ACSTJ de 19-06-2008
Homicídio Homicídio qualificado União de facto Violência doméstica Admissibilidade de recurso Acórdão da Relação Decisão que não põe termo à causa Duplo grau de jurisdição Competência do Supremo Tribunal de Justiça Competência da Relação Recurso
I -É irrecorrível, conforme estabelece a al. c) do n.º 1 do art. 400.º, por referência à al. b) do art. 432.º, ambos do CPP, a decisão da Relação tomada em recurso que, tendo absoluta autonomia relativamente às demais questões suscitadas, não pôs termo à causa por não se ter pronunciado sobre a questão substantiva que é o objecto do processo. Para efeito da recorribilidade, mostra-se indiferente a forma como o recurso foi processado e julgado pela Relação, isto é, se o recurso foi processado autonomamente ou se a decisão se encontra inserida em impugnação da decisão final (cf. o Ac. do STJ de 09-01-2008, Proc. n.º 2793/07 -3.ª, e o Ac. de 21-05-2008, Proc. n.º 414/08 -5.ª). II - Este entendimento respeita a garantia constitucional do duplo grau de jurisdição e encontra-se em perfeita sintonia com o regime traçado pela Reforma de 1998, e mantido na Reforma de 2007, para os recursos para o STJ: sempre que se trate de questões processuais ou que não tenham posto termo ao processo, o legislador pretendeu impedir o segundo grau de recurso, terceiro de jurisdição, determinando que tais questões fiquem definitivamente resolvidas com a decisão da Relação. III - O reexame pelo Supremo Tribunal da matéria de direito exige a prévia definição pela Relação dos factos provados, se estes tiverem sido impugnados, ficando com a decisão da Relação esgotados os poderes de apreciação da matéria de facto, a menos exigindo a lei, para a prova de certo facto, determinada espécie de prova ou que fixando a força de determinado meio de prova, estes comandos não tenham sido respeitados. IV - Fora das hipóteses previstas no art. 410.º do CPP, cujo fundamento é oficioso, não podendo servir de fundamento ao recurso, o STJ não pode investigar se o tribunal de 1.ª instância proferiu uma decisão justa no campo da matéria de facto. V - O tipo legal fundamental dos crimes contra a vida encontra-se descrito no art. 131.º do CP, sendo desse preceito que a lei parte para, nos artigos seguintes, prever as formas agravada e privilegiada, fazendo acrescer ao tipo-base, circunstâncias que qualificam o crime, por revelarem especial censurabilidade ou perversidade ou que o privilegiam por constituírem manifestação de uma diminuição da exigibilidade. VI - A especial censurabilidade ou perversidade, sendo conceitos indeterminados, são representadas por circunstâncias que denunciam uma culpa agravada e são descritas como exemplos-padrão. A ocorrência destes exemplos não determina, todavia, por si só e automaticamente, a qualificação do crime; assim como a sua não verificação não impede que outros elementos possam ser julgados como qualificadores da culpa, desde que sejam substancialmente análogos aos legalmente descritos. (Ac. de 07-07-2005, Proc. n.º 1670/05 -5.ª). VII - O comportamento do arguido encontra-se compreendido no exemplo-padrão da então al. i) – que após a revisão operada pela Lei 59/2007, de 04-09, tomou a letra j) – do n.º 2 do art. 132.º: agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de 24 horas. VIII - Frieza de ânimo é uma circunstância relacionada com o processo de formação da vontade de praticar o crime, reconduzindo-se às situações em que se verifica calma, reflexão e sangue frio na preparação do ilícito, insensibilidade, indiferença e persistência na sua execução, em suma, um comportamento traduzido na “firmeza, tenacidade e irrevocabilidade da resolução criminosa” (cf. Ac. de 15-05-2008, Proc. n.º 3979/07 e jurisprudência ali citada). IX - “O abandono do lar conjugal por parte de um dos cônjuges, sem justificar de modo algum a supressão do direito à vida do outro ou maus tratos, é, segundo as regras da experiência comum, fonte de grave perturbação pessoal e, como o divórcio, à luz das concepções sociais dominantes, nem sempre é por todos bem aceite, e é, igualmente, produtor, por vezes, de reflexos socialmente negativos para o atingido” (Ac. de 16-02-2005, Proc. n.º 3131/04 -3.ª). X - Se esta circunstância pudesse, de algum modo, servir de explicação – que nunca de justificação – para a conduta do arguido, o seu pretenso valor atenuativo seria de todo anulado pelo facto de ter sido “em virtude de agressões sofridas por esta levadas a cabo pelo arguido” que a ofendida pôs fim ao relacionamento, sendo esse comportamento violento nas relações com a companheira especialmente patente nas lesões na face e no pescoço descritas no relatório de autópsia. XI - Em casos em que, na origem do homicídio, se encontram razões sentimentais, em que, quantas vezes, o amor se transforma em ódio, e em que o despeito constitui por regra o móbil do crime, a actividade delituosa é muitas vezes desenvolvida em circunstâncias de obnubilamento que levam a que se deva considerar que ocorre um abrandamento da medida da culpa, a qual constitui limite inultrapassável da pena concreta, nos termos do disposto no art. 40.º, n.º 2, do CP. XII - A pena aplicada ao recorrente revela-se desproporcionada quando comparada com outras que têm sido aplicadas pelo STJ, devendo ser corrigida na sua duração, para 19 anos de prisão, por competirem ao STJ funções de uniformização de critérios da medida da pena, com vista a um tratamento tão igualitário quanto possível dos diversos casos.
Proc. n.º 2043/08 -5.ª Secção
Arménio Sottomayor (relator, com voto de vencido quanto à medida da pena, conforme declaração de
voto, segundo a qual “diferentemente do decidido, manteria a pena de 21 anos aplicada pelas instâncias,
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