Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa
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    Sumários do STJ (Boletim) - Criminal
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ACSTJ de 18-10-2006
 Abuso de confiança fiscal Constitucionalidade Princípio da igualdade Apropriação Frustração de créditos Escolha da pena Suspensão da execução da pena Condição da suspensão da execução da pena Concurso de infracções Crime único Medida concreta da pena
I - O sistema fiscal visa a satisfação das necessidades financeiras do Estado e outras entidades públicas e uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza, e a tributação do património pessoal ou real deve concorrer para a igualdade entre os cidadãos (arts. 103.º, n.º 1, e 104.º, n.º 3, da CRP), pelo que é da maior evidência, quer no plano teórico quer no plano prático, que o lançamento dos impostos, mostrando-se a coberto da tutela da lei ordinária, sustentada pela lei fundamental, reclama para sua cobrança um regime punitivo deferido ao Estado, sem o qual aquela superior e pública finalidade se mostraria seriamente comprometida, integrando-se, como se integra, o delito de fuga aos impostos naquilo que se apelida de “delinquência patrimonial de astúcia”.
II - Por isso o jus puniendi de que o Estado se mostra detentor na luta contra os devedores de impostos e contribuições à Segurança Social, quando aos credores particulares do Estado lhes é denegada igual tutela, enquanto figura incumpridora e em mora nas suas obrigações, não reveste qualquer tratamento chocante, forma diferenciada ou desproporcionada, em colisão com os princípios com dignidade constitucional sedeados ao nível da igualdade dos cidadãos e da menor compressão dos direitos fundamentais - arts. 13.°, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da CRP.
III - Trata-se de assegurar tratamento diferenciado e desigual, justificado e de todos aceite, numa área e a uma entidade vocacionada à realização de fins públicos, de prossecução de incontornáveis interesses de índole financeira, nacionais e comunitários, de subsistência colectiva, de justa repartição dos rendimentos, objectivos ocupantes na pirâmide de interesses de posição de topo, superiorizando-se aos privados.
IV - O devedor dos impostos (e de prestações à Segurança Social) surge colocado em posição aproximada à de fiel depositário, sendo de «levar em conta este aspecto peculiar da posição dos responsáveis tributários, que não comporta uma pura obrigação contratual porque decorre da lei», além de que a impossibilidade de cumprimento não é elemento constitutivo do crime de abuso de confiança fiscal previsto no art. 105.º do RGIT (o mesmo se podendo dizer quanto ao art. 24.º do RJIFNA), escreveu-se no Ac. do TC n.º 312/00 (DR II Série, de 17-10-2000), seguido de perto pelo Ac. do TC n.º 54/2004, de 20.1.2004, Proc. n.º 640/03, onde - como em outros daquele TC (cf. os n.ºs 663/98 e 516/00, DR II Série, de 15-01-1999 e 31-01-2001)-, se teve como pressuposto legal a falta dolosa de entrega de prestações à administração fiscal e a sua não correspondência à consagração de um caso de prisão por dívidas.
V - No RJIFNA, na redacção conferida ao DL 20-A/90, de 15-01, pelo DL 394/93, de 24-11, exigia-se para configuração do crime de abuso de confiança fiscal a apropriação indevida por inversão do título da posse, com censurável animus rem sibi habendi; no RGIT, aprovado pela Lei 15/01, de 05-06, basta a não entrega, mas subjacentemente, embora a tónica se tenha deslocado, na lei nova, para a simples não entrega, continua a estar presente a ideia de apropriação, pois que quem recebe das mãos de terceiro prestações tributárias, ficando investido na qualidade de seu depositário, e não as entrega, em via de regra é porque delas se apropriou, conferindo-lhes um destino não legal.
VI - O novo preceito (art. 105.º do RGIT) manifesta um alargamento da punibilidade, abrangendo claramente não só as situações de indevida apropriação mas também as de intencional não entrega.
