ACSTJ de 04-10-2006
Conclusões da motivação Rejeição de recurso Repetição da motivação Homicídio qualificado Tentativa Especial censurabilidade Especial perversidade Motivo fútil Motivo torpe Medida concreta da pena Indemnização Limites da condenação Dolo Danos não patrimoni
I - Se o recorrente, ainda que de forma concisa, deu cumprimento à imposição constante do n.º 2 do art. 412.º do CPP, tendo procedido à enumeração das normas jurídicas que, a seu ver, foram violadas, com sintética indicação do sentido em que entende deverem ter sido aplicadas, não deve nem pode ser rejeitado o recurso por suposta violação do ónus previsto no aludido comando legal. II - Quanto ao facto de a impugnação se mostrar circunscrita às questões já colocadas à apreciação e julgamento do tribunal de 2.ª instância, inexiste na lei adjectiva penal norma ou dispositivo que preveja a rejeição do recurso em tais casos ou situações - arts. 400.º, 414.º, n.º 2, e 420.º, n.º 1, do CPP. III - No nosso ordenamento jurídico o homicídio qualificado não é um tipo legal autónomo, com elementos constitutivos específicos, constituindo antes um homicídio cometido em circunstâncias reveladoras de uma atitude especialmente censurável ou perversa do agente, ou seja, um homicídio cometido com um especial tipo de culpa, uma culpa de grau especialmente elevado, cometido em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade - art. 132.º, n.º 1, do CP. IV - A especial censurabilidade prende-se essencialmente com a atitude interna do agente, traduzida em conduta profundamente distante em relação a determinado quadro valorativo, afastando-se dum padrão normal. O grau de censura aumenta por haver na decisão do agente o vencer dos factores que, em princípio, deveriam orientá-lo mais para se abster de actuar, as motivações que o agente revela, ou a forma como realiza o facto, apresentam, não apenas um profundo desrespeito por um normal padrão axiológico vigente na sociedade, como ainda traduzem situações em que a exigência para não empreender a conduta se revela mais acentuada (cf. Fernando Silva, Direito Penal Especial Crimes Contra as Pessoas, pág. 48 e ss.); ou, como entende Teresa Serra, citando Sousa Brito (Homicídio Qualificado Tipo de Culpa e Medida da Pena, pág. 64), a especial censurabilidade refere-se às componentes da culpa relativas ao facto, ou seja, funda-se naquelas circunstâncias que podem revelar um maior grau de culpa como consequência de um maior grau de ilicitude. V - Por sua vez, a especial perversidade representa um comportamento que traduz uma acentuada rejeição, por força dos sentimentos manifestados pelo agente que revela um egoísmo abominável; a decisão de matar assenta em pressupostos absolutamente inaceitáveis; o agente toma a decisão sob grande reprovação, atendendo à personalidade manifestada no seu comportamento, deixa-se motivar por factores completamente desproporcionais, aumentando a intolerância perante o seu facto (cf. Fernando Silva, ibidem, pág. 51); ou, como refere Teresa Serra (ibidem, pág. 64), a lei tem aqui em vista uma atitude profundamente rejeitável, no sentido de ter sido determinada e constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade, daí que o acento tónico ou componente da culpa se refira aqui ao agente. VI - O quadro factual apresentado [o arguido M predispôs-se e determinou-se a matar a esposa na sequência e por causa de uma discussão, entabulada entre ambos no quarto do casal, encontrando-se também presentes um filho de 12 anos de idade e um sobrinho, este ao colo da assistente, com cerca de 18 meses - discussão acerca de um canteiro que o arguido momentos antes estivera a arranjar -, para o que se muniu de uma pistola, que possuía e detinha no interior de uma gaveta do guarda-vestidos, pistola que apontou ao pescoço da esposa e à qual premiu o gatilho, encontrando-se a uma distância de cerca de um metro e meio daquela] revela um comportamento por parte do arguido altamente censurável, profundamente distante do padrão normal, assente e motivado por factor totalmente desproporcional, evidenciador de sentimentos especialmente rejeitáveis, a significar um elevadíssimo grau de culpa, um tipo de culpa agravado, que não deixa espaço para qualquer dúvida, conduzindo necessariamente à qualificação do homicídio, posto que ao mesmo se encontra subjacente motivo que, segundo as concepções éticas ancoradas na comunidade, deve ser considerado gratuito - motivo torpe ou fútil. VII - Dentro da moldura penal abstracta correspondente ao crime de homicídio qualificado, na forma tentada (ou seja, a de 2 anos, 4 meses e 12 dias a 16 anos e 8 meses de prisão), e tendo em consideração que:- o bem jurídico tutelado é a vida humana, bem jurídico supremo do homem, que a CRP declara inviolável - art. 24.º -, pelo que, pese embora a imperfeição do acto, as necessidades de prevenção são muito elevadas;- a ilicitude do facto é acentuada;- em consequência, a assistente, que à data dos factos tinha 31 anos de idade, sofreu lesões em virtude das quais ficou com a sua saúde definitivamente afectada e impossibilitada de trabalhar, com uma incapacidade permanente geral de 90%, que no futuro se irá situar em 95%, encontrando-se paralisada dos membros inferiores e quase totalmente paralisada dos membros superiores, necessitando do auxílio permanente de uma cadeira de rodas para se deslocar e para realizar todos os actos da vida quotidiana;- o recorrente tem 35 anos de idade, exerce a actividade de cantoneiro de limpeza, confessou integralmente e sem reservas os factos, e mostra-se arrependido;- nunca foi objecto de censura penal;não merece qualquer censura a pena cominada, de 6 anos de prisão, pois que, situando-se dentro da medida da culpa, é imposta pela necessidade de tutela da confiança e das expectativas da comunidade na manutenção da vigência da norma violada. VIII - A lei substantiva civil apenas admite a limitação da indemnização, quer dos danos patrimoniais quer dos não patrimoniais, em caso ou situação de mera culpa - art. 494.º do CC -, o que significa que no caso de dolo a indemnização nunca pode ser inferior ao montante do dano por mais elevado que seja, independentemente da situação económica do responsável e do lesado. IX - Dada a gravidade dos danos causados à demandante, mostra-se adequada a indemnização de € 50 000 arbitrada pelo tribunal a título de compensação de danos não patrimoniais, sendo certo que a circunstância de a demandante estar ou não a receber subsídios da segurança social nada tem a ver com a responsabilidade do arguido e demandado para com a ofendida e demandante, resultante do crime perpetrado.
Proc. n.º 2799/06 - 3.ª Secção
Oliveira Mendes (relator)
Pires Salpico
Henriques Gaspar
Silva Flor
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