ACSTJ de 25-10-2006
Arma Roubo agravado Arma de fogo não municiada Ofendido Mera detenção Bem jurídico protegido Consumpção Coacção Violência Mal importante Co-autoria Documento Matrícula Documento autêntico Falsificação Detenção de arma proibida Detenção ilegal de arma Apli
I - Constando dos factos provados que o arguido J fez uso de um instrumento com lâmina cortante e perfurante em tudo semelhante a outro, retratado nos autos, não pode afirmar-se revelar-se aquele instrumento incaracterístico, de formato indeterminado ou portador de características dissemelhantes ao apreendido. II - E pelo seu descritivo fotográfico estava ao alcance do julgador denominá-lo de arma, na definição que dela dá o art. 4.º do DL 48/95, de 15/3, ou seja enquanto instrumento, ainda que de aplicação definida, que seja usado ou possa ser utilizado como tal, para lesar fisicamente, conceito que a Lei 5/2006, de 23/2, na sua feição revogatória, deixou intocado. III - A integração da qualificativa do crime de roubo prevista no art. 204.º, n.º 2, al. f), do CP (por remissão do art. 210.º, n.º 2, al. b), do mesmo diploma legal) através do mero porte de arma oculta, não visível, sem mesmo chegar a ser aparente, denota a particular exigência do julgador, atendendo aos proeminentes e predominantes bens pessoais, ligados à protecção da vida, integridade física e liberdade individual da vitima, em condenar indistintamente da circunstância da arma estar municiada ou não, embora, para efeitos de pena tal não seja completamente indiferente. IV - Com efeito, o mero porte de arma torna mais vulnerável a vítima à apropriação violenta, essencial segundo o art. 210.º, n.º 1, do CP, prevendo múltiplas modalidades, já que o agente se traz a arma oculta a todo o tempo pode ela deixar de o ser, o facto de se achar não municiada, sem grande dificuldade o pode ser, e o facto de não o poder ser nem por isso deixa de revelar arrojo, insensibilidade pela pessoa da vítima que fica constrangida ao desapossamento da coisa móvel, pela ameaça que representa à sua integridade física a exibição de uma pistola, enfraquecendo a vítima na sua resistência física e psíquica, à mercê do agente. V - O propósito da lei ao fazer a alusão a armas de fogo, proibidas ou sem o serem, aparentes ou ocultas, sem restringir o campo de incidência ao seu funcionamento efectivo ou sua imediata possibilidade, estando municiada, tem por ratio a consideração da maior associalidade do agente e como tal uma maior culpa sua. VI - Arma, para os fins do preceito legal em apreço, será todo o instrumento com virtualidade para provocar nas vítimas um justo receio de serem lesadas, independentemente de saberem se a mesma se acha municiada e pronta a disparar, pois se mostra de todo irrazoável, desproporcionado mesmo, do ponto de vista da sua protecção legal, exigir-se esse prévio conhecimento, que lhe podia ser inacessível, impraticável até, não obstante ter sido em nexo causal com a exibição da arma que a entrega da coisa teve lugar, relevando a impressão, analisada à luz de um normal destinatário, de perigo, que àqueles bens representa. VII - Sujeito passivo do crime de roubo pode ser não só o proprietário da coisa, mas ainda o seu detentor, a pessoa que tem a guarda do bem, por exemplo o “caixa” de supermercado. VIII - O roubo, enquanto crime pluriofensivo, nos termos do art. 210.º do CP, que põe em crise tanto bens patrimoniais, como bens jurídicos pessoais, nos domínios da integridade física, liberdade individual de decisão e da própria vida, sob a forma de violência, ameaça e impossibilidade de resistir, consome os crimes de furto, de sequestro, em condições limitadas de perduração, de coacção e ameaça, este já consumido pelo de coacção, sendo esta vertente pessoal que introduz uma tipologia destacada do crime de furto e uma maior necessidade de punição. IX - No crime de coacção, p. e p. pelo art. 154.º do CP, enquanto crime contra as pessoas, o bem protegido com a incriminação é da liberdade de decisão e de acção. X - A violência referida no preceito, definida como um acto de força, físico ou psíquico, que leva alguém a actuar de determinada maneira, pode ser física, por meio de uma conduta omissiva, traduzir-se numa utilização de meios que eliminem ou diminuam a capacidade de decisão ou resistência da vítima, ou consistir numa intervenção física sobre as coisas. XI - Mal importante, para os fins do preceito incriminador, não é aos olhos do legislador um qualquer mal, mas um mal com acentuado relevo, um mal a que comunitariamente se é sensível, censurado pelo dano relevante ao nível físico ou psíquico a que a coacção conduz. XII - No caso dos autos, o arguido exerceu duas condutas coactivas, uma sobre a pessoa da empregada do posto de abastecimento de combustível, consumida pelo crime de roubo, e outra, autonomizada desta, na pessoa da cliente da loja do posto, pela via da comparticipação, no âmbito da co-autoria. XIII - A tal respeito provou-se que os arguidos acordaram ambos, e previamente, em fazerem seu, com o uso de armas - in casu de uma pistola, pelo arguido P - e através da ameaça e constrangimento da ofendida A, o dinheiro contido na caixa da loja do posto de abastecimento; igual acordo firmaram, voluntariamente, com