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 - ACRL de 19-03-2024   Crime continuado - Vícios da sentença - Crime de tráfico de estupefaciente.
Crime continuado - Vícios da sentença - Crime de tráfico de estupefaciente.
Proc. 715/19.0PBAGH.L1 5ª Secção
Desembargadores:  Carla Francisco - Luísa Maria R. Oliveira Alvoeiro - -
Sumário elaborado por Carolina Costa
_______
Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
1– Relatório
No processo nº 715/19.0PBAGH do Tribunal Judicial da Comarca dos Açores, Juízo Local Criminal de Angra do Heroísmo, consta da parte decisória da sentença datada de 12/05/2023, o seguinte:
“Face ao exposto, julgo a acusação procedente e, em consequência:
1. Condeno o arguido AAA, pela prática em autoria material e na forma consumada de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, e Tabela I-C anexa, na pena de 5 (cinco) anos de prisão.
2. Determino que a pena referida em 1. substituirá a pena aplicada ao arguido AAA no processo 183/18.3PBAGH.
3. Declaro, ao abrigo do disposto no art.º 35º, n.º 1 e 2, do DL 15/93, de 22/1, perdidos a favor do Estado o produto estupefaciente apreendido, bem como os objectos e valores apreendidos nos autos.
4. Determino, ao abrigo do disposto no artigo 8º, nº2, da Lei nº5/08, de 12/02, a recolha de amostra de ADN do arguido.(...)”

Inconformado com a decisão condenatória, veio o arguido interpor
recurso, formulando as seguintes conclusões:
“A) O arguido foi condenado pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, e Tabela I-C anexa, na pena de 5 (cinco) anos de prisão efectiva;
B) Tal pena substitui a pena aplicada ao arguido no proc. n.º 183/18.3PBAGH;
C) Resulta da douta sentença, dos factos julgados provados que o arguido dedicava-se à prática reiterada do crime de tráfico de estupefacientes, disso fazendo modo de vida e resulta dos factos julgados não provados que o arguido dedicava-se à prática reiterada do crime de tráfico de estupefacientes, disso fazendo modo de vida;
D) Há, por isso, na douta sentença, o vício da contradição insanável de fundamentação, nos termos do disposto no artigo 410.º, n.º 2 al b) do Código de Processo Penal;
E) Como tal, deve determinar-se o reenvio do processo para novo julgamento apenas para conhecer a questão em causa, nos termos previstos no artigo 426.º do Código de Processo Penal;
F) A referência na douta sentença ao arguido BBB deve-se a um lapso de escrita que, como tal, pode ser corrigido, nos termos do disposto no artigo 380.º, n.º 1 al b) e n.º 2 do Código de Processo Penal;
G) Entendeu-se na douta sentença que os factos provados nestes autos e os provados no proc. n.º 183/18.3PBAGH constituem um único crime prolongado, protelado, protraído, exaurido ou de trato sucessivo e, também, que o crime que se concluiu ter o arguido cometido é mais grave, pelo que se entendeu que a pena a aplicar nestes autos ao arguido deve substituir a que lhe foi aplicada no proc. n.º 183/18.3PBAGH;
H) O Mm.º Juiz ao aplicar ao arguido a pena de 5 (cinco ) anos de prisão não descontou a parte da pena já fixada no proc. 183/18.3PBAGH;
I) O arguido à data da prática dos factos, porque nasceu em 00.00.1999, ainda não tinha completado os 21 anos de idade;
K) Deve ser aplicado ao arguido o regime especial para jovens previsto no Decreto-Lei n.º 401/82, de 23 de Setembro;
L) Há razões sérias para crer que da atenuação especial da pena resultam vantagens para a reinserção social do arguido;
M) Pois o arguido confessou os factos de que vinha acusado e pelos quais foi condenado e embora não tenha um trabalho fixo, o certo é que trabalha, contribui para as despesas domésticas, vive com a mãe, tem uma filha de 2 anos de idade, o produto estupefaciente que traficava é considerado uma droga “leve” e de antecedentes criminais tem a prática de um crime de outra natureza, de violência doméstica;
N) Caso se entenda não ser de conceder ao arguido a atenuação especial da pena, o que se aceita como mera hipótese, sem conceder, sempre se dirá o que segue;
O) A pena concreta aplicada ao arguido de 5 (cinco ) anos de prisão efectiva está desajustada face às exigências de prevenção geral e especial e à sua culpabilidade;
P) As circunstâncias que foram atendidas na determinação concreta da pena na, aliás, douta sentença, não foram objecto de adequada ponderação, pois se o tivessem sido a pena concreta aplicada teria sido mais baixa e teria sido suspensa na sua execução;
Q) O arguido confessou, praticamente na totalidade, a prática dos factos de que vinha acusado e pelos quais foi condenado; o arguido é um jovem; tem uma filha de 2 anos de idade; vive com a mãe; trabalha; contribui para as despesas domésticas e como antecedentes criminais tem a prática de um crime de natureza diferente, de violência doméstica;
R) Tudo ponderado entende-se adequada uma pena mais baixa do que a de 5 anos de prisão, suspensa na sua execução, por estarem preenchidos os requisitos do artigo 50.º do Código Penal;
S) É, pois, possível uma prognose favorável ao arguido no sentido de que sentirá a sua condenação como uma advertência e que não cometerá no futuro nenhum crime;
T) Atendendo à personalidade do arguido e as circunstâncias do facto punível ( um jovem que vendia cannabis resina a consumidores desse produto para fazer face ao seu próprio consumo, já que fumava muito), as suas condições de vida (o arguido sempre trabalhou, vive actualmente com a mãe e contribui para as despesas domésticas e tem um filho), a conduta anterior e posterior ao facto punível ( o arguido tem como antecedentes criminais a prática de crime de violência doméstica), é de suspender a execução da pena de prisão;
U) O Tribunal “a quo” violou o disposto nos artigos 50.º,40.º, 71.º, n.ºs 1 e 2, 72.º e 79.º, n.º 2, todos do Código Penal.. ”

O recurso foi admitido, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.

O Ministério Público apresentou resposta ao recurso do arguido, pugnando pela sua improcedência e pela manutenção da decisão recorrida, formulando as seguintes conclusões:
“1) Nos presentes autos, o recorrente AAA recorreu da sentença condenatória, além do mais, por considerar existir uma contradição da fundamentação, segundo o disposto no artigo 410.º n.º 2 b) do Código de Processo Penal.
2) Sustenta o recorrente AAA existir contradições insanáveis entre a matéria de facto constante do artigo 12.º dos factos provados – “o arguido AAA dedicava-se à prática reiterada do crime de estupefacientes fazendo disso modo de vida” - e a matéria de facto constante dos factos não provados concretamente “o arguido BBB dedicava-se à prática reiterada do crime de estupefacientes fazendo disso modo de vida”.
