Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa
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    Sumários do STJ (Boletim) - Criminal
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ACSTJ de 25-10-2006
 Burla Crime de resultado Crime de execução vinculada Engano Reserva mental Nexo de causalidade Absolvição Fundamentação Cúmulo jurídico Pena única Nulidade da sentença
I - A burla constitui um crime material ou de resultado, que tutela o património e que exige a saída dos bens da esfera de disponibilidade fáctica do detentor. Constitui, por outro lado, um delito de execução vinculada, «em que a lesão do património tem de ocorrer como consequência de uma muito particular forma de comportamento», que tem de se traduzir na «utilização de um meio enganoso tendente a induzir outra pessoa num erro que, por seu turno, o leva a praticar actos de que resultam prejuízos patrimoniais próprios ou alheios» (A. M. Almeida Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo II, págs. 239 e ss.).
II - Há, assim, no crime de burla «um duplo nexo de imputação objectiva», «entre a conduta enganosa do agente e a prática, pelo burlado, de actos tendentes a uma diminuição do património (próprio ou alheio)»; a burla constitui, pois, no processo de execução vinculada, um «crime com participação da vítima», «onde a saída dos valores da esfera de disponibilidade fáctica do legítimo titular decorre, em último termo, de um comportamento do sujeito passivo», em que este é o próprio sujeito que pratica os actos de diminuição patrimonial.
III - E, nessa relação interindividual (entre o agente e o sujeito passivo), a actuação com dimensão típica e ilícita tem de se traduzir em palavras ou em actos concludentes, sendo que na interpretação da relevância típica e ilícita dos actos importam muito as regras de comportamento, os usos e as práticas específicas das actividades sociais em que se estabeleça a relação, especialmente quando se trate de relações ligadas a sectores comerciais ou do mundo dos negócios.
IV - As regras da experiência e o princípio da boa-fé em sentido objectivo constituem elementos primordiais para avaliar a relevância de um determinado comportamento no contexto da tipicidade e ilicitude na execução vinculada do crime de burla. Nesta perspectiva, a deslealdade tida por inadmissível no comércio jurídico, o «domínio do erro» que viole os ditames da boa-fé consubstancia o desvalor característico do ilícito da burla. A actuação do agente tem de consistir em condutas adequadas a criar a falsa convicção sobre certo facto, e que criem ou assegurem o engano da vítima: estão neste caso as situações em que o agente se abstém de declarar que se não encontra em situação de cumprir, ou quando assume uma obrigação que sabe não poder cumprir, actuando com reserva mental dolosa.
V - Estando em causa o facto de o recorrente ter inventado e aposto numa livrança uma assinatura que fez passar como sendo a de JL como dador de aval, sendo que o título em causa, subscrito pela sociedade S, continha também, e sem referência a qualquer vício, a intervenção do recorrente como dador de aval, o título estava, no essencial, perfeito na validade das obrigações cambiárias da sacadora e de um dador de aval, desempenhando, na medida do conteúdo de tais obrigações, a sua função cartular autónoma de atribuição patrimonial (cf. art. 7.º, ex vi art. 77.º da LULL).
VI - Assim, não decorre dos factos provados o efeito de empobrecimento resultante da actuação do burlado, que em relação de causalidade imprópria tem de estar presente na burla. Esse empobrecimento existiria se estivesse demonstrado que o Banco nunca teria constituído a relação subjacente (contrato de financiamento com a sociedade S) e aceite o negócio cambiário apenas com a subscrição da sacadora e com o aval do recorrente, sem o aval do JL, mas tal não está provado, nem os factos apurados permitem concluir se existiram, no caso, actos concludentes do recorrente, especificamente se na subscrição do título e no acordo com o Banco actuou com reserva mental dolosa, ou seja, com o propósito, firmado nesse momento e oculto, de não cumprir - nem ele próprio, como responsável subsidiário, nem a sociedade como subscritora e principal obrigada cambiária.
VII - Por outro lado, relativamente ao JL, falta, de todo, a intervenção, de permeio, do sujeito passivo, e a prática por este de actos de autolesão determinados por «erro ou engano sobre os factos» astuciosamente provocado.
VIII - É, pois, de concluir que os factos provados na decisão recorrida não integram todos os elementos que respeitam à factualidade de um crime de burla p. e p, pelos arts. 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 2, do CP, não podendo subsistir a condenação por tal crime.
IX - A fundamentação adequada e suficiente da decisão constitui uma exigência do processo penal moderno e realiza uma dupla finalidade: em projecção exterior (extraprocessual), como condição de legitimação externa da decisão pela possibilidade que permite de verificação dos pressupostos, critérios, juízos de racionalidade e de valor e motivos que determinaram a decisão; em outra perspectiva (intraprocessual), a exigência de fundamentação está ordenada à realização da finalidade de reapreciação das decisões dentro do sistema de recursos: para reapreciar uma decisão o tribunal superior tem de conhecer o modo e o processo de formulação do juízo lógico nela contido e que determinou o sentido da decisão (os fundamentos) para, sobre tais fundamentos, formular o seu próprio juízo.
X - Não contendo o acórdão recorrido elementos relativos aos factos dos vários crimes em concurso que foram considerados para a fixação da pena única, a decisão não possibilita um juízo que tem de partir da conjugação e correlação entre os factos para apreciação da dimensão do «ilícito global», pressuposto necessário da fixação da pena única, e, não contendo, também, referências à personalidade do recorrente, que permitam formular um juízo sobre o modo como se projectou nos factos ou foi por eles revelada (ocasionalidade, pluriocasionalidade ou tendência), tal como exige o art. 77.º, n.º 1, do CP, o acórdão recorrido não respeita as exigências do art. 374.º, n.º 2, do CPP, estando, nesta parte, afectado de nulidade (art. 379.º, n.º 1, al. a), do CPP).
Proc. n.º 2667/06 - 3.ª Secção Henriques Gaspar (relator) Silva Flor Armindo Monteiro Soreto de Barros