ACSTJ de 18-06-2008
Competência do Supremo Tribunal de Justiça Matéria de facto Admissibilidade de recurso Vícios do art. 410.º do Código de Processo Penal Duplo grau de jurisdição Burla qualificada Erro Engano Crime omissivo Actos concludentes Medida concreta da p
I -Na versão originária do CPP87, perante a inexistência de um recurso em sede de matéria de facto dos acórdãos do tribunal colectivo, o legislador criou o recurso de “revista alargada”, admitindo a ampliação dos poderes de cognição dos tribunais superiores, nos casos de recurso restrito à matéria de direito, ao conhecimento de certos “vícios” da decisão recorrida (insuficiência da matéria de facto, contradição insanável e erro notório na apreciação da prova), desde que resultantes do texto da mesma decisão, ou de nulidades que não devessem considerar-se sanadas (art. 410.º, n.ºs 2 e 3), visando compensar precisamente a inexistência de possibilidade de impugnação da matéria de facto e de alguma forma garantir, embora em limites muito estreitos, um segundo grau de jurisdição nesse âmbito. II - Contudo, com a reforma legislativa de 1998 (Lei 59/98, de 25-08), que veio admitir, pela primeira vez no nosso sistema jurídico, o recurso em matéria de facto dos acórdãos finais do tribunal colectivo (para a Relação), o recurso de “revista alargada” para o STJ deixou de ter sentido quando previamente tiver sido interposto recurso da matéria de facto para a Relação, já que então fica plenamente assegurado o duplo grau de jurisdição em matéria de facto. III - Por isso, no sistema actual, a “revista alargada” justificar-se-á apenas quando a Relação funcionar como 1.ª instância; quando o recurso for interposto directamente para o STJ; ou quando os vícios do n.º 2 do art. 410.º do CPP foram imputáveis à própria decisão da Relação. Na verdade, quando a Relação profere uma decisão nova em matéria de facto, alterando a da 1.ª instância, impõe-se o mesmo nível de controlo por parte do STJ sobre os vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP. IV - Os poderes de cognição do STJ abrangem ainda outras matérias que, contendendo com a matéria de facto, constituem inequivocamente matéria de direito. Compete a este Supremo Tribunal apreciar da legalidade das provas utilizadas (arts. 125.º e 126.º do CPP), do respeito pelo princípio da livre apreciação da prova (art. 127.º) e seus limites (art. 163.º), do respeito pelo princípio in dubio pro reo. Com efeito, o STJ deverá apreciar se as provas utilizadas não constituem métodos proibidos de prova e se foram avaliadas, tendo em conta a fundamentação da matéria de facto, segundo os critérios estabelecidos legalmente, isto é, de acordo com a livre apreciação do julgador, limitada pelo especial valor de certos meios de prova (perícias científicas) e conjugada com as regras da experiência comum. V - O STJ poderá ainda conhecer das nulidades (da sentença) previstas no art. 379.º do CPP, nomeadamente da inexistência de fundamentação, mas já não da suficiência (do grau de suficiência) desta, cuja análise arrastaria inevitavelmente o STJ para a discussão da própria matéria de facto, descaracterizando a natureza do recurso. VI - O art. 10.º do CP faz equivaler, em geral, a omissão à acção, nos crimes de resultado. Mas a punibilidade do agente (aliás, omitente) depende da existência de um específico dever jurídico (não apenas ético) que o obrigue a agir, a evitar o resultado. O omitente, para ser punido, deve ocupar a posição de garante da não produção do resultado. Só esse dever jurídico de agir pode fundamentar a punição; doutra forma a punibilidade da omissão constituiria uma intromissão intolerável na esfera privada de cada um. Assim, o fundamento da punição da omissão reside na equivalência entre o desvalor da acção e o desvalor da omissão. VII - Como crime de resultado (embora de resultado cortado), a burla admitirá, em princípio, a comissão por omissão. Contudo, dúvidas têm sido suscitadas