ACSTJ de 18-06-2008
Admissibilidade de recurso Acórdão da Relação Aplicação da lei processual penal no tempo Direito ao recurso Duplo grau de jurisdição Recurso da matéria de facto Constitucionalidade Métodos proibidos de prova Declarações do co-arguido Direito ao s
I -Enquanto norma mista, a um tempo processual penal material, com reflexo ao nível do direito substantivo, mas também formal, o art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP, na redacção introduzida pela Lei 48/2007, de 29-08 [não é admissível recurso de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos], já em vigor na data de interposição do recurso em apreço para este STJ, é, em princípio, de aplicação imediata a todos os processos já iniciados à data da sua entrada em vigor, como o são as normas de cunho processual, nos termos do art. 5.º do CPP. Só assim não será se da imediata aplicabilidade resultar agravamento sensível e ainda evitável da situação processual do arguido, diminuição do seu direito de defesa ou quebra da unidade do processo – als. a) e b) do n.º 2 daquele preceito. II - A nossa jurisprudência e doutrina são unânimes em reconhecer que a lei reguladora da admissibilidade do recurso é a vigente na data em que é proferida a decisão recorrida – lex temporis regit actum, e isto porque as expectativas eventualmente criadas às partes ao abrigo da lei antiga se dissiparam à face da lei nova, não havendo que tutelá-las. III - Em sede de direito e processo penal, em que se jogam interesses afectando ou podendo afectar direitos fundamentais tão valiosos como o da liberdade humana, para efeitos de aplicação da lei no tempo, a evitabilidade do agravamento ainda sensível da posição do arguido leva a que se devam ponderar as expectativas, justas, do recorrente, em termos de continuar a deparar-se-lhe a possibilidade de recurso nos moldes firmados na lei antiga, pese embora as regras que se limitam a regular as formalidades de preparação, instrução e julgamento do recurso, estas, sem margem para dúvidas, de imediata aplicação (cf. Alberto dos Reis, RLJ, Ano 86.º, págs. 49-53 e 84-87). IV - Assim, tendo em conta que o acórdão da 1.ª instância foi proferido numa altura em que, na vigência do CPP antes daquela reforma legislativa, estavam assegurados dois graus de jurisdição em sede de recurso, para a Relação e para o STJ, ou um só para este último (consoante a amplitude da discordância com o decidido) –, por ao crime de homicídio qualificado tentado, como ao de roubo, corresponder, abstractamente, uma pena de prisão superior a 8 anos –, quando à face da lei nova não caberia recurso para este tribunal (dada a natureza confirmativa pela Relação do acórdão recorrido de 1.ª instância e a circunstância de a pena efectivamente aplicada não exceder 8 anos de prisão), numa visão que não logra consenso neste STJ, é de admitir o recurso – cf., no mesmo sentido da recorribilidade, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, pág. 997. V - Quando à Relação se pede o reexame da matéria de facto – reexame necessariamente segmentado, não da totalidade da matéria de facto – tal reponderação envolve um julgamento parcelar que não dispensa nem o exame, ou seja, a análise dos factos, nem a crítica, ou seja, o mérito ou demérito dos vários meios de prova que alicerçam a convicção probatória, a razão por que uns são credíveis e outros não – art. 374.º, n.º 2, do CPP. VI - Pede-se ao tribunal de recurso uma intromissão no julgamento da matéria de facto, um juízo substitutivo, situando-se a alienidade àquela numa postura de muito clara denegação do direito ao recurso nessa sede. VII - Por isso, uma adesão meramente formal aos fundamentos usados para alicerce da decisão recorrida cor-responde ao inverso do percurso a seguir (na exigência da lei): o enunciado factual provado ou não pro-vado precede os fundamentos decisórios que servem para modelar a convicção do julgador. Na ordem lógica das coisas os factos são a meta primeira a atingir, seguindo-se, no art. 374.º, n.º 2, do CPP, na especial estruturação da sentença, a fundamentação pelas provas, o seu sustentáculo, e não o inverso. VIII - O Ac. do TC n.