ACSTJ de 19-06-2008
Homicídio Maus tratos Violência doméstica Morte Bem jurídico protegido Aplicação da lei penal no tempo Regime concretamente mais favorável Consumpção Concurso de infracções Dolo Negligência
I -O crime de maus tratos a cônjuge vem previsto no art. 152.º, n.ºs 1 e 2, do CP de 1995 e, sob a qualificação de violência doméstica, no CP vigente. II - Confrontando os enunciados das disposições, bem como as correspondentes punições, em matéria de aplicação da lei penal no tempo, no âmbito do art. 2.º, n.º 4, do CP – regime concreto mais favorável ao arguido –, não se depara com divergência de regimes digna de nota. Na verdade, tanto o crime de maus tratos, como o de violência doméstica, pressupõem elementos constitutivos idênticos, sendo ambos punidos com a pena de prisão de 1 a 5 anos. De igual forma, o crime com a agravação punitiva pela decorrência da morte, é punível com a pena entre 3 e 10 anos de prisão. À míngua de qualquer elemento diferenciador a sugerir maior favorabilidade, é de aplicar a norma geral, ou seja, a norma punitiva vigente ao tempo da ocorrência dos factos. III - Tratando-se do crime de maus tratos a cônjuge, o bem jurídico protegido por esta incriminação é a saúde, bem jurídico complexo, que abrange a saúde física, psíquica e mental; bem jurídico, que pode ser afectado por uma multiplicidade de comportamentos que afectem a dignidade pessoal do cônjuge (Taipa de Carvalho, in Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte Especial, tomo I, Coimbra Editora, págs. 329 e ss.). IV - Atendendo a que a prática deste tipo de delito se opera a maior parte das vezes no âmbito da família, onde o convívio se desenvolve em termos de uma permanência existencial, é de aceitar ou de pressupor que assuma uma característica de habitualidade ou de procedimento repetitivo, embora este não seja forçosamente um elemento constitutivo do ilícito. V - Daí, aliás, a designação genérica de “maus tratos”, que podem assumir os mais variados cambiantes ou manifestações de agressividade, desde constrangimentos físicos, constantes discussões, quezílias, ameaças, humilhações, palavras insultuosas e outras semelhantes. VI - O preceito do art. 152.º do CP (versão do DL 48/95, de 15-03) ressalva a aplicação do art. 144.º do CP, priorizado quando ocorram pressupostos da sua aplicação decorrentes da gravidade das lesões (ressalva esta que, na versão actual do CP, expressa sob a qualificação de “violência doméstica”, é feita “se pena mais grave não couber por força de outra disposição legal”). VII - Vejamos a relação entre o crime de maus tratos e o de homicídio. É certo que o normativo do art. 152.º, n.º 5, al. b), do CP de 1995 prevê o caso de morte sobrevinda a maus tratos tributados, caso em que a pena aplicável é de 3 a 10 anos de prisão. Há que não confundir esta situação com a de um homicídio. VIII - No caso do n.º 5, al. b), estamos perante um único crime – o de maus tratos – cometido dolosamente, em que a morte sobrevém apenas como uma consequência negligente da acção do agente. Quando se fala da relação de consumpção, ocorrem dois crimes dolosos – o de maus tratos e o de homicídio –, pese embora este, à semelhança da situação anterior, ocorrido também no desenvolvimento do processo típico causal de maus tratos a cônjuge, apenas com a diferença de que neste se atenta contra a dignidade da pessoa humana, do cônjuge, da saúde e harmonia familiar; no outro, o do crime de homicídio, se gera um novo desígnio a visar o atentado contra a vida da vítima; um punível com a pena de prisão de 1 a 5 anos e o outro com a pena de prisão de 8 a 16 anos ou de 12 a 25 anos. IX - No caso presente, o crime de homicídio ocorreu em conjugação e no processo de desenvolvimento dos maus tratos à mulher praticados pelo arguido, encontrando-se assim numa relação de concurso com o crime de maus tratos, ambos cometidos pelo arguido na pessoa do seu cônjuge.
Proc. n.º 438/08 -5.ª Secção
António Colaço (relator) **
Soares Ramos
Simas Santos
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