas ou se conformara com a necessidade dessa proximidade, o dolo teria sido, respectivamente, directo ou necessário. Mas se a agente sabia da existência da regra e desconhecia a existência de valas (para além daquela que se tinha destinado ao abastecimento de água), das duas uma. Ou admitia que existissem outras valas e se conformou com a respectiva proximidade, pouco lhe importando as consequências, ou, pelo contrário, confiou em que não existissem outras valas, sendo certo que lhe não agradava a hipótese da proximidade aludida. No primeiro caso estaríamos perante uma situação de dolo eventual e, na segunda, de negligência consciente. Claro que, se a agente nem sequer tivesse tomado consciência da existência da regra técnica em foco, haveria negligência inconsciente.
XIX - No caso em análise, é de excluir que a arguida desconhecesse a necessidade de verificar a existência de valas anteriores, e portanto desconhecesse a existência da regra técnica de precaução, correlativa. Muito mais é de excluir que quisesse que a vala a escavar ficasse próxima de outra que sabia existir ali. Assim tudo se cifrará em apurar se a agente admitiu a existência de outras valas e com isso se conformou ou se, pelo contrário, esperou que elas não existissem no local, para além de tal comportamento violar um dever de cuidado, na circunstância, exigível.
XX - A factualidade provada releva no sentido de que o crime cometido tenha sido o do art. 277, n.ºs 1, com referência à al. a), e 3, do CP.
Proc. n.º 1398/06 -5.ª Secção Souto Moura (relator) ** António Colaço Soares Ramos Simas Santos