º 116/07 (in DR II Série, de 23-04-2007) julgou inconstitucional a norma do art. 428.º do CPP, quando interpretada no sentido de que, tendo o tribunal de 1.ª instância apreciado livremente a prova perante ele produzida, basta para julgar o recurso interposto da decisão de facto que o tribunal de 2.ª instância se limite a afirmar que os dados objectivos indicados na fundamentação da sentença, objecto do recurso, foram colhidos da prova transcrita dos autos. Uma interpretação que não desça à especificidade apontada não comporta caução constitucional, decidiu já o Ac. deste STJ de 23-05-2007, Proc. n.º 1498/07. IX - Os meios proibidos de prova representam a prescrição de um «limite à descoberta da verdade», «barreiras colocadas à determinação dos factos que constituem o objecto do processo», no dizer de Gössel, citado por Costa Andrade, in Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal, pág. 83. A proibição de prova é ditada por uma imposição e, ao mesmo tempo, uma permissão, pois, como aquele autor alemão exprime, «toda a regra relativa a averiguação dos factos proíbe ao mesmo tempo as vias não permitidas de averiguação». X - Através da proibição de certos meios de prova, o Estado alonga a diferença que deve existir entre a perseguição do crime e o próprio crime. O Estado na sua avidez de punir incorre no perigo de erosão da superioridade moral do processo penal se não obtiver uma condenação de «mãos limpas», com respeito por princípios e regras atinentes à dignidade humana, naquilo que faz parte do seu núcleo essencial. XI - As declarações do co-arguido não se compendiam entre os meios proibidos de prova, previstos no art. 126.º do CPP, aí condensados em duas grandes categorias: umas respeitando à integridade física e moral da pessoa humana, outras à sua privacidade. As declarações do co-arguido deslocam-se, antes, para o âmbito do princípio da legalidade da prova, por força do qual, nos termos do art. 125.º do CPP, são permitidos todos os meios de prova que não forem legalmente vedados, ou seja, para o campo da sua credibilidade, não já da sua inutilizabilidade, no aspecto valorativo e no peso específico que, no conjunto delas, apresentam. XII - A ordem de produção de prova em julgamento repousa nas declarações do arguido, que constituem um meio de prova legalmente admitido, com previsão nos arts. 140.º e 340.º, al. a), do CPP. XIII - Um obstáculo sobejamente conhecido e endereçado às declarações do co-arguido contra o outro ou outros: sempre que o co-arguido produza declarações em desfavor de outro e aquele, a instâncias do coacusado, se recuse a responder, no uso do direito ao silêncio (cf. Acs. do TC n.º 524/97 e deste STJ de 25-02-1999, in CJSTJ, VII, tomo 1, pág. 229). Esta jurisprudência colheu fiel integração na lei, com a recente reforma introduzida pela Lei 48/2007, de 29-08, no art. 345.º, n.º 4, do CPP, no sentido de que não podem valer como meios de prova as declarações do co-arguido, se este se refugia no silêncio, por tal restrição conduzir a uma inaceitável limitação às garantias de defesa, ao direito ao defensor e ao princípio de igualdade de armas. XIV - Outra limitação é a que deriva da particularidade das declarações do co-arguido, porque elas comportam ou podem comportar uma irrestrita autodesculpabilização ou incriminação recíproca ou multilateral do co-acusado, hiperbolizando oportunisticamente a sua estratégia de defesa, quiçá mesmo a sua vindicta contra o co-acusado, que pode ficar colocado, por isso mesmo, numa situação delicada, a que um processo justo que assegura todas as garantias de defesa, um due process of law, não pode ficar indiferente. XV - À parte este reparo, a jurisprudência deste STJ sempre defendeu que o arguido tanto pode produzir declarações a seu respeito como dos demais co-arguidos, sem o que ficaria gravemente comprometido o seu direito de defesa e o dever de cooperação com o tribunal, que pode, no exercício de uma melhor justiça, não desejar comprometer. Unicamente ao arguido ou co-arguido, nos termos do art. 133.º, n.