3) Ora, do texto da sentença recorrida, verifica-se que os factos dados como não provados aludem todos ao arguido BBB, tratando-se desse trecho do texto de um lapso de escrita, pois, uma vez que o arguido AAA confessou os factos constantes da acusação, não existem factos não provados.
4) O trecho em apreço refere-se sempre ao arguido BBB, sendo evidente que o Tribunal a quo não pretendeu mencionar na sentença o pedaço em apreço, por nada ter que ver com o caso dos autos, que apenas tem como arguido AAA, sendo notória a divergência entre a vontade expressa e a que se quis declarar.
5) Este lapso, ao abrigo do disposto no artigo 380.º n.º 1 b) e n.º 2 do Código de Processo Penal, poderá ser corrigido.
6) Assim, é manifesta a inexistência das contradições apontadas pelo recorrente AAA, pelo que não pode julgar-se verificado o vício do artigo 410.º n.º 2 b) do Código de Processo Penal invocado pelo recorrente.
7) Por outro lado, sustenta o recorrente AAA que o Tribunal a quo, ao lançar mão do disposto no artigo 79.º n.º 2 do Código Penal, deveria ter procedido ao desconto da pena fixada no âmbito do proc. n.º 183/18.3PBAGH na determinação da pena aplicada ao mesmo neste processo, por considerar que o Tribunal a quo ao aplicar a pena de 5 anos ao recorrente AAA levou em conta na só os factos praticados nestes autos, mas igualmente no proc. n.º 183/18.3PBAGH.
8) Ora, neste processo, ficou provada a atividade de tráfico de droga no período compreendido entre 2016 a 2020. Por sua vez, no proc. n.º 183/18.3PBAGH ficou provada a atividade de tráfico de droga entre 13 e 31 de Março de 2018.
9) Assim, face ao exposto, é evidente que as condutas provadas no proc. n.º 183/18.3PBAGH se encontram incluídas no lapso de tempo em apreço neste processo e que os factos estão englobados numa unidade resolutiva.
10) Deste modo, tendo sido reconhecida a unidade das condutas adotadas pelo recorrente AAA, a pena aplicada ao mesmo deve ser a pena aplicada à conduta mais grave, que substitui a anterior, sendo a conduta mais grave, aquela, cujo crime tem a moldura penal abstrata maior, pelo que estando em causa no proc. n.º 183/18.3PBAGH um crime de tráfico de droga de menor gravidade e, nestes autos, um crime de tráfico de droga, facilmente se conclui que a conduta destes autos é mais gravosa.
11) Face ao exposto, não assiste razão ao recorrente AAA, não existindo qualquer desconto a realizar, por inexistência de base legal para o efeito, sendo que bem andou o Tribunal a quo, ao não incluir na determinação da medida da pena, a pena já transitada em julgado, procedendo ao seu desconto, pois apenas lhe cabia substituir a pena anterior pela nova pena, conforme fez.
12) Sustenta o recorrente AAA que o Tribunal recorrido deveria ter aplicado o artigo 4.º do regime penal aplicável a jovens delinquentes e, nessa medida, deveria ter atenuado a pena aplicada ao mesmo.
13) Ora, o Tribunal a quo bem andou, quando considerou que o comportamento e a personalidade do recorrente não apresentavam evidências seguras que permitissem efetuar um prognóstico favorável ao mesmo, quanto a uma maior facilidade de ressocialização, caso lhe fosse aplicado o regime especial em apreço.
14) Veja-se que o percurso adotado pelo recorrente AAA demonstra que, a condenação anterior sofrida pelo mesmo, no âmbito do proc. n.º 183/18.3PBAGH, sendo que a mesma resultou da prática do mesmo tipo de crime em apreço neste processo, não surtiu qualquer efeito junto do mesmo.
15) O recorrente AAA não revelou qualquer sinal de arrependimento e consciencialização da gravidade da sua atuação, sendo que nunca optou por uma vida longe do crime, o que se resulta também do seu registo criminal, conjugado com a sua tenra idade.
16) Pelo contrário, o recorrente AAA desde 2016 até 2020, ou seja, um longo período de tempo, dedicou-se à venda de produtos estupefacientes, sem que nada o demovesse de tal atividade.
17) Por último, o recorrente AAA cometeu o crime ora em apreço em pleno período de suspensão da execução da pena de prisão de que havia beneficiado em anterior condenação pelo mesmo tipo de crime, o que demonstra a sua indiferença face à conduta que adotou e a ausência de arrependimento.
18) Por fim, sustenta o recorrente AAA que a pena de 5 (cinco) anos de prisão efetiva aplicada in casu mostra-se desajustada às exigências de prevenção geral e especial e face à culpa do mesmo.
19) O recorrente AAA vem ainda pugnar pela suspensão da execução da pena de prisão que lhe foi aplicada, invocando que as circunstâncias de vida do recorrente não foram devidamente ponderadas, concretamente que o recorrente se encontra inserido a nível social e familiar, pois vive com a mãe, tem uma filha e trabalha para contribuir para as despesas domésticas.
20) Ora, a pena aplicada ao recorrente AAA mostra-se adequada e proporcional face à gravidade da sua conduta, à sua personalidade delinquente e face à moldura abstrata aplicada a este tipo de crime.
21) No caso dos autos, não é de aplicar a suspensão da execução da pena que foi aplicada ao recorrente AAA, pois que se não mostram verificados os pressupostos de que depende tal suspensão.
22) Afigura-se legítimo que se formulem sérias dúvidas sobre a capacidade do recorrente AAA de não repetir crimes, se for deixado em liberdade, visto que o mesmo para além de não ter um projeto de vida minimamente estruturado, pois, não tem qualquer vínculo laboral estável e continua a consumir produtos estupefacientes, cometeu o crime ora em apreço em pleno período de suspensão da execução da pena de prisão de que havia beneficiado em anterior condenação pelo mesmo tipo de crime, o que demonstra bem a sua insensibilidade à advertência contida em tal condenação e a propensão que revela para a prática deste tipo de crime (tráfico de estupefacientes), fazendo fenecer qualquer esperança de por meio da suspensão da pena manter o recorrente afastado da criminalidade.
23) O Tribunal recorrido não violou os artigos 40.º, 50.º, 70.º, 71.º e 79.º n.º 2 do Código Penal, nem o artigo 4.º do regime penal aplicável a jovens delinquentes
24) Pelo que, deve manter-se intocada a douta sentença recorrida.

Nesta Relação, o Ministério Público emitiu parecer, nos seguintes termos:
“1 - Inconformado com a sentença que lhe impôs a pena de 5 anos de prisão (efectiva) pela autoria material de um crime de tráfico de estupefacientes da previsão do art.º 21.º do DL 15/93, vem o arguido apelar a melhor sorte junto do Tribunal da Relação de Lisboa.
