ACSTJ de 25-06-2008
Admissibilidade de recurso Tribunal singular Pena de multa Acórdão da Relação Acórdão absolutório Competência do Supremo Tribunal de Justiça Analogia Duplo grau de jurisdição Pedido de indemnização civil Direito ao recurso
I -Numa situação em que o arguido foi condenado, na 1.ª instância, em 31-01-2007, por tribunal singular, pela prática de crime de denúncia caluniosa, na pena de 90 dias de multa e ainda no pagamento de uma indemnização de € 4000, e respectivos juros de mora, à assistente (que tinha deduzido pedido de indemnização civil reclamando do arguido a quantia de € 5000, acrescida de juros de mora), recorreu dessa decisão e veio a ser absolvido (quer da imputação criminosa quer do pedido indemnizatório), por acórdão da Relação de 20-01-2008, agora deste aresto recorrendo a assistente, não há dúvida de que, anteriormente à vigência da Lei 48/2007, de 29-08, não seria admissível recurso para o STJ, nem quanto à matéria crime – por estar em causa crime punível, em abstracto, com pena não superior a 5 anos de prisão – nem quanto à parte civil, uma vez que o valor do pedido não era superior à alçada do tribunal recorrido (o da Relação, cuja alçada é agora de € 30 000, de harmonia com o art. 5.º do DL 303/2007, de 24-08, que alterou o art. 24.º da Lei 3/99, de 13-01, e era anteriormente de 14 963,94, sendo a da 1.ª instância de € 3740,98). II - Actualmente, embora a al. b) do art. 432.º do CPP se mantenha com a mesma redacção, já a redacção da al. e) do art. 400.º do mesmo diploma foi alterada na revisão operada pela Lei 48/2007, estabelecendo não ser admissível recurso de acórdão proferidos, em recurso, pelas Relações, que apliquem pena não privativa de liberdade. III - O art. 400.º do CPP não contempla os casos, como o presente, de acórdãos proferidos pelas Relações que revoguem decisão condenatória, absolvendo, não havendo, pois, aplicação de qualquer pena. IV - E o art. 5.º do CPP não resolve a situação concreta, uma vez que se o art. 400.º não contempla expressamente a hipótese dos autos, tanto seria possível argumentar-se a contrario pela admissibilidade do recurso, como pela sua não admissibilidade, sendo certo que também a situação não se encontra prevista expressamente em outra disposição legal, pelo que também não procede o disposto na al. g) do art. 400.º – «Nos demais casos previstos na lei.» V -Tratando-se de uma lacuna da lei, um caso omisso, há que lançar mão do disposto no art. 4.º do CPP, que versa sobre integração de lacunas e que dispõe: «Nos casos omissos, quando as disposições deste Código não puderem aplicar-se por analogia, observam-se as normas do processo civil que se harmonizem com o processo penal e, na falta delas, aplicam-se os princípios gerais do processo penal.» VI -Na verdade, o recurso à analogia – como a qualquer outra fonte integrativa que desta tecnicamente se distinga – só fica vedado em processo penal na medida imposta pelo conteúdo de sentido do princípio da legalidade e, portanto, sempre que o recurso venha a traduzir-se num enfraquecimento da posição ou numa diminuição dos direitos processuais do arguido (desfavorecimento do arguido, analogia in malam partem) – cf. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, secção de textos da FDUC, Lições coligidas por Maria João Antunes, 1988-1989, págs. 68-69. VII - Tendo em consideração que: -não incumbe ao STJ, por não se circunscrever no âmbito dos seus poderes de cognição, apreciar e julgar recurso interposto de decisão final de tribunal colectivo ou de júri, que condene em pena não superior a 5 anos de prisão (art. 432.º, n.º 1, al. c), do CPP); -de harmonia com a redacção da al. d) do art. 432.º anterior à da Lei 48/2007, de 29-08, recorria-se para o STJ «de acórdãos finais proferidos pelo tribunal colectivo, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito»; porém, não era admissível recurso de acórdãos proferidos, em recurso, pelas Relações, em processo por crime a que fosse aplicável pena de multa ou pena de prisão não superior a 5 anos, mesmo em caso de concurso de infracções, ou em que o MP tivesse usado da faculdade prevista no art. 16.º, n.