ACSTJ de 25-10-2006
Homicídio Homicídio privilegiado Compreensível emoção violenta
I - A emoção não conduz a uma presunção de sensível diminuição da culpa do agente. A sua prova deve ser feita de acordo com o circunstancialismo concreto. II - «Compreensível emoção violenta é um forte estado de afecto emocional provocado por uma situação pela qual o agente não pode ser censurado e à qual o homem normalmente fiel ao direito não deixaria de ser sensível» (cf. Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense, vol. I, pág. 50). III - A única via possível de aferir a compreensibilidade é através da valoração da própria emoção - «… o que interessa é “compreender” esse mesmo estado psíquico, no contexto em que ele se verificou, a fim de se poder simultaneamente “compreender” a personalidade do agente manifestada no facto criminoso e, assim, efectuar sobre a mesma o juízo de (des) valor que afinal constitui o juízo de culpa» (op. cit. págs. 51-52). IV - Na tarefa de descobrir a compreensibilidade da emoção é «imperativo o estabelecimento de uma relação entre o afecto e as suas causas ou motivos, pois, para entender uma emoção têm de se considerar as razões que lhe deram origem, tendo em atenção o sujeito que a sentiu. A compreensibilidade da emoção é mais, assim, o estabelecer de uma relação não desvaliosa entre os factos que provocaram a emoção e essa mesma emoção. Se essa relação for estabelecida, a emoção é compreensível e provoca, portanto, uma diminuição da culpa do agente» (cf. Figueiredo Dias, CJ, tomo IV, 1987, pág. 55). V - Do quadro factual apurado nos autos resulta, entre o mais, que:- o arguido, nas circunstâncias descritas, envolveu-se em discussão com a esposa, A, após o que esta saiu de casa;- de seguida, o arguido, exaltado, dirigiu-se ao 1.º andar da residência e pegou na sua espingarda caçadeira que retirou do estojo respectivo, carregou-a com dois cartuchos, e saiu de casa, indo atrás da esposa, com o propósito de lhe tirar a vida;- avistou-a já na via pública, e aproximou-se dela pelas costas;- quando se encontrava a uma distância não superior a 5 metros, chamou-a, e quando esta se voltou, elevou a arma à altura do ombro e apontou-a na direcção da A, visando-lhe a cabeça, premiu o gatilho e efectuou um disparo, após o que a vítima caiu desamparada no solo, a cerca de 23 metros do portão de acesso à sua propriedade;- actuou com o propósito de tirar a vida à sua esposa, sem que nada o justificasse;pelo que se impõe concluir pela total improcedência da pretensão do arguido de ver a sua conduta subsumida à previsão do artigo 133.º do CP, ou seja do crime de homicídio privilegiado. VI - Com efeito, qualquer hipótese de “compreensibilidade” da alegada “emoção violenta”, estaria afastada perante o facto de ter tirado a vida à mulher “sem que nada o justificasse”, tal como emerge dos factos provados. VII - E ainda que se tivesse tal expressão [sem que nada o justificasse] como meramente conclusiva, sempre a ela se chegaria pela análise cuidada do restante material fáctico, donde emerge não só que o arguido agiu com intenção e consciência da ilicitude do seu acto e suas consequências, como que os factos não provados afastam qualquer base de apoio, ou melhor, qualquer “compreensão”, para a conduta homicida que decidiu levar a cabo, nomeadamente qualquer hipótese de infidelidade da vítima ou outra provocação por parte dela, não se provando, sequer, que esta tenha “enxovalhado, recalcado, desprezado e ferido intencionalmente” o arguido. VIII - Se de alguma “emoção violenta” o arguido estava possuído no momento de consumação do acto criminoso, ela nunca se poderia ter como “compreensível”, justamente por carência de factos em que pudesse assentar a reclamada e acima referida “relação não desvaliosa entre os factos que provocaram a emoção e essa mesma emoção”. IX - Mas, mesmo admitindo que o arguido tivesse razões para desconfiar da fidelidade da vítima - razões que os factos não comportam - não procede, claramente, a alegação de que o homicídio teria correspondido a um “lavar de honra com sangue”, dado ter acontecido em Tondela, “no interior do País”, enfim, um “motivo honroso”, um “desagravo da sua honra”. Para este efeito, “constitui motivo de valor moral todo aquele que é apoiado pela moralidade média”, sendo facto notório que a evolução de hábitos e atitudes atingiu paulatinamente todo o país, e, por isso, obsoleto o argumento de que é ‘motivo honroso’ o desagravar a sua dignidade face às infidelidades da mulher. X - Não se impõe, certamente, que todos encarem com a mesma naturalidade tal situação. E não é de excluir, a priori, que possa haver casos em que a reacção conjugicida seja enquadrável na figura do homicídio privilegiado. Mas não é seguramente a situação do arguido, apenas e só porque o caso aconteceu em Tondela. Para mais, tratando-se de pessoa comprovadamente com vivências sociais diversas, nomeadamente depois de ter vivido vários anos no Canadá, onde conheceu a vítima, com quem contraiu casamento na cidade de Toronto.
Proc. n.º 1286/06 - 3.ª Secção
Soreto de Barros (relator)
Armindo Monteiro
Santos Cabral
Oliveira Mendes
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