ACSTJ de 19-10-2006
Crime continuado Bem jurídico protegido Bens eminentemente pessoais Menor Violação Abuso sexual de crianças Medida da pena Fins das penas Prevenção geral Prevenção especial Culpa Medida concreta da pena Cúmulo jurídico Pena única
I - Não basta, para que se afirme a ocorrência de um só crime continuado, «a realização plúrima de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico». Mister será ainda que essa realização seja executada não só «por forma essencialmente homogénea» como «no quadro de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa» (art. 30.º, n.º 2, do CP). II - Não é essencialmente homogénea a forma como o arguido realizou, ainda que sobre a mesma pessoa, o tipo de crime de abuso sexual de criança agravado e o tipo de crime de violação agravada: enquanto que no 1.º caso (27-02-01), o arguido, entrando no quarto da filha, então com 11 anos de idade, lhe exibiu o pénis erecto, com ele lhe tocando depois na vulva, acabando por ejacular «em cima dela», já no 2.º caso (21-03-04) o arguido, ao transportar a filha (então com 15 anos de idade) no seu ciclomotor, desviou-o para um descampado, onde «socorrendo-se do seu ascendente e da sua maior força muscular, lhe introduziu (até à ejaculação) o pénis erecto na vagina». III - Mas, mesmo que aqui se não visse, na forma como o arguido realizou um e outro tipo de crime, senão a heterogeneidade própria de cada um deles, ainda assim faltaria - para que se pudesse afirmar a ocorrência de um só crime continuado - que a realização dos dois tipos de crime decorresse de «uma mesma situação exterior» (sendo que a única semelhança entre uma e outra terá sido a de o arguido se encontrar a sós com a filha) e, mais ainda, que essa «situação exterior» diminuísse consideravelmente a culpa do agente (o que nunca seria o caso, já que a 2.ª «situação exterior» não se lhe deparou fortuitamente, antes foi dolosamente procurada pelo arguido, que, para tanto, se desviou do caminho que programara com a filha ao aceitar levá-la a casa de uma amiga e trazê-la de volta a sua casa, onde a filha - a viver em casa da mãe desde os acontecimentos de 3 anos antes - viera passar o dia do seu aniversário). IV - É sabido que, de um modo geral, «a medida da pena há-de ser encontrada dentro de uma moldura de prevenção geral positiva», vindo a ser «definitiva e concretamente estabelecida em função de exigências de prevenção especial, nomeadamente de prevenção especial positiva ou de socialização». V - No caso (em que a moldura penal abstracta do crime de abuso sexual de criança agravado é a de 1,33 a 10,66 anos), o ponto óptimo de realização das necessidades preventivas da comunidade - ou seja, a medida de pena que a comunidade entenderia necessária à tutela das suas expectativas na validade e no reforço da norma jurídica afectada pela conduta do arguido situar-se-ia nos 3,5 anos de prisão (ante o facto de este, na noite do dia 27-02-01, quando a filha, então com 11 anos de idade, estava na casa da avó, ter entrado no seu quarto e, estando ela sentada na cama em camisa de noite, lhe ter exibido, masturbando-se, o pénis erecto, com que, depois lhe «tocou» na vulva, acabando por ejacular «em cima dela»). VI - Mas «abaixo dessa medida (óptima) da pena de prevenção, outras haverá - até ao “limite do necessário para assegurar a protecção dessas expectativas” - que a comunidade ainda entenderá suficientes para proteger as suas expectativas na validade da norma. O «limite mínimo da pena que visa assegurar a finalidade de prevenção geral» coincidirá, pois, em concreto, com «o absolutamente imprescindível para se realizar essa finalidade de prevenção geral sob a forma de defesa da ordem jurídica» (e não, necessariamente, com «o limiar mínimo da moldura penal abstracta»). E, no caso, esse limite mínimo (da moldura de prevenção) poderá encontrar-se por volta dos 2,5 anos de prisão (uma vez que sobre o crime passaram entretanto quase seis anos). VII - «Os limites de pena assim definida (pela necessidade de protecção de bens jurídicos) não poderão ser desrespeitados em nome da realização da finalidade de prevenção especial, que só pode intervir numa posição subordinada à prevenção geral», mas concorrendo ela, dentro dos limites da moldura de prevenção, para a concretização da pena, o comportamento anterior do arguido (sem condenações), a sua idade (32 anos de idade à data e 38 agora) e o seu comportamento posterior (em que, três anos depois, recidivou, sendo certo, porém, que, na cadeia, tem tido «um comportamento adequando às normas, não registando qualquer sanção disciplinar») poderão invocar-se para aferir o quantum exacto da pena - impelindo-a para meados [3 anos] da moldura de prevenção, tendo em conta, ainda, que «tem o apoio da família, que o ajuda e o ama, visitando-o regularmente no EP e prestando-lhe apoio incondicional» e que «projecta, quando restituído à liberdade, recomeçar a trabalhar». VIII - Com vista à concretização da pena correspondente ao crime de violação agravada, será de 8 anos de prisão o ponto óptimo de realização das necessidades preventivas da comunidade e de 6 anos de prisão o “limite (mínimo) do (estritamente) necessário para assegurar a protecção dessas expectativas”. Nesta moldura de prevenção, funcionarão, fixando a pena, as exigências de prevenção especial, que - tendo em conta que a «existência» do arguido, com uma «organização cognitiva enquadrada em padrões médios» e apresentando «uma vida social aparentemente integrada» («apesar da manifestação de condutas percepcionadas pela comunidade mais próxima como menos maduras e consistentes, particularmente em aspectos do foro afectivo»), tem visto «comprometido o seu processo de autonomia» (conduzindo a uma «auto-percepção negativa» e a «um certo isolamento sócio-afectivo»), ao ser vivenciada de forma marcadamente simplista, emotiva e superficial no contacto com a matriz social envolvente, quer seja na esfera familiar, interpessoal e profissional» - prescreverão uma pena intermédia de 7 anos de prisão. IX - «Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles, é condenado numa pena única» (art. 77.º, n.º 1, do CP), considerando-se, em conjunto, os factos e a personalidade do agente (n.º 2). X - Em sede de pena conjunta/unitária, «tudo deve passar-se como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique» (Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, § 429). E, no caso, o arguido cometeu, sobre sua filha menor, 2 crimes contra a sua autodeterminação sexual (o 1.º, em 2001, tinha ela 11 anos de idade, e o outro no preciso dia em que ela, para comemorar o seu 15.º aniversário, visitava o pai). XI - Por outro lado, «na avaliação da personalidade - unitária - do agente, relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (…) criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade; [sendo certo que] só no primeiro caso [incluindo, como aqui, o da pluriocasionalidade radicada na personalidade] será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta» (a. e ob. cit., § 521). XII - Daí que se fixe a pena conjunta em 8 anos de prisão.
Proc. n.º 3131/06 - 5.ª Secção
Carmona da Mota (relator, com declaração de voto pugnando “relativamente ao
crime de violação agravada, por uma pena parcelar não superior a 6 anos (…)
e, para o concurso de crimes, por uma pena con
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