Alega o arguido que a sentença está ferida de contradição insanável da fundamentação; que a pena aplicada em anterior crime, deveria merecer desconto na pena agora imposta (ao abrigo do disposto no art.º 79.º n.º 2, CP); que é merecedor do regime penal especial para jovens e, por fim, que a pena aplicada é excessiva e deveria ser suspensa na sua execução.
2 - Ao recurso interposto respondeu o MP junto da primeira instância, sustentando a bondade do decidido e defendendo a rejeição do recurso.
Mormente no que respeita à alegada contradição de fundamentação, defende-se que se trata de mero lapso de escrita, a corrigir pelo Tribunal da Relação; que a unidade de resolução que abarca os dois crimes considerados na sentença sindicada foi bem resolvida pela pena de substituição aplicada no presente processo; que não se justifica a atenuação especial decorrente do regime penal especial para jovens e que a suspensão da pena não se mostra desejável.
Pugna assim pela rejeição do recurso em apreço.
3 - Sobre a alegada contradição de fundamentação, um dos erros endógenos que por vezes se surpreendem numa sentença, verifica-se aparentemente tal vício.
Na verdade, o tribunal a quo afirmou que (factos provados):
12º- O arguido AAA dedicava-se à prática reiterada do crime de tráfico de estupefacientes, fazendo disso modo de vida.
Mas também afirmou que (factos não provados):
- O arguido BBB se dedicava à prática reiterada do crime de tráfico de estupefacientes, fazendo disso modo de vida. (bold da nossa responsabilidade).
Verifica-se ainda que foram dados outros factos como “factos não provados”, mas todos reportados a pessoa com nome diferente do arguido.
A contradições apontada parece ser flagrante e insanável
Verifica-se, porém, o detalhe de os factos provados se reportarem ao arguido e todos os factos não provados se reportarem (aparentemente) a pessoa que recebe nome diferente do arguido.
Trata-se de mero lapso de copy paste que aflige a sentença?
In extremis a tese do digno respondente seria plausível: face à confissão do arguido apenas haveria que dar como provados os factos constantes da acusação e outros que se provassem em favor do arguido, pelo que os factos não provados recolhidos na sentença em crise são mera sobrevivência parasitária de segmentos de outra sentença, com que as artes de copy paste por vezes surpreendem mesmo o menos incauto.
Tudo se resolveria, portanto, nos termos do art.º 380.º CPP, com o tribunal ad quem a corrigir a sentença, expurgando-a do erro, rectius, lapso de que padece, eliminando todos os factos não provados.
Falece razão nesta parte ao recorrente, portanto.
4 – A segunda ordem de argumentos que o arguido opõe no seu recurso, centra-se na alegada omissão do desconto da pena já aplicada ao arguido, no âmbito do processo n.º 183/18.3PBAGH, datada de 27 de Novembro de 2018, face à nova pena aplicada agora no presente processo.
Como se sabe, o arguido vinha nos presentes autos acusado pela prática de crime de tráfico de estupefacientes (art.º 21.º, DL 15/93) praticado entre 2016 e 2020, intrometendo-se neste espaço temporal a condenação que adregou num outro processo, o processo n.º 183/18.3PBAGH.
A pena imposta neste processo 183/18.3PBAGH foi uma pena de prisão de um ano, suspensa por um ano, correspondendo a mesma a um crime de tráfico de menor gravidade, da previsão do n.º 25 do DL 15/93.
Decidiu-se agora que a resolução criminosa mantida pelo arguido, de traficar estupefacientes, entre 2016 e 2020, incluindo aquela pena já imposta em 2018, mereceria uma pena única e efectiva de cinco anos de prisão, sempre nos termos do citado art.º 79.º n.º 2, CP.
Mais se decidiu que esta pena de cinco anos (efectiva) substitui a outra de um ano (suspensa por um ano).
A sentença identifica uma linha vermelha: ter o arguido punido por um crime de tráfico de estupefacientes praticado entre 13 e 31 de Março de 2018, e condená-lo também por igual crime, praticado entre 2016 e 2020 é violar o princípio non bis in idem.
Porquê?
Por força da coincidência temporal parcial de ambas as condenações, quanto à segunda metade de Março de 2018.
Aceita-se que assim seja e que haja aqui uma linha vermelha.
Discorda-se, porém, da solução acolhida pelo tribunal a quo.
4.1 - Como se sabe, o art.º 79.º CP rege a Punição do crime continuado.
Embora a sentença sindicada fale amiúde de crimes exauridos, protraídos no tempo e evite mencionar que lida com um crime continuado, ao ancorar a solução final, em termos de penalidade, no art.º 79.º CP, o tribunal a quo assume estar perante um crime continuado.
Na verdade, dá ao caso a mesma solução que o código penal dá ao crime continuado. Um crime continuado de tráfico, da previsão do art.º 21.º do DL 15/93, praticado entre 2016 e 2020, portanto.
A partir desta assunção, o tribunal a quo constrói a solução final deste caso com uma pena única para os dois processos, o actual e o 183/18.3PBAGH.
A primeira objecção que importa levar à consideração do Tribunal da Relação de Lisboa é a do erro de assunção da ideia do crime continuado.
Como se sabe, “Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente” – art.º 30.º n.º 2, CP.
A pergunta que urge fazer, lendo atentamente a sentença em causa, é onde identifica o tribunal a quo o quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.
A sentença é absolutamente omissa na caracterização desse quadro, exterior ao agente, que leve a um juízo de diminuída culpa.
É que, faltando – como falta – este quadro, a facto de o crime em causa ser um crime exaurido, não o atira para a área de regulamentação do art.º 79.º n.º 2, CP sem mais.
Não sendo possível no caso em apreço um crime continuado, toda a construção jurídica erigida pela sentença sindicada, em torno do art.º 79.º n.º 2, CP falece, por força de clara violação desta norma.
Tem de ser outra a solução do caso concreto.
4.2 - Ao proceder ao abrigo do n.º 2 do art.º 79.º CP, o tribunal a quo introduz a vexata quaestio do alcance do caso julgado material relativamente ao crime continuado, que tem suscitado díspares soluções doutrinais e jurisprudenciais.
A sentença sindicada faz uma valoração jurídica unitária de uma pluralidade de actos, os abarcados pelos dois processos (o sub judice e o processo n.º 183/18.3PBAGH), todos eles relacionados com a venda ilícita a terceiros de produtos estupefacientes.
Verifica-se homogeneidade do bem jurídico violado nos crimes tratados em ambos os processos, assim como unidade de resolução criminosa do agente do crime, além de um dolo unitário.
A sentença em causa pega numa multiplicidade de crimes e converte-os numa unidade normativa, portanto.
Procede assim graças à conexão existente entre a miríade de pequenos actos com relevância criminal que integram os dois processos, assumindo uma unidade jurídica de acção entre 2016 e 2020, janela temporária em que o arguido está a ser julgado.
Porém, repete-se, não se provou o quadro fáctico de considerável diminuição da culpa do agente.
Como deveria o tribunal a quo ter procedido, de forma a não julgar e condenar o arguido duas vezes pelos mesmos (ao menos em parte) factos?