º 1, al. a), do CPP, é vedado intervir como testemunha, sujeito ao dever de verdade e à cominação de sanções, auto-incriminar-se: a não sujeição do arguido ao estatuto de testemunha tem por objectivo libertá-lo desse ónus. XVI - O STJ, na sua extensa e já recuada jurisprudência, tem firmado a admissibilidade da prestação de declarações do co-arguido contra outro, em nome de um ilimitado direito de defesa, sem deixar de frisar cautela na valoração de tais declarações: a prova assim produzida é de credibilidade mais diluída. Em data recente se pronunciou este Tribunal, no seu Ac. de 12-03-2008, prolatado no Proc. n.º 694/08, onde, na valência da prova prestada pelo co-arguido, e na esteira da jurisprudência uniforme deste STJ, mais uma vez se afirma a necessidade de se não abdicar, no concretismo da situação, de um esforço de análise, tendente a averiguar se à co-acusação corresponde ou não um sentido “espúrio”, devendo, por isso, arrimar-se em motivações objectivas, ancorar-se, complementarmente, em corroborações (termo muito em uso entre a doutrina italiana) periféricas, na esteira de Carlos Clement Duran, aí citado, demonstrativas de um elevado grau de seriedade. XVII - Ao fim e ao cabo, o que importa é exercer um juízo de censura mais apurado na aferição do valor da co-declaração, que passa por um exigente filtro de exame e análise, atento o peso que ela exerce na formação da convicção probatória. XVIII - Na doutrina, Rodrigo Santiago (in RPCC, 1994, pág. 27 e ss.) repele a validade da fundamentação decisória quando nela se inscrevem, irrestritamente, as declarações do co-arguido, visto o que se preceitua nos arts. 323.º, al. a), e 327.º, n.º 2, do CPP, fundando nulidade do julgamento. XIX - Reconhecendo a fragilidade de tal meio de prova, situa-se Teresa Beleza (in Tão amigos que nós éramos, estudo publicado na RMP). E Alberto Medina de Seiça (in O Conhecimento Probatório do Coarguido, Coimbra ed., 1999, págs. 212 e ss.) sustenta a validade das declarações do co-arguido, desde que reforçada, apoiada, por qualquer outro meio de prova, por isoladamente ser insuficiente, como também propende a considerar Vasquez Sotelo (Presuncion de Inocencia del Imputado e Intima Conviccion del Tribunal, pág. 134). XX - É irrelevante o processo através do qual o autor mediato determina outrem à prática do ilícito, nos termos da parte final do art. 26.º do CP, seja ele conselho, ameaça, violência, ordem, promessa, dádiva, etc.; o que importa é que o facto ilícito não tivesse sido cometido sem aquela determinação, só então se podendo considerar que causou a realização do facto; a determinação do facto deve ser directa – cf. Eduardo Correia, Direito Criminal, II, págs. 252-253. XXI - No projecto criminoso delineado, em que o recorrente N começa por surgir como autor moral, sendo co-autor com o JA, que adere ao plano e o executa materialmente, com o qual acorda em vista da consecução de um resultado final, por ambos querido e desejado, aquele torna-se senhor do facto, que domina globalmente, tanto pela positiva – assumindo um poder de direcção, preponderante na execução conjunta do facto –, como pela negativa – podendo impedi-lo –, sem que se torne necessária, para a comparticipação estabelecida, a prática de todos os factos que integram o iter criminis (cf. Maria da Conceição Valdágua, in O Início da Tentativa do Co-Autor, 1985, Ed. Danúbio, págs. 155-156, na esteira de Roxin, Stratenwerth, Welzel e Jescheck, ali citados, e BMJ 341.º/202). XXII -Essencial à co-autoria, nos termos do art. 26.º do CP – quando aí se emprega a locução «ou toma parte directa na sua execução por acordo ou juntamente com outro ou outros», que deve ser entendida para além do mero somatório dos comportamentos individuais –, é um acordo respeitante à execução do plano, que tanto pode ser de extrema simplicidade, como altamente complexo, abrangendo sempre uma divisão de trabalho, uma repartição de tarefas entre co-autores, que se atribuem e aceitam prestar, destinadas ao plano comum. XXIII -Por isso, comportamentos autónomos, não integrados no plano comum, completamente desligados e alheios a ele, só responsabilizam individualmente o co-autor que os pratica e não os demais, o que também ressalta do princípio da culpa na co-autoria, firmado no art. 29.