VII - Tendo em consideração que:- os arguidos, enquanto membros do Conselho de Administração da arguida V, SA, ao longo dos meses de Janeiro, Fevereiro, Março e Maio de 1996, Julho, Setembro, Novembro e Dezembro de 1998, e Janeiro de 1999, deixaram de entregar nos cofres do Estado a importância de € 257 396,30, a título de IVA exigível, resultante da diferença entre o imposto liquidado pela sociedade arguida aos clientes e o imposto por si suportado e dedutível naqueles períodos;- decidiram, igualmente, não pagar ao Estado o IRS, descontando nas remunerações pagas aos seus trabalhadores (categoria A) e administradores ou colaboradores por conta própria (categoria B) a soma de € 129 653,94, correspondente aos meses de Janeiro e Julho a Dezembro de 1997; Janeiro, Março a Agosto e Outubro a Dezembro de 1998; Janeiro a Dezembro de 1999 e 2000; e Janeiro, Fevereiro e Março de 2001;- no uso daquela qualidade estatutária os arguidos integraram, indevidamente, no património social da sociedade arguida, aquelas importâncias, no montante global de € 386 960,24, que aquela afectou ao pagamento das despesas decorrentes do giro normal da empresa, designadamente ao pagamento de salários e fornecedores;- a sociedade arguida, de 31 de Maio de 1999 até 28 de Dezembro de 2000, por intermédio daqueles arguidos, com o fito de frustrarem a satisfação dos créditos tributários, foi alienando, faseadamente, o seu imobilizado e existências/matérias primas à empresa designada à data por JFH, Lda., actualmente E, Lda., de que aqueles eram sócios gerentes;- as vendas ascenderam, quanto ao imobilizado, ao valor líquido de € 333 059,63, acrescido de IVA liquidado no valor de € 56 210,14, e as vendas das existências ascenderam a € 1 574 513,674, acrescido de IVA liquidado no valor de € 267 667,41;- ao tempo a sociedade era devedora de avultados créditos ao Estado, já liquidados;- a actuação dos arguidos foi-o em nome e no interesse da arguida sociedade, em conjugação de esforços, de forma livre e consciente, no intuito de eximi-la ao pagamento dos impostos, cientes da proibição e punibilidade da sua conduta, particularmente de que a venda do activo imobilizado e das suas existências obstava à satisfação, total ou parcial, dos créditos fiscais, objectivo a que se propuseram;- a intensidade do dolo é elevada, repetida ao longo do tempo como se mostra a intenção de defraudar o Estado; e o desvalor da acção, ou seja a ilicitude, situa-se no mesmo nível, a ter presente a importância vultuosa dos impostos insatisfeitos, com o correlativo prejuízo para o Estado, e o engenho de que se lançou mão para frustrar créditos do Estado, desfazendo-se do «casco social», alienando-o a favor de uma sociedade de que eram sócios os arguidos, revelador de uma personalidade mal conformada, englobante de uma inconsideração e um desprezo total por valores cujo cumprimento cada vez mais se reclama;- colhem ainda significativo peso as exigências de prevenção especial, apesar de os arguidos serem delinquentes primários, de o arguido J ter confessado os factos e de o R admitir, apenas, estarem em falta os supracitados valores, de pelo desvio do seu legal destino se terem proposto satisfazer salários e matérias primas, porque jamais as importâncias não entregues integram património social, havendo que dar-lhes o seu encaminhamento estipulado por lei, tudo de escasso valor atenuativo;só a pena privativa da liberdade satisfaz de forma adequada as finalidades da pena.
VIII - A exigência de pagamento da prestação tributária como condição da suspensão da execução da pena, à margem da condição económica do responsável tributário, e do princípio da razoabilidade, previsto para a suspensão nos termos do art. 51.º, n.º 2, do CP, nada tem de desmedida, justificando-se pela necessidade da eficácia do sistema penal tributário e o tratamento diferenciado pelo interesse preponderantemente público a acautelar.
IX - E tal inconsideração de possibilidade económica, pressuposta na lei tributária, tem sido havida como conforme à CRP porque a lei não exclui a suspensão, porque mesmo parecendo impossível a satisfação da prestação não é de excluir que, por mudança de fortuna, o devedor esteja em condições de arcá-la, porque só o incumprimento doloso determina a revogação, por fim porque sempre restam, em casos de dificuldades de cumprimento, alternativas, já que no regime rege o princípio rebus sic stantibus, norteado pelos princípios da culpa e da adequação.
X - Dado que as omissões de pagamento dos impostos em causa respeitam, genericamente, a períodos sucessivamente renováveis (mês a mês), posto que aquela omissão se desenvolva em momentos sucessivos, não sendo a distância temporal entre eles alongada, antes pré-existindo uma conexão temporal, não poderá deixar de se levar em apreço o ensinamento doutrinário de Eduardo Correia (Unidade e Pluralidade de Infracções, págs. 96-97), no sentido de se cada um dos actos for um mero «explodir», mais ou menos automático, de uma mesma carga volitiva integrada num projecto volitivo que se mantém uniforme, não obstante a repetição da materialidade ele aglutina um só propósito criminoso e um só crime.
XI - Assim, é de condenar cada um dos arguidos, como co-autores de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo art. 105.º, n.ºs 1 e 5, do RGIT, em 2 anos e meio de prisão, e de um crime de frustração de créditos, p. e p. pelo art. 25.º, n.º 1, do DL 394/93, de 24-11, em 6 meses de prisão; e, em cúmulo jurídico, cada um, em 2 anos e 8 meses de prisão, pena essa suspensa na sua execução pelo período de 5 anos, com a condição de, nesse mesmo prazo, pagarem a quantia de € 474 609,34, devendo documentar nos autos dentro do prazo de 1 ano o pagamento de 1/5 de tal quantia, dentro de 2 anos o pagamento de 2/5, dentro de 3 anos o pagamento de 3/5, dentro de 4 anos o pagamento de 4/5, e no último ano o restante.
Proc. n.º 2935/06 - 3.ª Secção Armindo Monteiro (relator) Sousa Fonte Oliveira Mendes Santos Cabral (tem voto de vencido)