sobre tal possibilidade, com fundamento no carácter de “execução vinculada” de que este tipo de crime se reveste. Ao exigir que o erro ou engano que determina a acção do ofendido seja astuciosamente provocado pelo agente, o legislador parece, numa primeira análise, ter excluído a possibilidade de omissão, aparentemente incompatível com a conduta activa que a descrição típica enuncia. Esse procedimento astucioso ou fraudulento faltará completamente quando a conduta imputável ao agente seja precisamente a falta de acção, ou, por outras palavras, o aproveitamento de um estado de erro do ofendido não provocado por actos “positivos” do agente. VIII - Contudo, pode contrapor-se que, nesta hipótese de mero aproveitamento de um erro não provocado, a astúcia não deixará de estar presente (de forma negativa) na dissimulação, ocultação ou sonegação dolosa de informações determinantes para a formação de vontade do ofendido. E assim a questão estaria apenas em saber se o agente tem ou não a obrigação de informar correctamente o ofendido, ou seja, se tem ou não a posição de garante, consumando-se a burla por omissão no caso afirmativo. IX - Neste sentido se tem pronunciado alguma doutrina: Maia Gonçalves (Código Penal Português, nota 4 ao art. 217.º), embora reconhecendo que a solução não é líquida nem pacífica, admite a omissão no crime de burla; Almeida Costa, mais desenvolvidamente, apoiado em extensa doutrina germânica, defende a mesma posição (Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo II, págs. 307-309). X - Porém, este Autor distingue a omissão propriamente dita da prática da burla activamente, embora não por declarações expressas, mas sim por actos concludentes, que, segundo o mesmo, são as «condutas que não consubstanciam, em si mesmas, qualquer declaração, mas, a um critério objectivo – a saber, de acordo com as regras da experiência e os parâmetros ético-sociais vigentes no sector de actividade –, se mostram adequadas a criar uma falsa convicção sobre certo facto passado, presente ou futuro». XI - A idoneidade defraudatória deste tipo de actos não suscitará quaisquer dúvidas, assim como a sua equivalência às declarações expressas, desde que seja inequívoco o sentido ou significado dos aludidos actos concludentes, no contexto específico em que são praticados (aliás, a qualificação como “concludentes” traduz precisamente essa ideia). XII - A distinção entre actos concludentes e omissão residiria em que, nos primeiros, o agente cria, assegura ou aprofunda o erro do ofendido, ao passo que na segunda o agente não pratica qualquer acto positivo, “limitando-se” a aproveitar-se do erro em que o ofendido já incorre, não o esclarecendo ou informando do mesmo. XIII - Esta distinção tem uma importância capital, pois, na burla cometida através de actos concludentes, havendo uma acção por parte do agente, não há que indagar se ele tem o dever de garante, contrariamente ao que acontece com a omissão, em que só a existência e violação de um tal dever conduz à responsabilidade criminal. XIV - Entre os actos concludentes inclui o mesmo Autor a realização de um contrato: «A assunção de uma obrigação contratual comporta, de forma concludente, o significado adicional de que o indivíduo se encontra na disposição de cumpri-la, pelo que, faltando esta última, se depara com um crime de burla». E precisa: «Assim, na órbita da conclusão de um contrato, se uma das partes se abstiver de declarar que não se encontra em condições de o cumprir, comete burla por actos concludentes, uma vez que a celebração de um negócio leva implicada a afirmação de que qualquer dos intervenientes tem a possibilidade de satisfazer as obrigações dele emergentes.» XV -Este STJ tem assumido uma orientação jurisprudencial claramente em sentido convergente com a posição doutrinal exposta e defendida por Almeida Costa, admitindo que o crime de burla pode ser praticado não só por acção, como também por omissão, nos termos gerais previstos no art. 10.