4.3 - Em relação a este tema do caso julgado do crime continuado, vigorou numa fase inicial a tese da preclusão, cujo lídimo defensor, Eduardo Correia, defendia que se formava caso julgado em relação à totalidade dos factos, mesmo que posteriormente ao julgamento viesse a surgir a notícia de outros factos com relevância penal incluídos naquela continuidade.
Ficaria precludido o julgamento dos factos revelados a posteriori, portanto.
Esta tese entrou definitivamente em crise com a redacção imprimida ao art.º 79.º CP, mormente com o seu n.º 2, que exige, não obstante, maior gravidade dos factos posteriores, para que possam ser reconduzidos àquela unidade de factos anteriormente julgada.
Firmou-se então a ideia de que “a sentença que incidiu sobre infracções parcelares integradas num crime continuado, não constitui caso julgado impeditivo do julgamento das que só posteriormente forem descobertas” – Ac. STJ de 8.3.2006, Proc. 4401/05, 5.ª secção.
4.4 – Admitindo, por instantes, a resolução do caso ao abrigo do n.º 2 do art.º 79.º CP, a sentença em crise inova num sentido não querido nem previsto pelo n.º 2 do art.º 79.º CP.
A doutrina e a jurisprudência disponíveis sobre este especioso tema são unânimes: a descoberta, posterior ao trânsito de sentença prolatada em processo em que se julgou e condenou por um crime continuado, de facto ou factos que integram a continuação, deve merecer o tratamento do n.º 2 do art.º 79.º CP.
Ou seja, “Se, depois de uma condenação transitada em julgado, for conhecida uma conduta mais grave que integre a continuação, a pena que lhe for aplicável substitui a anterior” – art.º 79.º n.º 2, CP.
Isto é pacífico.
Mas não foi isto que a sentença em crise fez.
Ou melhor, não foi só isto.
Ao julgar factos praticados entre 2016 e 2020, que coincidem na janela temporal a
que se reporta o processo n.º 183/18.3PBAGH, a sentença sindicada integra-os numa mesma continuação mas procede de igual modo com todos os factos posteriores ao espaço temporal a que se reporta o dito processo n.º183/18.3PBAGH.
Isto é, a sentença assume que os actos do arguido praticados após o limite temporal considerado no processo n.º 183/18.3PBAGH (13 de Março a 31 de Março de 2018) revertem igualmente à continuação considerada neste processo.
4.5 – Retenha-se que o arguido vem condenado por um crime de tráfico de estupefacientes (art.º 21.º DL 15/93), praticado entre 2016 e 2020.
De permeio, depara-se o tribunal a quo com uma condenação sofrida pelo arguido, por crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade (art.º 25.º DL 15/93), entre 13 e 31 de Março de 2018.
O que fez o tribunal a quo?
Condena o arguido ao abrigo do art.º 79.º n.º 2 CP numa pena efectiva de cinco anos de prisão, declarando que esta pena substitui a anterior.
Ao fazê-lo, integra na continuação de factos já julgados no processo n.º 183/18.3PBAGH, também factos posteriores a essa mesma continuação (todos os praticados depois de 31 de Março de 2018, até 2020).
Já não falamos assim de factos que integram essa continuação, mas de factos que a prolongam. Que se lhe sucedem. Que são posteriores, não anteriores.
4.6 - Ora, isto é extravasar amplamente da previsão querida pelo legislador com a introdução do n.º 2 do art.º 79.º CP.
O seu pressuposto é que a descoberta posterior de factos que integrem a continuação sejam, digamos assim, a ela reconduzidos, para tudo se apreciar numa lógica de unidade e homogeneidade.
Factos que integram a continuação, não os que são praticados depois de julgada a continuação.
Isso mesmo se lê no Ac. STJ de 26.1.2005, processo n.º 3025/04, 3.ª secção, cuja nota IV do sumário afirma que “A figura do crime exaurido tem de se considerar como esgotada quanto aos factos ocorridos dentro do período de tempo a que a sua condenação pela sua prática se refere”.
O que a sentença faz, na prática, é afirmar que depois daquela condenação de 2018, factos praticados posteriormente que sejam reconduzíveis à mesma natureza, ficarão para sempre ligados àquele crime continuado e serão sempre chamados a integrar essa continuação.
A ser assim, a pena aplicada no processo n.º 183/18.3PBAGH sobrevive à mercê de uma espiral de potenciais e imprevisíveis condenações futuras - todas as resultantes de factos posteriores que no entender de um tribunal, integrassem a continuação original.
Este entendimento derrogaria totalmente um módico de certeza e paz jurídicas que toda a sociedade e o arguido almejam e que o direito penal é suposto assegurar.
A confirmar esta ideia: o arguido entrou no julgamento a que os presentes autos se reportam com uma pena de um ano de prisão (suspensa) no seu certificado de registo criminal, e saiu de lá com esta pena transmutada numa outra de cinco anos de prisão, efectiva.
E por que razão?
Por factos praticados antes da continuação, que a integram, mas também por factos praticados depois da continuação.
Amplia-se em excesso a regra excepcional de que não há caso julgado material numa condenação por crime continuado, parece-nos.
A pena resultante do processo n.º 183/18.3PBAGH é assim um livro aberto e em branco, à espera de nele se inscreverem novos factos, anteriores ou posteriores à condenação nascida deste processo, com o consequente agravamento potencial pendente sobre a cabeça do arguido.
P. P. de Albuquerque, em nota ao art.º 79.º CO, no seu Código Penal Anotado, relembra, a certa altura, que “se o acto novo não integrar a continuação, [como, ao menos parcialmente acontece, in casu] o tribunal do segundo julgamento fixa a pena que lhe for adequada, podendo considerar a anterior condenação apenas na medida concreta da pena” – o que é evidência de leituras alternativas do caso concreto que passaram ao lado da sentença sindicada e que são porventura a boa solução do caso em apreço.
5 – Outras objecções nos merece a sentença sindicada, ainda em relação à vexata quaestio acima identificada.
Não há indicação de que o arguido tenha tido oportunidade de se defender da ideia que veio a ganhar corpo na sentença.
O seu pressuposto, ao defender-se da acusação que sobre ele impendia, era o de que respondida pelos factos da acusação, certamente nunca imaginando que a pena final viria a englobar factos pelos quais já tinha respondido e sido condenado em 2018.
O mesmo é dizer: afinal os factos pelos quais respondia eram na verdade e sem que soubesse, de maior gravidade do que lhe seria dado antecipar ao entrar na sala de julgamento.
Nunca será despiciendo recordar que “O processo criminal assegura todas as garantias de defesa” e que “O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório” – art.º 32.º n.ºs 1 e 5, CRP.
6 – Igualmente nos parece questionável a fria e abrupta transmutação de uma pena de um ano de prisão, suspensa por um ano, numa pena de cinco anos de prisão, efectiva.