º do CP, à luz do qual cada comparticipante é punido de acordo com a sua culpa ou do grau de culpa dos outros comparticipantes. XXIV -No conceito de meio insidioso cabem todos os que podem rotular-se de traiçoeiros, desleais ou perigosos, tornando mais difícil ou impossível a defesa; os meios insidiosos são os que se empregam de forma enganosa ou fraudulenta e cujo poder mortífero se acha oculto, surpreendendo a vítima; a traição constitui um ataque sorrateiro e súbito, subreptício e dissimulado, atingindo a vítima descuidada, confiante de que nada lhe sucederá, de ordem tal que não se apercebe do gesto criminoso. XXV -Resultando comprovado, a propósito da integração do exemplo padrão previsto na al. h) do n.º 2 do art. 132.º do CP, que o arguido N, depois de desistir de matar seu pai, combinou como o arguido JA matar a madrasta, ora assistente, quando esta se achasse sozinha no interior da sua casa, usando uma faca para não alertar a vizinhança (o que sucederia se fosse usada uma arma de fogo), escrevendo-se no acórdão da 1.ª instância que «na mesma altura os arguidos mais combinaram entre si que o arguido transportaria, no seu referido veículo, o arguido J até às imediações da casa da assistente e que ali chegados, este último dirigir-se-ia para a porta da entrada desta, tocando à campainha e dizendo ser o car-teiro e que tinha uma encomenda para o referido JC» e que «logo que a assistente abrisse a porta, combinaram eles, o arguido J de imediato desferiria diversos golpes com uma faca no corpo daquela assim lhe provocando a morte», mostra-se factualmente demonstrado o aludido exemplo padrão, pela actuação gravemente traiçoeira do arguido, em termos de permitir erigir a construção de uma modalidade especial de incriminação sobre o tipo base, pela adição de elementos expressivos de um grau de culpa exacerbada, representativos de indícios de caso especialmente grave, à luz de circunstâncias objectivas e subjectivas reveladoras da insuficiência da moldura penal normal, incapaz de responder à retribuição penal do ilícito e da culpa, no dizer de Jescheck (Tratado de Derecho Penal, I, Parte General, págs. 363 e 367368). XXVI -O modus faciendi do crime obedece ao plano homicida (só não se seguindo o resultado morte inicialmente cogitado porque a vítima foi prontamente assistida e conduzida pelo INEM ao Hospital onde foi assistida), onde preponderam a astúcia, a minúcia (o arguido forneceu, inclusive, luvas ao JA, para apagar vestígios do crime) e a surpresa, qualificando o crime a agravante da al. h) do n.º 2 do art. 132.º do CP. XXVII -O quadro factual comprovado encarrega-se de pôr em destaque que pelo acto do co-arguido JA é também co-responsável o arguido ora recorrente, e que o homicídio tentado, uma vez que a tentativa não é inconciliável com a qualificação derivada dos n.ºs 1 e 2 do art. 132.º do CP, é qualificado pela refracção na sua conduta de um juízo de culpa agravado, revendo-se na realização do facto qualidades especialmente desvaliosas, atento o modo programado e engenhoso de execução, sem possibilidade de defesa por parte da vítima, além da inconsideração da relação existente entre ambos. XXVIII -Tendo os arguidos combinado o homicídio da assistente e, igualmente, que, após a consumação do crime, o arguido JA se apropriaria de bens e valores contidos no cofre existente na casa do pai do N,a repartir em partes iguais por ambos, como forma, desde logo, de recompensa do co-arguido JA, o crime de homicídio não se apresenta como meio para atingir o roubo, como instrumento daquele, correspondendo antes a uma resolução criminosa autónoma e diferenciada, apta a lesar interesses jurídicos que só em parte coincidem, não dispensando a punição pelo homicídio a tutela dos interesses patrimoniais que, sem serem os essencialmente visados com a incriminação, no crime complexivo de roubo, não deixam de configurar elemento constitutivo desse tipo de crime. Existe, pois, concurso real entre os dois ilícitos.
Proc. n.º 1971/08 -3.ª Secção
Armindo Monteiro (relator)
Santos Cabral (vencido, por entender que, em concurso de infracções, existe um crime de homicídio
qualificado sob a forma tentada e um crime de furto qualificado; todavia,
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