º do CP, e ainda que, na vertente activa, relevam não só as declarações expressas como também os actos concludentes, aceitando que dentro destes se podem enquadrar as condutas praticadas no domínio da negociação e da contratação que, violando as regras da boa-fé negocial, ocultem a (real) vontade, por parte do agente, de não cumprir a obrigação assumida (cf. Acs. de 29-02-1996, Proc. n.º 46740, de 22-05-2002, Proc. n.º 576/02 -3.ª, de 20-03-2003, Proc. n.º 241/03 -5.ª, de 27-04-2005, Proc. n.º752/05 -3.ª, de 12-10-2006, Proc. n.º 4220/2006 -5.ª, de 25-10-2006, Proc. n.º 2667/06 -3.ª, e de 31-10-2007, Proc. n.º 3218/07 3.ª). XVI - Resultando, em síntese, da factualidade assente pelo acórdão da Relação que: -o arguido, agindo sempre em nome da sociedade G…, tinha celebrado, como locatário, um contrato de locação financeira sobre um determinado prédio rústico; -posteriormente celebrou com a assistente um contrato-promessa de compra e venda, prometendo vender-lhe o referido prédio, ao qual previamente se deslocou acompanhado do gerente da assistente e do advogado desta; -nunca o arguido referiu que o prédio estava sujeito àquele contrato de locação financeira e que, portanto, a firma por ele representada não era proprietária do mesmo; -por conta do preço estipulado, o arguido recebeu PTE 47 500 000$00; -cerca de dois meses depois da celebração do contrato-promessa, a assistente, que celebrou esse contrato na convicção de serem verdadeiras as disposições nele contidas, veio a saber que o prédio não era propriedade da firma representada pelo arguido; -tentou então que o arguido celebrasse a prometida venda ou, ao menos, cedesse a sua posição no contrato de locação, mas o arguido inviabilizou tal negócio; conquanto da mesma não conste quem tomou a iniciativa do negócio, nem como foram iniciados os contactos entre as partes, podemos concluir que a assistente outorgou o contrato-promessa de compra e venda na convicção de que o arguido representava a proprietária do prédio e que este, mesmo depois de se deslocar ao local com o promitente-comprador e o seu advogado, nunca o(s) esclareceu de que era apenas locatário financeiro do imóvel. Mais, o arguido sabia que o promitente-comprador estava a agir de boa-fé, ou seja, estava convencido de que ele representava a proprietária do prédio, tendo ocultado sempre que o verdadeiro proprietário era outro, facto que veio a ser conhecido pela assistente por outra fonte, já depois da celebração do dito contrato-promessa. XVII - A indicada sucessão de actos – que patenteiam a má-fé negocial do arguido –, embora nunca envolvendo uma declaração expressa por parte do mesmo arrogando-se ou admitindo a qualidade de proprietário do prédio, constitui sem qualquer dúvida um conjunto de actos concludentes, pois deles a assistente, na sua boa-fé, só poderia depreender e concluir que o arguido era de facto o gerente da proprietária do prédio e, consequentemente, tinha poderes para o vender. Tais actos encerram uma idoneidade em tudo idêntica à das declarações expressas para enganar a assistente, isto é, para a manter na convicção errada de que o prédio pertencia à sociedade gerida pelo arguido. XVIII - Aliás, o comportamento subsequente do arguido, inviabilizando qualquer hipótese de negociação e composição de interesses (nomeadamente com a transmissão da posição de locatário do prédio) e apropriando-se das diversas quantias recebidas por conta do contrato, é demonstrativo de que ele nunca realmente quis celebrar aquele negócio, mas apenas apropriar-se ilicitamente de valores através de engano ou erro da assistente. Acresce que foi o erro mantido pelo arguido que levou a assistente a celebrar o negócio e a entregar-lhe as quantias referidas. XIX - Resulta, assim, que se mostram verificados os elementos típicos do crime de burla qualificada, p. e p. pelos arts. 217.º e 218.º, n.º 2, al. a), com referência ao art. 202.