ACSTJ de 04-11-2008
Gravação da prova Reapreciação da prova Locação de estabelecimento Estabelecimento industrial Licença de utilização Falta de licenciamento Imperatividade da lei Nulidade do contrato Conhecimento oficioso
I -O facto de a localização dos depoimentos em relação às cassetes gravadas ter sido feito no âmbito da transcrição dos depoimentos e em relação a cada um deles, e não no corpo das alegações, é irrelevante, até porque a transcrição faz parte integrante das alegações, pelo que a Relação podia, como fez, reapreciar a prova. II - No contrato de cessão de exploração de estabelecimento (comercial ou industrial), também denominado de locação de estabelecimento, o que se transmite temporariamente, juntamente com o gozo do prédio onde se encontra instalado e mediante uma retribuição, é o próprio estabelecimento, isto é, a sua fruição, considerado este como uma universalidade, abrangendo, por isso, todos os elementos materiais e imateriais que o integram, tais como os móveis e imóveis, a clientela, as patentes, marcas, segredos, licenças, alvará, dotada de uma organização dirigida à exploração de determinada actividade económica e capaz de gerar lucros. III - Os alvarás e as licenças são componentes essenciais do estabelecimento, sem os quais este fica descaracterizado, por não poder funcionar. Na verdade, para que o estabelecimento possa actuar no comércio jurídico com a necessária estabilidade, em ordem a atingir a sua finalidade económica, necessita de estar autorizado pelas respectivas autoridades públicas, para exercitar a sua específica actividade comercial ou industrial, estando em causa regras de interesse e ordem pública. IV - Provando-se que a padaria objecto do contrato de cessão de exploração celebrado entre Autoras, suas proprietárias, e Réus não estava dotada, à data, de alvará, nem de licença sanitária, deverá entender-se que as Autoras não cumpriram o contrato, pois não proporcionaram aos Réus o gozo da exploração do estabelecimento, uma vez que este não podia funcionar legalmente. V - Noutra perspectiva, mais correcta até, deverá entender-se que ficou completamente frustrado o fim do negócio, visto que os Réus se encontravam impossibilitados de fruir a padaria dentro do condicionalismo determinado imperativamente pela lei e regulamentos aplicáveis, o que parece ser equiparável à impossibilidade originária da prestação, com a consequente nulidade do negócio nos termos do disposto no art. 401.º, n.º 1, do CC, ou pode ainda ser enquadrado no âmbito dos arts. 280.º, n.º 2, ou 294.º do CC, na medida em que o contrato em causa contraria a ordem pública, violando normas que proíbem o funcionamento de estabelecimento daquele tipo sem o devido licenciamento. VI - O STJ pode conhecer oficiosamente da nulidade, de modo que, verificada esta, não se coloca a questão do incumprimento contratual e do direito que as Autoras se arrogam ao pagamento de todas as rendas convencionadas para a vigência do contrato. Mesmo que se entendesse ter existido incumprimento do contrato, uma vez que as Autoras também o incumpriram, tendo sido esse incumprimento que gerou o incumprimento por parte dos Réus, que deixarem de pagar as rendas e entregaram o estabelecimento àquelas, terá de se considerar excluído o direito às rendas.
Revista n.º 393/07 -1.ª Secção Moreira Alves (Relator) Alves Velho Moreira Camilo
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