Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa
Actualidade | Jurisprudência | Legislação pesquisa:


    Sumários do STJ (Boletim) - Criminal
Procurar: Assunto    Área   Frase
Processo   Sec.                     Ver todos
ACSTJ de 12-10-2006
 Tráfico de estupefacientes Tráfico de menor gravidade Imagem global do facto In dubio pro reo
I - Apurando-se que:- o arguido A, desde, pelo menos, meados de 2003 até à altura em que foi detido (07-10-04), foi-se dedicando à compra e venda de droga (principalmente cocaína, mas também haxixe), nas zonas de X e Y;- era ele que, em regra, diligenciava pela aquisição da cocaína, para, depois, a fazer distribuir por diversas pessoas interessadas na aquisição do produto, mormente consumidores, para o que tinha a directa colaboração do arguido T, no mercado de PB;- na sequência de buscas ordenadas, levadas a cabo em 07-10-04, foram encontrados e apreendidos uma caixa metálica, 2 embalagens de cocaína com o peso aproximado de 2,5 g, mais 2 embalagens de cocaína, com o peso aproximado de 3,3 g, um “ovo” de plástico, contendo três fragmentos de haxixe com o peso aproximado de 1,8 g, e a quantia de € 780 (coisas que o 1.º arguido tinha consigo), dois telemóveis, um saco plástico, contendo no seu interior um “ovo” com cerca de 105,2 g de cocaína, uma balança electrónica, diversos recortes de plástico próprios para acondicionar produtos estupefacientes, uma tesoura e uma colher com resíduos de pó e uma embalagem de bicarbonato (coisas que se encontravam num estabelecimento comercial do arguido A), e a quantia de € 12 500, duas navalhas com resíduos de produtos estupefacientes, um fragmento de haxixe com cerca de 45 g, um tubo contendo cerca de 24,2 g de liamba, um frasco contendo cerca de 12,44 g de liamba e diversos papéis (coisas essas que se encontravam na residência do arguido A e de um outro arguido);- do dinheiro apreendido ao arguido A, € 150 tinham-lhe sido pagos por consumidores, seus clientes, em troca de produto estupefaciente;cumpre entender que o arguido A cometeu um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21.º do DL 15/93, de 22-01.
II - A persistência no tempo - pelo menos um ano - da actividade delituosa, as quantidades consideráveis de produto estupefaciente com que foi surpreendido, a natureza «pesada» da maior parte da droga em causa, a organização já avançada, com recurso a vários intermediários, o recurso a balança electrónica e toda a envolvência provada, afastam decisivamente a situação de um quadro de ilicitude consideravelmente diminuída quanto ao referido arguido.
III - Por outro lado, apurando-se que:- no dia X, na zona Y, o arguido B procedeu à entrega ao arguido C de 429,168 g de cocaína, para posterior entrega a D, entrega esta que, de seguida, foi efectuada a este, sendo que, no decurso da operação, elementos da Polícia Judiciária vieram a apreender esse produto e a deter o referido D;- o arguido C procedeu a tal entrega a pedido daquele arguido D, seu habitual fornecedor de produto estupefaciente e perante o qual o mesmo arguido tinha uma dívida;importa entender que os arguidos B e C cometeram um crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo art. 25.º do DL 15/93.
IV - Quanto à situação indicada em III), tirando a qualidade, pesada, da droga e a sua quantidade, já apreciável, toda a restante envolvência ou circunstancialismo de facto favorece os referidos dois arguidos: a sua intervenção limita-se à «entrega» da droga, não se podendo afirmar, sequer, e muito menos provar, que essa «entrega» constituísse um acto interessado ou interesseiro dos arguidos, ou qual o móbil de tal actuação ilícita.
V - Na parcimónia evidente de averiguação que as instâncias levaram a cabo, não se sabe qual o trajecto do produto e sua duração, ou seja, onde começou e onde terminou a posse para entrega, enfim se o trajecto da droga foi longo ou curto, a duração da posse, elementos sem dúvida importantes para caracterizar a ilicitude e mesmo a culpa tendo em vista que uma maior duração dessa posse poria a nu uma mais forte tensão de vontade dos arguidos em realizá-la.
VI - E, sabe-se, quando em processo penal se impõe conjecturar, ante as dúvidas que os factos deixam em aberto, manda a lei que elas se volvam a favor do arguido.
VII - Logo, no caso, temos de olhar a conduta dos dois arguidos face à droga em causa, não apenas como inteiramente desinteressada, mas mesmo como um acto de desinteressada entreajuda perante um amigo em dificuldades, ou, pelo menos, desprovido de carga ética negativa. E também como um acto isolado, esporádico, e não integrado em qualquer complexo de actuação criminosa.
VIII - Daqui resulta uma imagem global do facto significativamente atenuada na sua ilicitude, pois todos concordarão em que uma «entrega» - ainda que de drogas duras e mesmo já numa quantidade razoável, como os cerca de 429 g de cocaína no caso presente - como actividade desgarrada de qualquer outro facto censurável, não pode equiparar-se, em termos de gravidade de ilicitude, a outro, inserido numa clara actividade traficante, porventura com fins lucrativos.
Proc. n.º 2683/06 - 5.ª Secção Pereira Madeira (relator) Santos Carvalho Costa Mortágua Rodrigues da Costa