º, al. b), todos do CP, cometido por acção (e não por omissão): um prejuízo patrimonial motivado por erro astuciosamente provocado (por meio de actos concludentes) pelo agente. XX - Perante o quadro factual descrito e considerando, ainda, que, o arguido, de 61 anos de idade, não tem antecedentes criminais, mostra-se adequada a pena de 3 anos de prisão fixada pela 1.ª instância. XXI - Por outro lado, atendendo à ausência de antecedentes criminais, ao tempo decorrido desde a prática do crime (1999), encontrando-se o arguido a trabalhar e integrado socialmente, a ameaça da pena afigura-se suficiente para assegurar as finalidades da punição, devendo a pena fixada ser suspensa na sua execução. XXII -Contudo, porque só o estabelecimento da reparação do dano provocado como condição dessa suspensão poderá garantir a eficácia desta pena substitutiva enquanto sanção penal, aquela deve ser condicionada ao pagamento de determinada quantia ao lesado, de cujo património saíram as quantias entregues por conta do pagamento do prédio em referência nos autos, num total de PTE 47 500 000$00. Como, porém, se provou que um dos cheques, no valor de PTE 10 000 000$00, foi emitido a favor da empresa I…, e que todos os restantes cheques, totalizando um valor de PTE 37 500 000$00, foram descontados pessoalmente pelo arguido, “revertendo o seu produto em seu exclusivo benefício”, deve ser este último valor o que integrará a condição da suspensão da pena. XXIII -Por último, no que respeita ao prazo da suspensão, deve ser mantido o de 4 anos fixado pela 1.ª instância, pois, apesar de, segundo a versão actual do art. 50.º, n.º 1, do CP, esse prazo dever ser idêntico ao da medida da pena de prisão, disposição aparentemente mais favorável ao arguido, a aplicação do novo regime poderia dificultar o cumprimento da condição, sendo, pois, numa apreciação global, mais favorável ao arguido o regime estabelecido no art. 50.º, n.º 1, do CP na redacção anterior à Lei 59/2007, de 04-09. 18-06-2008 Proc. n.º 901/08 -3.ª Secção Maia Costa (relator) Pires da Graça (tem voto de vencido, no sentido de que «decretava o reenvio do processo, nos termos dos arts. 410.º, n.º 2, e 426.º, n.ºs 1 e 2, do CPP») Pereira Madeira (com voto de desempate) £Despacho Acta Prazo de interposição de recurso Prática de acto após o termo do prazo Multa Constitucionalidade Apoio judiciário #I -Nos termos do art. 411.º, n.º 1, al. c), do CPP, tratando-se de decisão oral reproduzida em acta, o prazo de interposição de recurso (20 dias) conta-se da data em que tiver sido proferida, se o interessado estiver ou dever considerar-se presente. Tendo o despacho impugnado sido proferido oralmente e incorporado na acta do debate instrutório, sendo dele o assistente imediatamente notificado, na pessoa do seu mandatário, é a partir do dia seguinte ao da prolação do despacho que se conta o prazo de interposição de recurso. II - O n.º 7 do art. 145.º do CPC permite que o tribunal determine a redução ou dispensa da multa nos casos de manifesta carência económica ou quando o montante a pagar for manifestamente desproporcionado. Não basta a concessão de apoio judiciário para comprovar uma situação de manifesta carência económica: esta é necessariamente uma situação de penúria ou escassez notória de rendimentos, que deverá ser comprovada. III - O pagamento da multa do art. 145.º, n.º 6, do CPC, tem um evidente carácter sancionatório. A lei concede um “suplemento” de prazo, mas “pune” os que dele se aproveitam com uma sanção. Tal disposição não cerceia qualquer direito processual, nem ofende qualquer regra ou princípio de um justo processo de partes, e muito menos qualquer princípio constitucional, como o da dignidade da pessoa humana. A imposição da multa sanciona uma conduta processualmente irregular, a prática do acto fora do prazo, estando, pois, materialmente fundamentada.
Proc. n.º 1786/08 -3.ª Secção
Maia Costa (relator)
Pires da Graça
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