o mesmo propósito, com o concurso, agora pelo co-arguido J, de um instrumento similar ao fotografado a fls. 38, constituído por uma lâmina cortante e perfurante, e ainda pelo uso da locução “Não faças nada. Encosta-te aí”, de perturbarem a liberdade pessoal de decisão e de acção” da ofendida M, o que sabiam ser condenável. XIV - Assistiu-se, pois, à celebração de um acordo, por ambos os arguidos, deles vinculante, não só de usarem aquela arma como aquelas expressões, a fim de tolherem a liberdade ambulatória e de decisão da vítima, na mira do sucesso do assalto. XV - Não há co-autoria sem acordo, ao menos na forma mínima de mera consciência e vontade de colaboração de várias pessoas, na realização do crime (Prof. Eduardo Correia, Direito Criminal, II, pág. 253). XVI - O arguido, no projecto criminoso delineado com o outro comparsa, em vista da consecução de um resultado por ambos querido e acordado, tornou-se senhor do facto, que dominou na totalidade, tanto pela positiva, assumindo um poder de intervenção e de direcção, na execução conjunta do facto total, ou seja no plano de execução comum, como pela negativa, podendo impedi-lo, ainda que não se torne necessária a prática de todos os factos que integram o iter criminis (cf. Maria da Conceição Valdágua, O Início da Tentativa do Co-Autor, 1985, Ed. Danúbio, págs. 155-156, na esteira de Roxin, Stratenwerth, Welzel e Jescheck, ali citados). XVII - Incorreu, deste modo, o arguido na prática do crime de coacção, em co-autoria, nos termos do art. 26.º do CP, porque o acordo abrange todos os elementos do crime, que quis, como se deu por provado, e não impediu a sua produção, comunicando-se-lhe apesar de não ter intervindo materialmente na sua execução. XVIII - O conceito de documento para fins penais, previsto no art. 255.º, al. a), do CP, é mais amplo, do que o relevante no CC, pois compreende toda a declaração registada em disco, corporizada em material, fita gravada ou qualquer meio técnico, inteligível pela generalidade das pessoas ou para certo círculo de pessoas, que, permitindo reconhecer o emitente, é idónea para provar facto juridicamente relevante, ou seja acto idóneo a constituir, modificar ou extinguir uma relação jurídica. XIX - A chapa de matrícula, embora provinda de entidade particular, é um sinal material aposto no veículo, destinando-se a provar factos juridicamente relevantes, irradiando em várias direcções, de reconhecida importância, portadora de uma força probatória equivalente à dos documentos públicos, transcrevendo-se os seus elementos nos registos oficiais, sendo a expressão visível desses elementos, tidos, em princípio, como verídicos. XX - Não é um documento autêntico, na definição que dele fornece o art. 363.º, n.º 2, do CC, mas um documento com igual força - cf. acórdão, com força uniformizadora, do Pleno das Secções Criminais deste STJ, n.º 3/98, de 05-11, pondo termo às oscilações jurisprudenciais entre o ser ou não a chapa de matrícula documento autêntico -, porém sempre a sua substituição por outra é de reputar como falsificação de documento. XXI - A alteração do seu teor, do documento onde figuram aqueles elementos, configura a falsificação prevista no art. 255.º, n.º 1, al. a), do CP, e é punível por força do seu n.º 3.XXII - A utilização pelo arguido de pistola semi-automática [que apontou à ofendida A], originariamente arma de alarme ou de emissão de gás lacrimogéneo, não manifestada e nem registada, transformada em arma de calibre 6,35 mm, Browning, integra o crime de detenção ilegal de arma, p. e. p. pelas disposições dos arts. 1.º, n.º 1, e 6.° da Lei 22/97, de 27-06 (ao caso ajusta-se a jurisprudência deste STJ, no seu Ac. do Pleno das Secções Criminais, com feição uniformizadora, sob o n.º 1/02, de 05-11, no sentido de uma arma de fogo, de calibre 6,35 mm, resultante de adaptação ou transformação de uma arma clandestina de gás ou de alarme, não integrar o crime previsto no art. 275.º do CP, por se não tratar de arma absolutamente proibida, mas de defesa).XXIII - À luz da Lei 5/2006, de 23-02, a detenção de arma transformada - arts. 2.º, n.º 1, al. t) e 86.º, n.º 1, al. e) - é punida com prisão até 5 anos ou multa até 600 dias.XXIV - Entre os dois preceitos intercede uma continuidade normativo-típica, que sustenta um tratamento punitivo de maior favor, pela simples comparação de molduras, em ponderação abstracta, se o agente for sancionado ao abrigo da lei em vigor na data da prática dos factos ou seja ao abrigo da lei antiga, considerando a sucessão legal penal estabelecida.XXV - O crime de detenção ilegal de arma, de perigo abstracto, concorre com o de roubo agravado, pois acautela os valores da ordem, segurança e tranquilidade públicas, não sendo aqueles coincidentes com os do roubo, enquanto crime complexo, obtido por fusão, em resultado de uma síntese normativa, correspondente a uma norma em concurso aparente com a regra do tipo matriz sobre que prevalece, pluriofensivo de bens patrimoniais e, essencialmente, bens pessoais, que faz dele um crime comunitariamente altamente reprovável.
Proc. n.º 3042/06 - 3.ª Secção
Armindo Monteiro (relator)
Sousa Fonte
Santos Cabral
Oliveira Mendes
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