ACSTJ de 25-06-2008
Detenção de estupefacientes Despenalização Contra-ordenação Consumo de estupefacientes Tráfico de estupefacientes Interpretação
I -O arguido detinha, a 10-10-2004, 26,939 g de resina de canabis, para além de € 65 em dinheiro. Provou-se que o estupefaciente era para seu consumo. Importa saber se cometeu alguma infracção e qual. II - O DL 15/93, de 22-01, relativo ao “Tráfico e consumo de estupefacientes” criou um tipo de crime matricial, o do art. 21.º, com referência ao qual se previram os tipos derivados dos arts. 24.º, 25.º e 26.º. Estes distinguem-se, sobretudo, pela adição de circunstâncias qualificativas agravantes, pela diminuição sensível da ilicitude e pela circunstância de o agente traficar para consumir, respectivamente. No art. 40.º do diploma previu-se o crime de consumo de estupefacientes, num capítulo, o IV, reportado a “Consumo e tratamento”, e por isso é que, no art. 21.º citado, a propósito da descrição dos comportamentos que integram o tipo, se acrescentou, “fora dos casos previstos no art. 40.º”. Portanto, a proble-mática do consumo era tratada de modo privilegiado à parte, mantendo-se embora numa área de criminalização. III - A Lei 30/2000, de 29-11, no seu art. 28.º, revogou o art. 40.º do DL 15/93, de 22-01, “excepto quanto ao cultivo”. Ao mesmo tempo, previu o consumo como actividade ilícita, mas em termos contraordenacionais, no seu art. 2.º. Só que, segundo o n.º 2 do dito art. 2.º, “Para efeitos da presente lei, a aquisição e a detenção para consumo próprio das substâncias referidas no número anterior não poderão exceder a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de dez dias”. IV - O art. 9.º e Mapa Anexo, da Portaria 94/96, de 26-03, elucidam sobre as quantidades a ter em conta para efeito do que deve ser tido por consumo médio individual diário. No tocante a resina de canabis é de 0,5 g. Portanto, a quantidade apreendida nestes autos daria para cerca de 53 dias. V - A partir da entrada em vigor da Lei 30/2000, de 29-11, suscitaram-se fundadas dúvidas sobre o regime a aplicar, aos casos em que houvesse detenção só para consumo, e de quantidades de estupefaciente superiores ao necessário para o período de dez dias, à luz da Portaria indicada. VI - As opiniões divergiram tanto na jurisprudência como na doutrina, desde quantos entenderam ter-se operado não só uma descriminalização, como uma total despenalização do consumo ou detenção para consumo (sempre excluído o caso do cultivo), a quantos consideraram que estaria em causa sempre uma contra-ordenação, e independentemente da droga detida. Também se defendeu que o art. 40.º do DL 15/93, de 22-01, teria ficado só parcialmente revogado, mantendo-se em vigor na parte não prevista no art. 2.º da Lei 30/2000, de 29-11. Finalmente, já se considerou que o art. 21.º e, eventualmente, até com mais probabilidades, o art. 25.º, se aplicariam também a casos de consumo, estando em causa quantidades superiores a dez doses diárias. VII - O art. 1.º da Lei 30/2000, de 29-11, determina no seu n.º 1 o objecto do diploma, como a definição do regime jurídico aplicável ao consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, bem como a protecção sanitária e social das pessoas que consomem tais substâncias sem prescrição médica. No n.º 1 do art. 2.º da Lei diz-se que “o consumo, a aquisição e a detenção para consumo próprio de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas referidas no artigo anterior constituem contra-ordenação”. Mas, como se viu, logo o n.º 2 acrescenta: “Para efeitos da presente lei, a aquisição e a detenção para consumo próprio das substâncias referidas no número anterior não poderão exceder a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de dez dias”. VIII - O n.º 2 do art. 2.º da Lei 30/2000 é claro quando usa a expressão “Para efeitos da presente lei”. Um dos efeitos da lei em causa é a abordagem do consumo como contra-ordenação. Se a quantidade for superior ao correspondente ao consumo para dez dias, a lei quis que os seus efeitos se não fizessem sentir, é dizer, pretendeu que a situação ficasse excluída da disciplina que introduziu, porque adopta uma expressão categórica e imperativa: “não poderão exceder”. IX - Com o afastamento da responsabilidade contra-ordenacional, nos termos referidos, ao caso em apreço, fica a questão de saber se o crime cometido foi o do art. 40.