Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa
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    Sumários do STJ (Boletim) - Criminal
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ACSTJ de 18-06-2008
 Mandado de Detenção Europeu Princípio do reconhecimento mútuo Oposição Prazo Tradução Enunciação dos factos Non bis in idem Concurso de infracções Recusa facultativa de execução
I -O mandado de detenção europeu, executado com base no princípio do reconhecimento mútuo e em conformidade com o disposto na Lei 65/03, de 23-08, e na Decisão-Quadro 2002/584/JAI, de 13-06, do Conselho da União Europeia, veio substituir o processo de extradição, que se mostrou incapaz de, por forma agilizada, mercê da abertura de fronteiras e da livre circulação de pessoas, responder aos problemas de cooperação judiciária entre Estados.
II - Tendo como antecedente o programa de execução do reconhecimento mútuo de decisões penais do Conselho Europeu de Tampere, aprovado em 30-11-2000, constituiu a primeira concretização no âmbito do direito penal do princípio do reconhecimento mútuo, havido como pedra angular da cooperação judiciária.
III - Desde que uma decisão seja tomada por uma autoridade judiciária competente à luz do direito interno do Estado membro de onde procede, em conformidade com o direito desse Estado, essa decisão deve ter um efeito pleno e directo sobre o conjunto do território da União, o que significa que as autoridades do Estado onde a decisão deve ser executada devem causar-lhe o mínimo de embaraço, isto porque subjaz uma ideia de mútua confiança, sem embargo do respeito pelos direitos fundamentais e princípios de direito de validade perene e afirmação universal.
IV - A sindicância judicial a exercer no Estado receptor é muito limitada, restrita ao controle daqueles direitos fundamentais, produzindo a decisão judiciária do Estado emitente efeitos pelo menos equivalentes a uma decisão tomada pela autoridade judiciária nacional (cf. Ricardo Jorge Bragança de Matos, in RPCC, Ano XIV, n.º 3, págs. 327-328, e Anabela Miranda Rodrigues, in O Mandado de Detenção Europeu, RPCC, ano 13.º, n.º 1, págs. 32-33).
V - O MDE rege-se por um critério de suficiência, ou seja, o Estado da execução não deve precisar de mais informações do que aquelas que figuram no formulário pré-estabelecido, e também por uma eficiência de teor quase automático, na medida em que só em casos taxativamente limitados se possam erguer barreiras de inexecução.
VI - Do MDE devem constar as informações enumeradas no art. 3.º da Lei 65/03, de 23-08, além da identidade e nacionalidade da pessoa procurada, os factos penalmente relevantes, entre os quais a descrição das circunstâncias em que a infracção foi cometida, incluindo o momento, o lugar e o grau de participação da pessoa procurada, devendo ser traduzido numa das línguas oficiais do Estado membro da execução. A exigência é óbvia: para um cabal exercício dos direitos de defesa do arguido, aquela boa prática judiciária, de cunho quase automático, em que se traduz o mandado, não pode sobrepor-se às garantias de defesa dos direitos humanos do procurado pré-estabelecidas em convenções internacionais, de âmbito estadual mais alargado, recuado temporalmente e vinculante, que não pode derrogar.
VII - A enunciação dos factos é fundamental ao exercício do direito de recusa, seja ela obrigatória seja facultativa – arts. 11.º e 12.º da Lei 65/03 –, relevando essencialmente para fins de verificação de amnistia, do princípio ne bis in idem, do decurso dos prazos de prescrição, da renúncia ao princípio da especialidade, do princípio da territorialidade, etc.. A descrição dos factos no formulário deve ser tão sucinta quanto possível e consignar apenas dados indispensáveis para apreensão do MDE pela autoridade judiciária de execução, sendo de evitar a transcrição completa de peças processuais em ordem à sua movimentação, neste sentido se pronunciando a PGR, Gabinete de Documentação e Direito Comparado, in Manual de Procedimentos Relativos à Emissão de Mandado de Detenção Europeu.