Ter-se-á presente que a pena substituída estava suspensa ab origine. Foi agora substituída por uma pena efectiva de 5 anos.
Ora, não vemos que se indague na sentença sindicada se essa suspensão tinha sido revogada ou se, ao contrário, a pena estava extinta.
Igualmente não se explica como se elimina uma pena suspensa, sem um qualquer juízo sobre a necessidade de revogar essa suspensão – e respectivos procedimentos contraditórios – e se desemboca numa pena única e englobante de cinco anos.
De facto, uma pena suspensa é agora substituída por uma pena efectiva. Não se vê que os procedimentos de estilo para revogar uma suspensão de pena tenham sido observados....
Parecem-nos assim desrespeitados os ditames do art.º 56.º CP, Revogação da suspensão
7 – Na verdade, a pena de cinco anos é “ajustada”, diz o M.' juiz a quo, “levando-se em linha de conta não só os factos praticados nestes autos, mas igualmente no Processo 183/18.3PBAGH”( Fls. 31 da sentença sindicada ).
Ou seja, esta sentença opera uma espécie de cúmulo entre duas penas, quando em rigor tinha que fazer o desconto da pena anterior, na nova pena.
A exposição de motivos da Proposta de lei n.º 98/X, que introduziu o n.º 2 do art.º 79.º CP, diz expressamente que “O crime continuado é objecto de uma restrição que supera dificuldades interpretativas...Ao nível sancionatório, prescreve-se que o conhecimento superveniente de novo crime que integre a continuação criminosa ou o concurso acarreta sempre a substituição da pena anterior, mesmo que já executada, depois de se ter procedido ao correspondente desconto, no caso de a nova pena única ser mais grave. Deste modo, assegura-se o máximo respeito pelo princípio non bis in idem, consagrado no n.º 5 do artigo 29.' da Constituição.” (bold da nossa responsabilidade).
Lê-se igualmente em anotação ao art.º 376.º CPP, da autoria de P. P. Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, que “Se o facto novo efectivamente integrar a continuação e for mais grave, a pena a cumprir será a que foi aplicada por este crime, descontando-se nele a parte da pena que já foi cumprida” (bold da nossa responsabilidade).
Igualmente Vítor de Sá Pereira e Alexandre Lafayette, no seu Código penal Anotado e Comentado, na nota 2.º ao artigo 79.º reclamam a necessidade de se descontar a pena antiga na pena nova.
7.1 – Este dever de desconto da pena anterior, na nova que a substitui, jamais foi assumido pelo M.º juiz a quo, antes parecendo que se procedeu a vulgar operação de cúmulo de duas penas, sendo que uma estava suspensa e a outra seria efectiva.
Misturaram-se penas de diferente natureza.
Aliás não há uma clara identificação da penalidade que mereceria o arguido pelos factos ora provados, excluindo aquele período de sobreposição da censura judicial relativo à segunda metade de Março de 2018. Assim não se percebe o destino dado à pena suspensa, como dialoga ela com a pena que seria emergente do actual julgamento e como interagem as duas penas.
Nesta medida, a sentença em crise viola o art.º 79.º n.º 2, CP e o recurso, nesta parte, mereceria provimento.
8 – O arguido discute igualmente a aplicação do regime penal especial para jovens, o que quer a sentença sindicada, quer o MP junto da primeira instância afastam com justeza, posição que merece a nossa concordância.
9 - A pena excessiva e a suspensão da mesma são os últimos motivos por que se bate o arguido.
Depois da sentença se ter exaurido a defender a homogeneidade dos factos, comparáveis àqueles que levaram à condenação de 2018, a pena de 5 anos, efectiva, parece-nos algo excessiva e com um pendor carcerário desajustado.
O percurso do arguido já não consente uma pena suspensa, mas uma penalidade na medida dos 4 anos de prisão, já cumpriria os requisitos de defesa da ordem jurídica, sem ofensa grande às expectativas de reintegração social do arguido.
Nesta parte, dar-se-ia provimento parcial ao recurso, portanto.
Este, Venerandos Desembargadores, o nosso Parecer.
Confessamos a nossa perplexidade pelo tratamento dado ao art.º 97.º n.º 2 CP num caso em que parte dos factos são reconduzíveis à continuação anteriormente julgada e parte deles são posteriores, daqui resultando, parece-nos, assinalável fragilização do estatuto do arguido.
Ademais, não vemos que haja crimes continuados a considerar nos presentes autos, o que inviabiliza radicalmente a solução propugnada pelo M.º juiz a quo para o presente caso. No entanto e como de costume, V.ªs Exas a final melhor dirão.”

Foi dado cumprimento ao disposto no art.º 417º, nº 2 do Cód. Proc. Penal, nada tendo o recorrente vindo acrescentar ao já por si alegado.

Proferido despacho liminar, teve lugar a conferência.

2 – Objecto do Recurso
Conforme o previsto no art.º 412º do Cód. Proc. Penal, o âmbito do
recurso é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação do
recurso, as quais delimitam as questões a apreciar pelo tribunal ad quem, sem
prejuízo das que forem de conhecimento oficioso (cf. neste sentido, Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, vol. III, 1994, pág. 320, Simas Santos e Leal-Henriques, in “Recursos Penais”, 9ª ed., 2020, pág. 89 e 113-114, e, entre muitos outros, o acórdão do STJ de 5.12.2007, no Processo nº 3178/07, 3ª Secção, disponível in Sumários do STJ, www.stj.pt, no qual se lê: «O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação - art. 412º, nº 1, do CPP -, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, (...), a significar que todas as questões incluídas nas
alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes.»)
À luz destes considerandos, são as seguintes as questões que cumprem
apreciar:
- Nulidade da sentença recorrida por verificação do vício previsto no art.º 410º, nº 2, alínea b) do Cód. Proc. Penal;
- Correcção de lapso de escrita;
- Desconto da pena fixada no proc. nº 183/18.3PBAGH;
- Atenuação especial da pena;
- Medida da pena;
- Suspensão da execução da pena de prisão.

3- Fundamentação:
3.1. – Fundamentação de Facto
A decisão recorrida considerou provados e não provados os seguintes
factos e com a seguinte motivação:
“Da discussão da causa resultaram provados os seguintes factos:
1º- Desde data não concretamente apurada, mas compreendida no ano de 2016 até ao mês de Março de 2020, o arguido AAA dedicou-se à compra e venda de produto estupefaciente, Cannabis (Resina), neste concelho de Angra do Heroísmo.
2º- Para tanto, o arguido AAA adquiria aquele produto estupefaciente a indivíduos e em locais cuja identificação não foi possível apurar, destinando-o, posteriormente, à respectiva venda, sempre a um preço superior àquele pelo qual o havia adquirido, a consumidores, neste concelho de Angra do Heroísmo.
