Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa
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    Sumários do STJ (Boletim) - Criminal
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ACSTJ de 24-10-2006
 Princípio da proibição da dupla valoração Agravante Tráfico de estupefacientes agravado Ilicitude Prevenção geral Medida da pena Medida concreta da pena Direito ao silêncio Direitos de defesa Perda de bens a favor do Estado Criminalidade organizada Crimin
I - O princípio da proibição de dupla valoração impede que a mesma circunstância agravativa seja valorada por duas vezes, num primeiro momento fazendo-a funcionar como agravante modificativa do tipo de crime, com alteração da moldura da pena abstracta, num segundo momento fazendo-a operar como agravante de natureza geral, para justificar que a pena concreta seja mais elevada do que seria sem ela.
II - O crime de tráfico agravado, previsto no art. 24.º do DL 15/93, de 22-01, verifica-se quando o agente pratica os factos que integram o crime simples de tráfico de estupefacientes e, ao fazê-lo, concorrem uma ou mais das circunstâncias ali enumeradas taxativamente, como sejam, as substâncias ou preparações serem entregues ou destinarem-se a menores ou diminuídos psíquicos, ou serem distribuídas por grande número de pessoas, ou o agente ter obtido ou procurado obter avultada compensação remuneratória, etc..
III - Tratam-se, efectivamente, de circunstâncias que agravam em especial a ilicitude e cuja consideração faz aumentar as exigências de prevenção geral do crime. Com efeito, nesses casos, a moldura penal modifica-se, com a agravação do mínimo e do máximo da pena em um quarto, pois, como se lê no preâmbulo do diploma legal em causa, “os crimes mais graves de tráfico de droga devem merecer equiparação ao tratamento previsto… para a criminalidade violenta ou altamente organizada e para o terrorismo”.
IV - Contudo, verificada que esteja uma dessas circunstâncias que determina a agravação da moldura penal abstracta, há que ponderar o seu grau de intensidade quando se procede à determinação do quantum da pena, pois pode ser maior ou menor dentro desse quadro - pense-se que é mais reduzido o grau de ilicitude pela venda de estupefacientes a um só menor do que a uma centena de menores, como também tal grau é mais reduzido se o agente obtém na venda desses produtos cem mil euros de remuneração em vez de um milhão de euros.
V - Assim, não se está a fazer uma dupla valoração da circunstância agravativa, mas a proceder a análises diferentes, a primeira de ordem qualitativa para saber se a circunstância é uma das que estão enumeradas na lei, a segunda de ordem quantitativa para apurar a sua ordem de grandeza no quadro já definido.
VI - A violação da proibição de dupla valoração só existe se a apreciação da circunstância modificativa for feita mais do que uma vez sob a mesma perspectiva, qualitativa ou quantitativa, em prejuízo do arguido - seria o caso de admitir-se que a venda de estupefacientes a um só menor já é tráfico agravado - apreciação qualitativa - e na fixação da pena considerar-se tal circunstância como agravante de natureza geral, já que do ponto de vista quantitativo representa a mais reduzida licitude dentro desse quadro agravativo.
VII - O uso do silêncio a perguntas feitas por qualquer entidade, designadamente no decurso do julgamento, não pode prejudicar o arguido, pois é um direito consagrado na lei (arts. 61.°, n.º l, al. c), e 343.º, do CPP).
VIII - Todavia, ao não falar, o arguido prescinde de poder gozar de circunstâncias atenuantes de relevo, como sejam a confissão e o arrependimento.
IX - Por outro lado, embora a mentira do arguido não seja sancionada penalmente, também não é um direito que lhe assiste, pelo que a tentativa de enganar a investigação e de prejudicar gravemente outra pessoa cuja responsabilidade é menor representa uma conduta processual censurável.
X - A Lei 5/2002, de 11-01, veio estabelecer medidas de combate à criminalidade organizada e económico-financeira, configurando um regime especial de recolha de prova, de quebra do segredo profissional e de perda de bens a favor do Estado relativa aos crimes de tráfico de estupefacientes, nos termos dos arts. 21.º a 23.º e 28.º do DL 15/93, para além de outros crimes aí discriminados.
XI - A não referência ao art. 24.º do DL 15/93 não nos deve iludir, pois tal preceito legal não define um outro tipo de crime, não é um crime «qualificado» com outros elementos típicos, antes representa o crime tipo do art. 21.°, agravado.
XII - A Lei 5/2002 alterou, não só as regras processuais, como também algumas regras substantivas, relativas à perda de bens a favor do Estado.
XIII - Na realidade, o legislador, tendo considerado que nem sempre se afigura fácil a prova de que os bens patrimoniais dos arguidos em certos crimes organizados ou económico-financeiros são vantagens provenientes da actividade ilícita e, portanto, sujeitos a perda a favor do Estado, nos termos dos arts. 109.º a 111.° do CP, veio estabelecer algumas regras que impedem os agentes criminosos de se refugiarem, quanto a esse aspecto, numa mera aparência de legalidade, ou de pretenderem prevalecer-se da dúvida.
XIV - Por isso, nesses crimes são declarados perdidos para o Estado os bens ou vantagens económicas que não se provarem serem de origem lícita, o que é uma regra substantiva diferente da estabelecida no CP (e na lei da droga) para a generalidade dos crimes, onde só a prova positiva da origem ilícita permite a perda para o Estado.
XV - E, assim, para crimes de tráfico de estupefacientes e outros mencionados, presume-se constituir vantagem da actividade criminosa a diferença entre o valor do património do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito (art. 7.° da Lei 5/2002), remetendo-se para o arguido o ónus de provar a licitude do seu património.
XVI - Para tal, o MP na acusação ou até 30 dias antes do julgamento liquida o montante que deve ser perdido para o Estado (art. 8.º). Depois, o Tribunal pode oficiosamente, na sua livre convicção, considerar que tal montante é de origem lícita ou o arguido tem a possibilidade de ilidir a presunção através de todos os meios de prova permitidos na lei (art. 9.º).
XVII - O facto de contas e valores apreendidos remontarem a datas anteriores à dos factos versados no processo e de alguns desses valores serem de contas que não eram (supostamente) de propriedade exclusiva do arguido, mas de sociedades de que o mesmo não seria o único nem principal sócio, não os fazem deixar de pertencer ao “património do arguido”, para o efeito do art. 7.°, n.º 1, da Lei 5/2002, pois são situações que se integram nas hipóteses definidas no n.º 2 dessa disposição.
XVIII - O legislador considerou que nem sempre se afigura fácil a prova de que os bens patrimoniais dos arguidos em certos crimes organizados ou económico-financeiros são vantagens provenientes da actividade ilícita e, portanto, constituiu uma série de mecanismos que tornam muito difícil para os agentes de tais crimes prevalecerem-se da dúvida.
Proc. n.º 3163/06 - 5.ª Secção Santos Carvalho (relator) ** Costa Mortágua Rodrigues da Costa