VIII - Numa situação em que: -no formulário do mandado refere-se «Nos primeiros meses do ano de 2005, o acusado EPP, de comum acordo com os outros quatro processados transportaram uma importante quantidade de cocaína, superior a cem quilogramas, de Portugal para Inglaterra, a fim de que fosse ali finalmente entregue a terceiros para posterior distribuição e consumo», seguindo-se a descrição do tipo legal de crime de «Delito contra a saúde pública, na modalidade de transporte e posse para tráfico de substâncias que causam dano à saúde, previsto nos artigos 368.º e 369.º, 1.º, circunstâncias assinaladas nos números 2 (pertença a organização), 6 (quantidade de notória importância) e 10 (introduzir ou retirar substâncias de território nacional), do Código Penal, sendo aplicável a agravação de extrema gravidade estabelecida no artigo 370.º, 3.º, pela concorrência de três das circunstâncias previstas no artigo 369.1 do mesmo Código Legal»; -o formulário é acompanhado de acusação ampla e factualmente detalhada deduzida pelo “Fiscal”, cingindo-se, pelo enunciado nele inscrito, o pedido de cooperação à entrega temporária «a fim de julgar esta pessoa no dia 10.7.2008, comprometendo-se esta Sala à sua posterior entrega uma vez concluído o julgamento oral», na conformidade do art. 31.º, n.º 3, da Lei 65/03; -o Tribunal da Relação notificou pessoalmente EPP, em 30-04-2008, «de todo o conteúdo da tradução dos documentos recebidos do reino de Espanha»; não se verifica qualquer nulidade por falta do descritivo factual imputado ao arguido.
IX - O princípio que significa a proibição de alguém ser condenado duas vezes pelo mesmo facto, princípio de feição milenar, acatado pela generalidade dos países, com tradução no art. 29.º, n.º 5, da nossa Constituição, comporta o alcance segundo o qual se alguns dos factos que fazem parte de uma actividade continuadamente criminosa já foram objecto de uma decisão, o direito de promover a acção penal por outros englobados nessa continuação mostra-se consumido, funcionando o princípio ne bis in idem.O juiz, em tal situação, ao apurar e fixar essa realidade, investiga sobre os limites da identidade do objecto processual e o que faz é integrar o conteúdo de tal sentença e perguntar até que ponto se devia ter alargado a cognição do tribunal ao primeiro processo, com vista a determinar em que limites se devem entender as coisas como julgadas.
X - Não se descortina a violação daquele princípio quando, numa análise meramente perfunctória – porque mais profunda não o consente a tramitação formal do mandado –, as condutas do recorrente são diferentes atendendo às circunstâncias de tempo, lugar e modo de comparticipação, não coincidentes factualmente e dispersas no tempo, mediando entre elas um visível hiato temporal, compatível com uma renovação da vontade criminosa, com uma pluralidade de infracções.
XI - De todo o modo, essa tarefa de verificação sobre se a prática dos factos por que foi condenado em Portugal obedece a uma única resolução criminosa, englobante da conduta a que respeita o processo pendente em Espanha, ou antes a uma pluralidade de resoluções, a distintos crimes, cabe ao tribunal no julgamento declará-la.
XII - Da conjugação dos arts. 12.º, n.º 1, al. d), e 11.º, al. b), da Lei 65/03, resulta que o princípio ne bis in idem, numa particular exigência de rigor, só funciona como causa de recusa de entrega quando puder concluir-se, com segurança, que o procurado foi definitivamente julgado pelos mesmos factos e em condições que impeçam o posterior exercício da acção penal, só assim se violando o caso julgado penal.
XIII - Pela expressão «por facto que motiva a emissão» e pelo termo «infracção», em uso no aludido preceito dos arts. 11.º, al. a), e 12.º, n.º 1, al. a), da Lei 65/03, entende-se o facto complexo, formado pelo tipo de ilícito e de culpa, enquanto pressupostos categoriais sistemáticos mínimos, expressões de dignidade penal tipicizada, o que reforça a ideia de que condutas parcelares integrantes do conjunto não fundamentam óbice à entrega nem traduzem uma violência à condição pessoal do recorrente.
XIV - Um desvio a essa teleologia seria transformar o tribunal da execução do mandado em tribunal de julgamento, sobrepondo-se a este, dissociando-se da função do mandado de detenção, enquanto instrumento simplificado de entrega de pessoas, de combate célere e eficaz contra a criminalidade internacional, cada vez mais sofisticada e com ramificações de controle mais complexo, que se não compadece com uma investigação mais aprofundada do princípio, como ainda das provas de que o tribunal espanhol se serviu para emitir o mandado.
Proc. n.º 2159/08 -3.ª Secção Armindo Monteiro (relator) Santos Cabral