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    Sumários do STJ (Boletim) - Criminal
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ACSTJ de 14-03-2007
 Recurso da matéria de facto Competência da Relação Livre apreciação da prova Princípio da oralidade Princípio da imediação Discricionariedade Regras da experiência comum Vícios do art. 410.º do Código de Processo Penal Omissão de pronúncia Nulidade da sen
I - O recurso da matéria de facto não visa a obtenção de um segundo julgamento sobre aquela matéria, sendo antes uma forma de obviar a eventuais erros, ou incorrecções, cometidos na decisão recorrida. Não se visa um novo julgamento, mas sim a legalidade da decisão recorrida na forma como apreciou a prova e nos segmentos concretos indicados pelo recorrente. Tal impugnação está sujeita aos critérios do art. 412.º do CPP.
II - Existe uma incomensurável diferença entre a apreciação da prova em 1.ª instância e a efectuada em tribunal de recurso com base nas transcrições dos depoimentos. A sensibilidade à forma como a prova testemunhal se produz, e que se fundamenta num conhecimento das reacções humanas e análise dos comportamentos psicológicos que traçam o perfil da testemunha, só logra obter concretização através do princípio da imediação, considerado este como a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes, de modo a que aquele possa obter uma percepção própria do material que haverá de ter como base da decisão.
III - As consequências concretas da aceitação de tal princípio definem o núcleo essencial do acto de julgar em que emerge o senso, a maturidade e a própria cultura daquele sobre quem recai tal responsabilidade. Quando a opção do julgador se centra em elementos directamente interligados com o princípio da imediação (v.g. quando o julgador refere que os depoimentos não foram convincentes num determinado sentido em consequência da forma como foram produzidos) o tribunal de recurso não tem a possibilidade de sindicar a aplicação concreta de tal princípio.
IV - Porém, como refere Figueiredo Dias, o princípio da livre apreciação não pode de modo algum querer apontar para uma apreciação imotivável e incontrolável – e portanto arbitrária – da prova produzida. Se a apreciação da prova é, na verdade, discricionária, tem, evidentemente, esta discricionariedade os seus limites, que não podem ser licitamente ultrapassados.
V - A consequência mais relevante da aceitação destes limites à discricionariedade está em que, sempre que tais limites se mostrem violados, é a matéria susceptível de recurso ainda que o tribunal ad quem conheça, em princípio, apenas matéria de direito: solução acolhida expressamente no art. 410.º, n.° 2, do CPP e que a doutrina denomina de recurso de revista ampliada.
VI - Ainda de acordo com o mesmo Professor, a “livre” ou “íntima” convicção do juiz não pode ser uma convicção puramente subjectiva, emocional e portanto imotivável.
VII - Uma tal convicção existirá quando o tribunal tenha logrado convencer-se dos factos para além da dúvida razoável e esse convencimento corresponda à síntese de um processo lógico de formação de conhecimento, sendo ao mesmo essenciais a oralidade e a imediação.
VIII - Quando se fala da “oralidade”como princípio geral do processo penal tem-se em vista a forma oral de atingir a decisão: o processo será dominado pelo princípio da escrita quando o juiz profere a decisão na base de actos processuais que foram produzidos por escrito (actas, protocolos, etc.); será, pelo contrário, dominado pelo princípio da oralidade quando a decisão é proferida com base numa audiência de discussão oral da matéria a considerar.
IX - Inextricavelmente ligado ao princípio da oralidade deparamos com o princípio da imediação, que é o meio pelo qual o tribunal realiza um acto de credibilização sustentada sobre determinados meios de prova em relação a outros. As razões que servem para acreditar em determinadas provas, e não acreditar noutras, só são susceptíveis de ser apreciadas directamente pela pessoa que os avalia – o juiz do julgamento em 1.ª instância.
X - Porém, sempre se dirá que a credibilidade em concreto de cada meio de prova tem subjacente a aplicação de máximas da experiência comum que enformam a opção do julgador. A sua aplicação está, sem dúvida, fora de qualquer controle, mas a legalidade daquela regra da experiência, como norma geral e abstracta, poderá eventualmente ser questionada caso careça de razoabilidade. Assim, a determinação da credibilidade está condicionada pela aplicação de regras da experiência que têm de ser válidas e legítimas dentro de um determinado contexto histórico e jurídico.
XI - Pelo contrário, para apreciar a verosimilhança do relato de uma testemunha ou perito e demais meios de prova, bem como a emergência da prova directa ou indirecta, e a partir daí controlar o raciocínio indutivo, não se requer necessariamente a imediação. Neste caso estamos perante uma questão de verosimilhança ou plausibilidade das conclusões contidas na sentença.
XII - Aqui, o tribunal superior – que está impedido de criticar a opção pela valoração da credibilidade de um determinado meio de prova – já tem o dever de analisar o depoimento prestado, em si mesmo considerado, e concluir, ou não, se a versão que apresenta é objectivável, ou seja, se qualquer um aceitaria o raciocínio explanado como compatível com o sentido comum.
XIII - Pode, assim, concluir-se que o recurso em matéria de facto não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento da decisão recorrida, mas apenas, em plano diverso, uma reapreciação sobre a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal a quo relativamente à decisão sobre os «pontos de facto» que o recorrente considerou incorrectamente julgados, e dos que, na base, para tanto, da avaliação das provas (provas, em suporte técnico ou transcritas quando as provas tiverem sido gravadas) – art. 412.º, n.º 3, al. b), do CPP –, na perspectiva do recorrente, impunham decisão diversa» da recorrida ou que se determinasse a renovação das provas.
XIV - No caso dos autos, o recorrente enumera a prova (especificamente a prova testemunhal) que, em seu entender, leva a conclusão diversa da decisão recorrida em termos de segmentos da matéria de facto que especifica e que considera não terem ficado provados, nomeadamente, faz apelo ao depoimento de sete testemunhas e declarações de uma arguida, que identifica.
XV - O tribunal recorrido não podia ter concluído que «não se demonstrando ter havido erro na apreciação da prova ou que esta foi apreciada de forma arbitrária – antes estando demonstrado que a escolha feita foi conseguida de forma objectiva e fundamentada – está o mesmo Tribunal vinculado pelo princípio da livre apreciação da prova devendo respeitar a convicção formada pelo Tribunal recorrido», pois a prova aduzida pelo recorrente não se circunscreveu à prova sobre a qual o tribunal de recurso emitiu a sua apreciação – caso existisse uma coincidência entre tal prova e a indicada pelo recorrente como fundamento de impugnação encontrava-se cabalmente cumprido o objecto de recurso em matéria de facto –, o recorrente fez apelo a outra prova (depoimentos de três testemunhas), também ela consubstanciadora da sua divergência relativamente à matéria de facto, e sobre a relevância desta prova nenhum juízo de valor foi emitido pelo Tribunal da Relação.
XVI - Não tendo apreciado o recurso nessa dimensão, o acórdão recorrido omitiu pronúncia sobre questão de que era obrigado a conhecer, razão pela qual é nulo, nos termos dos arts. 428.º, n.º 1, 431.º, 425.º, n.º 4, e 379.º, n.º 1, al. c), todos do CPP.
Proc. n.º 21/07 - 3.ª Secção Santos Cabral (relator) Oliveira Mendes Maia Costa Henriques Gaspar