ACSTJ de 28-02-2007
Princípio do contraditório Matéria de direito Princípio da presunção de inocência Direito ao silêncio Manifestações não verbais Declarações do arguido Livre apreciação da prova Regras da experiência comum Exame crítico das provas Tráfico de estupefaciente
I - O princípio do contraditório, com tradução constitucional no art. 32.º, n.º 5, da CRP, apresenta-se como princípio da audiência, sob o enfoque de que deve ser dada, no processo, oportunidade a todo o participante processual de nele influir, pela sua audição. II - Enquanto integrante da estrutura do direito a um processo justo e equitativo, apresenta-se como instrumento fundamental de realização do direito de defesa e do princípio da igualdade de armas, no sentido de, para aquela se mostrar exercitada, ao sujeito processual assistir o direito de pronúncia e de, ante as provas, em julgamento, delas tomar conhecimento, poder contrariá-las e produzi-las nas mesmas exactas condições que a parte contrária. III - O princípio, no plano transnacional, particularmente da CEDH, no seu art. 6.°, parte 1, inscreve-se – e assim o tem concebido a jurisprudência do TEDH – como um direito fundamental e, como tal, se deverá ter como respeitante à matéria de direito, de sindicância pelo STJ. IV - Não faz sentido a crítica do recorrente neste domínio se o mesmo, presente e representado em audiência, pôde exercitar o seu direito de defesa, examinar, contrariar as provas, e produzir as suas, a bem daquele direito, sendo a indefinição em que incorreu o tribunal corolário do resultado da apreciação das provas, da convicção formada pelo tribunal em resultado da sua livre valoração (art. 127.º do CPP), de que o recorrente discorda. V - A presunção de inocência implica o direito ao silêncio. O acusado nada deve provar. Pode acantonar-se num papel de contestação puramente passiva, devendo, no entanto, dispor da faculdade de fornecer contraprovas (cf. Ac. deste STJ de 29-01-1997, Proc. n.º 965/97 - 3). VI - Do princípio da presunção de inocência resulta que o acusado se presume inocente até prova em contrário, mostrando-se intimamente ligado aos princípios in dubio pro reo e da nulla poena sine culpa, este último segundo o qual o juiz não pode pronunciar sentença condenatória sem estar convencido da culpa do agente. A CEDH, ao abordar o princípio, preocupa-se em que os juízes não profiram uma condenação senão com base em provas directas ou indirectas, mas suficientemente fortes aos olhos da lei para estabelecer a culpabilidade do interessado; não respeita nem à natureza nem ao quantum da pena. VII - O contributo da linguagem falada para a formação da convicção é, muito mais do que se pensa, assaz limitado, maior preponderância se atribuindo às manifestações exteriores do declarante, aos seus gestos, emoções, reacções, movimentos, tom de voz, etc., pelo que o aproveitamento de um gesto, com um significado culpabilizante, a partir de quem guarda silêncio, importará violação daquele direito. VIII - Caso o arguido se disponha a prestar declarações, o seu interrogatório visa esclarecer a verdade (art. 343.º, n.º 1, do CPP) e, sendo esse o objectivo, não se pode excluir a possibilidade de o tribunal apreciar livremente as suas declarações de acordo com as regras da experiência e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica (cf. Ac. deste STJ de 19-12-1996, CJSTJ, Ano IV, III, pág. 214). Se, diversamente, o arguido se relegar a uma postura silenciosa, essas manifestações não podem ser valoradas. IX - Tendo o arguido prestado declarações em julgamento, não estava vedado ao colectivo valorar as suas manifestações pessoais exteriores (para além das palavras, a linguagem corporal, incluindo o olhar, a forma de discurso, a reacção física visível às perguntas, a sua presença e outras manifestações, designadamente a inquietude da postura e o movimentar das mãos) no sentido em que a sua livre convicção o impelia, que lhe foi desfavorável, sem que isso importe violação do direito ao silêncio. X - O exame, como a semântica consigna, é a constatação, pelo tribunal, das provas. A crítica é a afirmação da sua credibilidade ou incredibilidade, ou seja, em derradeira operação valorativa, a afirmação das provas que lhe merecem aceitação e das que lhe merecem rejeição, a razão por que umas são elegíveis e outras não, os motivos substanciais por que relevaram ou obtiveram