3º- A venda do produto estupefaciente pelo arguido AAA era feita mediante prévio contacto telefónico ou envio de mensagens de texto escritas (vulgo sms), efectuado pelos consumidores, a maioria dos quais seus conhecidos, para o número de telemóvel de que aquele era titular - 960 392 000.
4º- Nesses contactos, o arguido AAA combinava com os consumidores o local de entrega do produto estupefaciente que estes pretendiam e, de seguida, encontrava-se com os mesmos, em locais públicos deste concelho de Angra do Heroísmo, entregando-lhes as quantidades de produto estupefaciente pretendidas, a troco de dinheiro.
5º- Assim, o arguido AAA, nas seguintes circunstâncias, vendeu, produto estupefaciente, Cannabis (Resina), designadamente, a:
a) CCC, na altura estudante do liceu de Angra do Heroísmo, em datas não concretamente apuradas, mas compreendidas entre o ano de 2017 e o ano de 2018, entre três a quatro vezes por semana, em frente ao liceu na Praça Almeida Garrett, Angra do Heroísmo, tendo, em cada uma dessas transacções, CCC adquirido, para consumo próprio, Cannabis (Resina), em quantidades não apuradas, pelo preço de €5,00 cada;
b) DDD, no período temporal compreendido entre o mês de Março ou Abril de 2017 até ao mês de Setembro de 2019, pelo menos, uma vez por mês, em locais públicos, não concretamente apurados, da cidade de Angra do Heroísmo, tendo, em cada uma dessas transacções, DDD adquirido, para consumo próprio, Cannabis (Resina), em quantidades não apuradas, pelo preço de €5,00;
c) EEE, desde data não concretamente apurada, mas compreendida no ano de 2018 até 23 de Setembro de 2019, entre duas a cinco vezes por mês, junto à escola primária São João de Deus e em outros locais públicos, não concretamente apurados, do concelho de Angra do Heroísmo, tendo, em cada uma dessas transacções EEE adquirido, para consumo próprio, Cannabis (Resina), em quantidades não apuradas, pelo preço de €5,00;
d) FFF, em datas não concretamente apuradas do ano de 2018 e no período temporal compreendido entre o mês de Fevereiro de 2019 e o mês de Agosto de 2019, pelo menos, duas vezes por mês, no parque de estacionamento junto ao Largo S. João de Deus, neste concelho de Angra do Heroísmo, tendo, em cada uma dessas transacções, FFF adquirido, para consumo próprio, Cannabis (Resina), em quantidades não apuradas, pelo preço de €10,00;
e) GGG, no período temporal compreendido entre o final do ano de 2018 e início do ano de 2019 até ao final do ano de 2019, pelo menos, duas vezes por mês, junto à escola primária S. João de Deus, neste concelho de Angra do Heroísmo, tendo, em cada uma dessas transacções, GGG adquirido, para consumo próprio, Cannabis (Resina), em quantidades não apuradas, pelo preço de €10,00;
f) HHH, em datas não concretamente apuradas, mas compreendidas entre o final do ano de 2018 e o início do ano de 2019, por duas vezes, junto à Igreja do Largo do Lameirinho, neste concelho de Angra do Heroísmo, tendo, em cada uma dessas transacções, HHH adquirido, para consumo próprio, Cannabis (Resina), em quantidades não apuradas, pelo preço de €10,00;
g) III, no período temporal compreendido entre o dia 02 de Janeiro de 2019 e data não concretamente apurada do mês de Setembro de 2019, entre nove a onze vezes, designadamente, a 02.01.2019, 30.04.2019 e 07.05.2019, junto ao Império do Lameirinho, tendo, em cada uma dessas transacções, III adquirido, para consumo próprio, Cannabis (Resina), em quantidades não apuradas, pelo preço de €5,00, €15,00 e €20,00;
h) JJJ, no período temporal compreendido entre o mês de Janeiro ou Março de 2019 até 23 de Setembro de 2019, entre seis a sete vezes, no Bairro Social do Lameirinho, tendo, em cada uma dessas transacções, JJJ, para consumo próprio, Cannabis (Resina), em quantidades não apuradas, pelo preço de €5,00;
i) KKK, no período temporal compreendido entre o mês de Fevereiro de 2019 e o mês de Setembro de 2019, por quatro vezes, e no período temporal compreendido entre Janeiro e Março de 2020, por duas vezes, no Bairro Social do Lameirinho, tendo, em cada uma dessas transacções, KKK adquirido, para consumo próprio, Cannabis (Resina), em quantidades não apuradas, pelo preço de €10,00 e €20,00;
j) LLL, no Carnaval de 2019, durante duas semanas, entre duas a três vezes, junto à escola primária São João de Deus, tendo, em cada uma dessas transacções, LLL adquirido, para consumo próprio, Cannabis (Resina), em quantidades não apuradas, pelo preço total, por semana, de €30,00 na Páscoa de 2019, durante duas semanas, entre duas a três vezes, junto à escola primária São João de Deus, tendo, em cada uma dessas transacções, LLL adquirido, para consumo próprio, Cannabis (Resina), em quantidades não apuradas, pelo preço total, por semana, de €30,00 no Natal de 2019, durante duas semanas, entre duas a três vezes, junto à escola primária São João de Deus, tendo, em cada uma dessas transacções, LLL adquirido, para consumo próprio, Cannabis (Resina), em quantidades não apuradas, pelo preço total, por semana, de €30,00 entre Julho e Setembro de 2019, entre duas a três vezes por semana, junto à escola primária São João de Deus, tendo, em cada uma dessas transacções, LLL adquirido, para consumo próprio, Cannabis (Resina), em quantidades não apuradas, pelo preço total, por semana, de €30,00 no mês de Fevereiro ou Março de 2020, entre duas a três vezes por semana, junto à escola primária São João de Deus, tendo, em cada uma dessas transacções, LLL adquirido, para consumo próprio, Cannabis (Resina), em quantidades não apuradas, pelo preço total, por semana, de €30,00;
k) MMM, no período temporal compreendido entre o mês de Março de 2019 e o dia 23 de Setembro de 2019, pelo menos, duas vezes por mês, no Bairro Social do Lameirinho e em outros locais públicos, não concretamente apurados, do concelho de Angra do Heroísmo, tendo, em cada uma dessas transacções, MMM adquirido, para consumo próprio, Cannabis (Resina), em quantidades não apuradas, pelo preço de €20,00;
l) NNN, no período temporal compreendido entre o mês de Junho de 2019 e o mês de Março de 2020, entre cinco a seis vezes, no Relvão, no Bairro Social do Lameirinho e nas imediações do Hospital Velho, neste concelho de Angra do Heroísmo, tendo em cada uma dessas transacções, NNN adquirido, para consumo próprio, Cannabis (Resina), em quantidades não apuradas, pelo preço de €5,00 e €10,00;
m) OOO, no período temporal compreendido entre o mês de Junho de 2019 e o mês de Agosto de 2019, cerca de duas a três vezes por semana, em locais públicos, não concretamente apurados, da cidade de Angra do Heroísmo, tendo, em cada uma dessas transacções, OOO adquirido, para consumo próprio, Cannabis (Resina), em quantidades não apuradas, pelo preço de €10,00;
n) PPP, no período temporal compreendido entre o Verão de 2019 e o mês de Janeiro ou Fevereiro de 2020, uma vez por semana, no parque de estacionamento junto à escola primária S. João de Deus, neste concelho de Angra do Heroísmo, tendo, em cada uma dessas transacções, PPP adquirido, para consumo próprio, Cannabis (Resina), em quantidades não apuradas, pelo preço de €10,00 e €40,00; e
o) QQQ, Sozinho em datas não concretamente apuradas, mas compreendidas no ano de 2019, entre cinco a seis vezes, em locais que se não lograram apurar, tendo, em cada uma dessas transacções, QQQ Sozinho adquirido, para consumo próprio, Cannabis (Resina), em quantidades não apuradas, pelo preço de €10,00.