º do DL 15/93, de 22-01, ainda parcialmente em vigor, ou o do art. 21.º (e mais provavelmente o do art. 25.º do mesmo DL). X - De notar que o art. 21.º está epigrafado “Tráfico e outras actividades ilícitas”. E, efectivamente, o conteúdo do preceito é bem compatível com comportamentos que se não analisam na acepção corrente de tráfico: vender, pôr à venda, comprar para vender. Importante é que inexiste no art. 21.º um dolo específico. Não se exige aí um qualquer fim lucrativo, e a vulgarização da expressão “tráfico” para designar os crimes dos arts. 21.º, 24.º, 25.º e 26.º, resultou muito mais da oposição à previsão do consumo do art. 40.º. Revogado este art. 40.º (excepto quanto ao cultivo), passaram a ser excluídos da previsão do art. 21.º, e tipos derivados, apenas os comportamentos a que o legislador quis continuar a proporcionar tratamento diferenciado, traduzido em protecção do consumidor. Ora, o tratamento privilegiado do consumidor antes previsto no art. 40.º, passou a estar agora só no art. 2.º da Lei 30/2000. Mas, como já se viu, com a limitação do seu n.º 2. XI - O caminho que vimos seguindo levar-nos-ia a concluir que se optou, em termos de política criminal, por um endurecimento inaceitável no tratamento da posição do consumidor. Estando em causa o consumo, sempre se poderia aduzir que, para introduzir uma maior segurança, o legislador quis que a situação relevante como consumo, fosse aquela em que não estivesse em causa mais do que certa quantidade de droga. Nesse caso, a reacção sancionatória distanciar-se-ia, com clareza, da dos arts. 21.º e 25.º do DL 15/93, sendo muito mais branda. Do crime do art. 40.º passa-se para uma contra-ordenação. Em todas as restantes situações que a lei não quis tratar como de consumo relevante, à luz do art. 2.º, n.º 2, da Lei 30/2000, ter-se-ia operado um efectivo endurecimento da reacção, no caso, criminal. Será de acatar esta conclusão? XII -Esta via apresenta-se-nos com uma dificuldade que se não vê como ultrapassar. É que o cultivo de produto estupefaciente para consumo, em qualquer quantidade superior à exigida para dez dias, constitui indubitavelmente o crime do n.º 2 do art. 40.º. Mas a mera detenção de produto estupefaciente para consumo durante os mesmos mais de dez dias, representaria o cometimento do crime, pelo menos, do art. 25.º do DL 15/93. O primeiro é punido com a pena de prisão até um ano e o segundo com a pena de prisão de um a cinco anos. Não pode ser. XIII - Chegaremos à manutenção em vigor, parcial, do n.º 2 do art. 40.º, através da redução teleológica ou da interpretação restritiva da norma revogatória do art. 28.º da Lei 30/2000, de 29-11, tal como aliás a norma do n.º 2 do art. 40.º do DL 15/93, de 22-01, teria que ser interpretada restritivamente, porque as quantidades correspondentes a um consumo próprio, de entre 3 e 10 dias, não caberiam na previsão do crime. É certo que o art. 28.º da Lei citada, não se limita a revogar em bloco o apontado art. 40.º, antes prevê explicitamente uma excepção, a do cultivo de droga. Ora, por via interpretativa, o aplicador irá então criar outra excepção, não resultante expressamente da letra da lei: o n.º 2 do art. 40.º permanece ainda em vigor, para além do cultivo, no tocante a simples consumidores, mas só para os casos em que estivessem em causa quantidades de droga superiores ao necessário para dez dias (e não ao necessário para três dias, tal como resulta da redacção da norma). XIV - Crê-se legítima, como forma de evitar resultados completamente absurdos, uma verdadeira redução teleológica da norma do n.º 2 do art. 40.º do DL 15/93, de 22-01. Um pensamento legislativo integrado no espírito do sistema, que quis manter a ilicitude do consumo, que considerou que a reacção adequada para o consumo era de tipo contra-ordenacional, mas que também teve presente a possibilidade de, a coberto de uma justificação com o consumo, se estar também a proporcionar droga a outrem. Crê-se, por outro lado, que a posição adoptada faculta uma proporcionalidade adequada entre a gravidade da ilicitude das condutas, e as reacções sancionatórias, na área global do consumo e tráfico de estupefacientes. XV - Entendemos, portanto, que no caso dos autos o arguido cometeu o crime do n.º 2 do art. 40.º do DL 15/93, de 22-01.
Proc. n.º 4684/06 -5.ª Secção
Souto Moura (relator) **
António Colaço
Soares Ramos
Simas Santos
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