º 3, do CPP; -cotejando a teleologia destas normas com a filosofia estruturante do Código, verifica-se, como informa o seu preâmbulo, que «tentou obviar-se ao reconhecido pendor para o abuso dos recursos, abrindo-se a possibilidade de rejeição liminar de todo o recurso por manifesta falta de fundamento. Complementarmente, procurou simplificar-se todo o sistema, abolindo-se concretamente a existência, por regra, de um duplo grau de recurso. Por isso os tribunais de relação passam a conhecer em última instância das decisões finais do juiz singular e das decisões interlocutórias do tribunal colectivo e do júri, devendo o recurso das decisões finais do destes últimos tribunais se directamente interposto para o Supremo Tribunal de Justiça»; -a exposição de motivos da proposta de Lei 157/VII, alterando o CPP, pretendeu limitar a intervenção do STJ a casos de maior gravidade: «Retoma-se a ideia de diferenciação orgânica, mas apenas fundada no princípio de que os casos de pequena ou média gravidade não devem, por norma, chegar ao Supremo Tribunal de Justiça” (ponto 16. e) da Proposta de Lei); é de formular o entendimento de que o legislador não se quis afastar do patamar mínimo de pena superior a 5 anos de prisão, para que possa haver recurso para o STJ. VIII - Ou seja, o legislador, ao arredar da competência do STJ o julgamento dos recursos de acórdãos proferidos, em recurso, pelas Relações, que apliquem pena não privativa da liberdade, quis implicitamente significar, de harmonia com o art. 9.º do CC, na teleologia e unidade do sistema quanto a penas privativas de liberdade, que, só sendo admissível recurso para o Supremo de acórdãos do colectivo que tenham por objecto pena superior a 5, uma vez que as penas inferiores a 5 anos de prisão caem na competência do juiz singular e não há recurso de decisões do tribunal singular para o STJ, apenas é recorrível para o STJ o acórdão da Relação que julgar recurso de decisão do tribunal colectivo, ou do júri, em que estes tivessem aplicado pena superior a 5 anos de prisão. Há que fazer uma interpretação restritiva do literalismo da norma do art. 400.º, n.º 1, al. e), do CPP, em conjugação com a teleologia definida pela norma da al. c) do art. 400.º do CPP. IX - Parafraseando o Ac. deste Supremo de 06-12-2007 (in Proc. n.º 3752/07 -5.ª), dir-se-á que, no caso, não houve confirmação pela Relação da decisão da 1.ª instância, mas a lei, tratando-se de crimes puníveis com pena de prisão não superior a 5 anos, nem sequer exige o pressuposto da chamada dupla conforme, contemplada na al. f) do n.º 1 do art. 400.º do CPP, pois a gravidade de tais crimes não justifica mais do que um grau de recurso, seja qual for o sentido da decisão da Relação. A decisão é irrecorrível para o STJ, tomando em linha de conta simplesmente a pena aplicável ao crime (Ac. do STJ de 28-02-2008, Proc. n.º 98/08 -5.ª). X - Na verdade, seria irrisório que, por exemplo, fosse possível recurso para o STJ de acórdão da Relação que absolvesse de um crime de ofensas corporais simples por negligência, ou de um crime de ameaça, constante de decisão de tribunal singular, sendo que, por outro lado, já não seria possível o recurso de acórdão da Relação que confirmasse uma pena de 8 anos de prisão (por ex. por homicídio voluntário tentado) aplicada pelo tribunal colectivo (cf. art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP, na redacção dada pela Lei 48/2007, de 29-08). XI - Em caso de absolvição pela Relação, deve considerar-se que só é recorrível para o STJ o acórdão da Relação que se debruce sobre crime em que a pena aplicada pelo tribunal da 1.ª instância tenha sido superior a 5 anos de prisão. XII - Apesar da actual autonomia recursiva sobre o pedido de indemnização civil, nos termos do disposto no n.º 3 do art. 400.º do CPP, o mesmo também não é, in casu, admissível, face ao condicionalismo limitativo dos pressupostos constantes do n.º 2 do mesmo preceito, em que se inclui o valor do pedido do demandante (que nem sequer atinge o valor da alçada do tribunal recorrido). XIII - A situação jurídica exposta não traduz qualquer diminuição das garantias de defesa nem limita o exercício do direito ao recurso pela recorrente, uma vez que a Lei nova ao não ampliar o direito ao recurso, também o não restringiu, mantendo-se o âmbito legal do direito ao recurso tal como vinha sendo entendido, sendo que, por outro lado, o art. 32.º, n.º 1, da CRP não garante a existência de um duplo grau de recurso, mas sim o recurso, que foi efectivamente exercido pelo arguido, tendo sido assegurado o contraditório na apreciação pelo tribunal de recurso, o da Relação. XIV - Aliás, na situação concreta, há recurso apenas da assistente, que pugna pela manutenção da condenação havida na 1.ª instância, em pena de multa, portanto, pena não privativa de liberdade, o que significa que se a Relação tivesse condenado, não podia alterar (agravar) a espécie de pena aplicada na 1.ª instância, donde resultaria evidente, mesmo face à simples redacção actual da al. e) do n.º 1 do art. 400.º do CPP, que não era admissível recurso, como também o não era na vigência do regime anterior à Lei 48/2007.
Proc. n.º 1879/08 -3.ª Secção
Pires da Graça (relator)
Raul Borges
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