credibilidade no espírito do julgador (cf. Lopes do Rego, Comentário ao Código de Processo Civil, pág. 434), para que o arguido saiba em que provas e razões assentou a condenação, controlando-as. XI - Não ocorre falta de exame crítico das provas se o tribunal, na sua longa fundamentação, indicou as provas produzidas, criticou-as, disse o porquê da valia de umas e descredenciou outras, compreendendo-se, da leitura da fundamentação decisória, o iter lógico e racional trilhado pelo colectivo, de modo a poder afirmar-se que a condenação procede de uma apreciação correcta das provas, apresentando-se como uma peça coerente, fundada, convincente e à margem do arbítrio, não enfermando de contradições ou lacunas de pensamento, não violadora das regras da experiência e do bom senso, capaz de se impor quer aos sujeitos processuais quer à comunidade mais vasta dos cidadãos, seus destinatários. XII - Resultando da factualidade assente que:- no âmbito da actividade do arguido VS foram efectuados diversos desembarques de haxixe na costa algarvia, mais concretamente perto da cidade de T…, desembarques estes que foram supervisionados pelo arguido VS, que pagou a pessoas para o auxiliarem em cada uma dessas operações e tratou da logística inerente;- nos dias 17-10-2003, 02-12-2003, 20-12-2003, 21-12-2003, 23-12-2003 e 27-12-2003, houve desembarques de fardos de haxixe, a mando e sob o supervisionamento do arguido VS;- os desembarques e subsequente encaminhamento do haxixe ocorridos no dia 27-12-2003 foram de 120 fardos de haxixe, num total aproximado a 3600 kg;- o arguido combinou um desembarque de, pelo menos, 66 fardos de haxixe, com um peso global não inferior a 2110,200 kg, para o dia 07-01-2004, em …, cujo preço pagaria;- o arguido VS hospedou-se então no quarto n.º…do Hotel …, situado naquele local, a partir do dia 06-01-2004;- deixou no interior desse quarto a importância de € 200 025, em notas de € 5, € 10 e € 20, destinada ao pagamento de haxixe;- contratou ainda pessoas, cuja identidade não foi possível apurar, para procederem às operações de transbordo do estupefaciente para a embarcação “S…”, do seu desembarque para a praia e subsequente transporte e armazenamento em terra;- no dia 07-01-2004, pelas 19h00, foram desembarcados na praia, junto a…, os já referidos 66 fardos de haxixe (resina de canabis), com o peso líquido total de 2110,200 kg;mostra-se preenchida a agravante prevista na al. c) do art. 24.º do DL 15/93, de 22-01, pois que da imagem global do facto ressalta que o arguido se dedicava ao grande tráfico, em escalão superior ao da média, o que se induz de uma evidente logística e organização, tanto em meios humanos como de apoio material ao êxito da operação, sendo ele o supervisor, dando mostra o dinheiro apreendido do volume do negócio e da pretensão de lucro ilegítimo a alcançar, visível a partir da elevada quantidade de haxixe obtido. XIII - Dentro da moldura penal abstracta de 5 a 15 anos de prisão, correspondente ao crime de tráfico de estupefacientes agravado p. e p. pelo art. 24.º, al. c), do DL 15/93, de 22-01, na redacção introduzida pela Lei 11/2004, de 27-03, e tendo em consideração, para além da factualidade supra-enunciada, que:- o envolvimento do arguido é intencional, quis dedicar-se ao tráfico de estupefacientes, não de uma forma epidérmica, circunstancial, mas deliberada, firme e volumosa, estando ligado a desembarques de haxixe na costa algarvia, supervisionados por si, tendo pago a pessoas para o auxiliarem em cada uma dessas operações e tratado da logística inerente, de forma a assegurar sucesso, sendo, pois, o seu dolo de intenção muito intenso;- o grau de ilicitude, ou seja, de demérito da sua acção, muito elevado, a inferir das quantidades de haxixe que fez entrar em Portugal, do modo de execução do crime, onde pontificou, mediante recurso a terceiros e meios materiais com sofisticação – uma embarcação – tudo em nome da ganância do lucro, da avidez por dinheiro, em obediência a uma personalidade mal formada e absolutamente indiferente a bens e valores jurídicos reinantes no tecido social;- são muito sentidos os fins de prevenção geral e especial, de emenda cívica;é proporcionada e justa ao procedimento do arguido a pena de 10 anos de prisão.
Proc. n.º 3646/06 - 3.ª Secção
Armindo Monteiro (relator)
Santos Cabral
Oliveira Mendes
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