6º- Acresce que, no dia 23 de Setembro de 2019, pelas 17:00 horas, na via pública, na Canada Breado, freguesia de Santa Luzia, concelho de Angra do Heroísmo, o arguido AAA tentou proceder à venda, de Cannabis (Resina), em quantidade não concretamente apurada, mas correspondente a meia língua, pelo preço de €4,00, a RRR, para consumo próprio deste, apenas não o logrando fazer, atenta a intervenção de elementos da PSP - Esquadra de Angra do Heroísmo.
7º- Nessa sequência, o arguido AAA detinha na sua posse, os seguintes objectos:
i) Uma nota do Baco Central Europeu, no valor de €5,00 (cinco euros) e
ii) Cannabis (Resina), com o peso líquido de 5,422 (cinco vírgula quatrocentos e vinte e dois) gramas, com o grau de pureza de 15,7 (THC), o que permitiria um consumo individual de 17 (dezassete) doses.
8º- Acresce que, ainda no dia 23 de Setembro de 2019, pelas 17:15 horas, na residência do arguido AAA, sita na Rua ..., n.º 0, freguesia e concelho de Angra do Heroísmo, o arguido tinha no seu quarto de dormir, os seguintes bens:
i) um involucro de cartão SIM (MEO, Moche), com o número 925950000;
ii) um invólucro de cartão SIM (MEO), com o IMEI 89351060000835512000;
iii) três cartões micro SD, de 8G, 4G e 2G;
iv) um telemóvel, marca Huawei, modelo VNS-L31, de cor dourada, com os IMEIs 863066037139000 e 86306603715000;
v) um telemóvel, marca Samsung, de cor branco, com o IMEI 35256407985000;
vi) um computador portátil, marca Asus, modelo K501, de cor preta, com o número de série A9N0AS708380000;
vii) um isqueiro, marca Prof., modelo I-17, de cor cinza;
viii) uma régua, marca Novinco, de cor branca, utilizada no corte de produto estupefaciente;
ix) uma lâmina de X-acto, com 13 centímetros, utilizada no corte de produto estupefaciente;
x) uma tesoura, com cabo azul e 14 centímetros de comprimento, utilizada no corte de produto estupefaciente;
xi) um canivete, com cabo de cor preta, com 15 centímetros de comprimento total, utilizado no corte de produto estupefaciente;
xii) €70,00 (setenta euros), constituídos por cinco notas de €10,00 (dez euros) do Banco Central Europeu e quatro notas de €5,00 (cinco euros) do Banco central Europeu; e
xiii) Cannabis (Resina), com o peso líquido de 120,523 (cento e vinte vírgula quinhentos e vinte e três) gramas, com o grau de pureza de 15,4 (THC), o que permitiria um consumo individual de 371 (trezentas e setenta e uma) doses.
9º- O produto estupefaciente e os bens referidos pertenciam ao arguido AAA, sendo que, o produto estupefaciente era o que lhe restava de uma porção maior que adquiriu em circunstâncias não concretamente apuradas e que destinava à venda a quem o procurasse, nomeadamente, a consumidores, sempre por preço superior ao da sua aquisição, com o propósito de obter proveitos económicos.
10º- As quantias em dinheiro resultaram da venda por este de produto estupefaciente, Cannabis (Resina) a terceiros, consumidores, nos termos acima descritos.
11º- Os demais objectos identificados foram adquiridos pelo arguido AAA, com os proventos obtidos com a descrita actividade de compra e venda de produto estupefaciente, Cannabis (Resina) e eram utilizados pelo arguido em tal actividade.
12º- O arguido AAA dedicava-se à prática reiterada do crime de tráfico de estupefacientes, fazendo disso modo de vida.
13º- À data dos factos descritos, o arguido AAA fazia alguns biscates na construção civil e em jardinagem, não auferindo qualquer subsídio ou pensão.
14º- De igual modo, no período temporal compreendido entre o ano de 2016 e o ano de 2020, o arguido AAA não apresentou qualquer Declaração de Rendimentos no Serviço de Finanças competente.
15º- O arguido AAA conhecia a natureza e as características estupefacientes do produto, Cannabis (Resina), que teve na sua posse, cedeu, vendeu e transportou consigo, destinando tal produto à venda a consumidores, mediante contrapartida monetária, actividade esta que exerceu durante o período temporal compreendido entre o ano de 2016 e o mês de Março de 2020.
16º- O arguido AAA sabia que a detenção, cedência, distribuição, transporte ou comercialização de produto estupefaciente era proibida e punida por lei penal e, não obstante, quis proceder à sua aquisição e comercialização conforme acima descrito, com intuito de auferir proventos económicos, o que conseguiu.
17º- O arguido AAA agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente e, apesar de saber que todas as suas condutas, acima descritas, eram proibidas e punidas por lei, não se absteve de as prosseguir.
18º- À data dos factos, AAA vivia no contexto familiar de origem, constituído pela progenitora e um irmão mais novo, pese embora entre 2019 e 2020, tenha integrado o agregado familiar da avó paterna, na sequência de alguns desentendimentos com a progenitora, residindo com ela actualmente.
19º- Desde os 18-19 anos que o arguido tem vindo a desempenhar actividades indiferenciadas, mas sobretudo na área da construção civil e de jardinagem, de acordo com as oportunidades de trabalho, sendo em regra essas solicitações obtidas por um tio paterno. Muito pontualmente trabalhou na área da reciclagem e na da restauração, por curtos períodos. A inserção laboral é algo irregular e dependente das solicitações de trabalho, não possuindo qualquer vínculo laboral, nem perspectivando uma situação mais estável.
20º- Aufere cerca de €30 a €40 por dia de trabalho, montante com que participa no pagamento das despesas do agregado.
21º- O arguido assume consumos de estupefacientes, nomeadamente haxixe, desde cerca dos 17-18 anos, não considerando a necessidade de tratamento e não lhe atribuindo especial impacto na gestão do seu quotidiano, revelando dificuldades de motivação em manter-se abstinente.
