Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa
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    Sumários do STJ (Boletim) - Criminal
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ACSTJ de 18-10-2006
 Homicídio qualificado Especial censurabilidade Especial perversidade Frieza de ânimo Imputabilidade diminuída Alcoolismo Anomalia psíquica Culpa Homicídio
I - A qualificação do homicídio depende fundamentalmente de um critério de culpa, consistindo esta no juízo de censura dirigido ao agente pelo facto de ter actuado em desconformidade com a ordem jurídica, quando podia e devia (lhe era exigível) ter actuado em consonância com aquela: isso mesmo se retira da forma como, prudentemente, a lei limita as referências aos conceitos de especial censurabilidade e da (especial) perversidade do agente, conotados de forma inequívoca com a culpa.
II - A especial censurabilidade prende-se essencialmente com a atitude interna do agente, traduzida em conduta profundamente distante em relação a determinado quadro valorativo, afastando-se dum padrão normal. O grau de censura aumenta por haver na decisão do agente o vencer dos factores que, em princípio, deveriam orientá-lo mais para se abster de actuar, as motivações que o agente revela, ou a forma como realiza o facto, apresentam, não apenas um profundo desrespeito por um normal padrão axiológico vigente na sociedade, como ainda traduzem situações em que a exigência para não empreender a conduta se revela mais acentuada (cf. Fernando Silva, Direito Penal Especial Crimes Contra as Pessoas, pág. 48 e ss.); ou, como entende Teresa Serra, citando Sousa Brito (Homicídio Qualificado Tipo de Culpa e Medida da Pena, pág. 64), a especial censurabilidade refere-se às componentes da culpa relativas ao facto, ou seja, funda-se naquelas circunstâncias que podem revelar um maior grau de culpa como consequência de um maior grau de ilicitude.
III - Por sua vez, a especial perversidade representa um comportamento que traduz uma acentuada rejeição, por força dos sentimentos manifestados pelo agente que revela um egoísmo abominável; a decisão de matar assenta em pressupostos absolutamente inaceitáveis; o agente toma a decisão sob grande reprovação, atendendo à personalidade manifestada no seu comportamento, deixa-se motivar por factores completamente desproporcionais, aumentando a intolerância perante o seu facto (cf. Fernando Silva, ibidem, pág. 51); ou, como refere Teresa Serra (ibidem, pág. 64), a lei tem aqui em vista uma atitude profundamente rejeitável, no sentido de ter sido determinada e constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade, daí que o acento tónico ou componente da culpa se refira aqui ao agente.
IV - O quadro factual apresentado [do qual resulta que o arguido, não só foi interiorizando e exteriorizando a intenção de pôr termo à vida da vítima, sua mulher, como se foi preparando para a execução desse evento, primeiro pela aquisição de uma arma de fogo e recolha de informações sobre a movimentação da vítima, escolhendo depois a ocasião e o local onde mais facilmente consumaria o seu desiderato, o qual deu a conhecer à própria vítima, por duas vezes, ameaçando-a e informando-a de que, para o efeito, já adquirira uma pistola] revela um comportamento por parte do arguido aparentemente calculado, reflexivo e insensível, de modo a considerar-se preenchida a circunstância prevista na primeira parte da al. i) do n.º 2 do art. 132.º do CP - frieza de ânimo.
V - Contudo, constando das conclusões do relatório do exame às faculdades mentais a que o arguido foi submetido que este padece de alcoolismo crónico, neurose obssessiva-compulsiva e distúrbio de personalidade paranóide, que lhe atenuam a imputabilidade, designadamente para o homicídio doloso, tal circunstância não pode deixar de influir no juízo de culpa sobre o comportamento do arguido, neutralizando a aparência calculista, reflexiva e insensível da conduta assumida, de forma a considerar-se não verificada a ocorrência de frieza de ânimo.
VI - Aliás, as patologias mentais de que enferma o arguido marcaram o relacionamento do casal constituído por vítima e arguido, dando origem a uma relação de “amor e ódio”, para além de que conduziram o arguido ao alcoolismo, o que propiciou um sentimento de desconfiança em relação à vítima, designadamente de que esta o pretendia matar (propósito que efectivamente existiu), reforçando a conclusão de que não estamos perante um tipo de culpa agravado, sendo o crime cometido pelo arguido o previsto no art. 131.º do CP.
Proc. n.º 2679/06 - 3.ª Secção Oliveira Mendes (relator) Pires Salpico Silva Flor Soreto de Barros