22º- O arguido frequentou a escola até cerca dos 18 anos, abandonando o percurso escolar quando frequentava o 6º ano de escolaridade, integrado em curso profissionalizante de carpintaria, que não concluiu. O percurso escolar foi marcado pelo absentismo e pela tendência para se associar com outros pares igualmente problemáticos, não antecipando a intenção de vir a concluir a escolaridade obrigatória.
23º- Desde há cerca de 3 anos mantém um relacionamento afectivo com Inês Silva, marcado por alguma conflituosidade e por rupturas e reconciliações, tendo nesse contexto sido condenado por um crime de violência doméstica. O casal mantém a residência com os respectivos agregados, sendo que a filha de ambos, de 2 anos de idade, se encontra aos cuidados da mãe, passando alguns fins de semana com o arguido, de acordo com as folgas
laborais da mãe deste, que apoia nos cuidados prestados à menor.
24º- O arguido é um indivíduo que revela um funcionamento em que predomina ainda
uma grande imaturidade e um pensamento essencialmente imediatista, com dificuldade em
termos de pensamento consequencial e de capacidade de descentração.
25º- Indicia também dificuldades ao nível da capacidade de resolução de problemas e
de tolerância à frustração, a par de uma consciência crítica essencialmente autocentrada e
decorrente sobretudo das consequências que podem resultar para si próprio.
26º- Estas características de funcionamento não surgem indissociadas da
problemática aditiva que o arguido mantém há vários anos, com aparente impacto na sua
capacidade de organização e de investimento nos diferentes contextos de vida, denotando
alguma apatia, na forma como avalia o seu percurso e enquadramento.
27º- Pela prática a 31 de Março de 2018 de um crime de tráfico de quantidades
diminutas e de menor gravidade foi o arguido condenado por sentença de 27 de Novembro de
2018, transitada em julgado a 18 de Dezembro de 2018, na pena de 12 meses de prisão,
suspensa por 12 meses (Processo 183/18.3PBAGH).
28º- Foram os seguintes factos que levaram à condenação:
1. No dia 31.03.18, pelas 23:20 horas, na Rua Frei Diogo, nº10, nesta cidade, o
arguido tinha na sua posse:
- 5 canivetes;
- 1 nota de 5 euros;
- Duas moedas de 2 euros;
- 10 euros em moedas de 1 euro;
- 1 moeda de 0,50 cêntimos;
- 1 telemóvel Starnaut da Altice, com o nº série 358109080440000;
- 1 telemóvel da Alcatel, azul claro, com o nº de série 35176204540000;
- Dois pedaços (línguas) de cannabis (resina) com o peso bruto de 7,86 gramas;
- 5 “charros” (canábis resina) com o peso bruto de 5,16 gramas (haxixe misturado
com tabaco);
- 1 caixa metálica onde guardava o estupefaciente.
2. O arguido destinava o produto estupefaciente à venda a terceiros, sendo o dinheiro que lhe foi apreendido, produto das referidas vendas.
3. Para o efeito, o arguido recebia encomendas de haxixe de consumidores que ligavam para o seu telemóvel nº 925117064, designadamente:
- no dia 13.03,18, o consumidor “WWW” mandou a seguinte sms para o telemóvel do arguido: “Tou cá fora, traz 10 e 10 de troco” e “Tou cá fora, traz 10”;
- no dia 27.03.18, o consumidor com nº de telemóvel 96540000 mandou a seguinte sms ao arguido: “Tens mais daquilo mas ve se desta vez vem com os 4,4 se tiveres da-me um toque” “E ao menos trás 10 para compensar os de antes de ontem”;
- No dia 28.03.18, o usuário do nº 961100000 mandou a seguinte sms ao arguido: “Acabei de sair do trabalho e vim desde a Silveira ate a Feteira de carro e não tinha bófia és mesmo cagado bacalhau não tem bofia nenhuma na boa abraço aos 2”.
4. O arguido conhecia as características e as qualidades do produto que detinha, designadamente a sua natureza estupefaciente e tóxica para o corpo humano, sabendo tratar-se de canábis de resina e, apesar disso, não se absteve de a vender.
5. O arguido sabia perfeitamente que qualquer actividade envolvendo estupefaciente, designadamente, a sua cedência, a qualquer título, a terceiros, sem a necessária autorização, era absolutamente proibida e punida por lei criminal.
6. O arguido em tudo agiu de forma livre, voluntária e conscientemente.
29º- Pela prática a … de … de 2019 e a … de … de 2022 de um crime de
violência doméstica contra cônjuge ou análogos foi o arguido condenado por sentença de 21
de Dezembro de 2022, transitada a 20 de Janeiro de 2023, na pena de 1 ano e 6 meses,
suspensa por 3 anos (Processo 575/19.0PBAGH).
30º- O arguido confessou os factos.

Nenhuns outros factos como relevo para a causa resultaram provados.
Não resultou provado, nomeadamente:
- O arguido BBB se dedicava à prática reiterada do crime de tráfico de estupefacientes, fazendo disso modo de vida.
- À data dos factos, o arguido BBB não possuía qualquer actividade profissional, seja como trabalhador dependente, seja como trabalhador independente, não auferindo qualquer subsídio ou pensão.
- O arguido BBB vivia, assim, dos proventos que obtinha com a sua actividade de compra e venda de produto estupefaciente, Cannabis (Resina), bem sabendo serem obtidos de forma ilícita, utilizando-os para fazer face às suas despesas diárias e pessoais.

Para a fixação dos factos dados como provados serviu-se o tribunal do princípio da livre apreciação da prova previsto no art.º 127º do Cód. de Processo Penal, ou seja, do conjunto dos meios de prova produzidos em julgamento, os quais, conjugados com as regras da experiência comum, formaram a sua livre convicção pessoal do modo seguinte:
O arguido AAA assumiu sem rebuço a prática da venda de estupefaciente a terceiros, forma encontrada para financiar o seu próprio consumo. Referiu ser toxicodependente e, à data, fumar muito. Confirmou todas as vendas descritas na acusação, com a excepção das vendas a CCC, de quem já não se recordava, explicando serem os seus compradores amigos ou conhecidos.
Testemunhando, CCC esclareceu todos os pormenores das compras efectuadas ao arguido, nomeadamente, os períodos em que o fez, a periodicidades das mesmas e os preços pagos.
As apreensões efectuadas, e descritas nos autos de fls. 13, 14 e 15, dão sustento a tudo quanto foi afirmado e reconhecido pelo arguido, tendo ele especificamente
assumido a propriedade dos objectos apreendidos e sua relação com o tráfico de estupefaciente.
O relatório de exame pericial toxicológico de fls. 233 e seguintes comprova a natureza proibida dos estupefacientes apreendidos ao arguido.
No que respeita ao modo de vida deste, nenhuma prova foi apresentada que demonstrasse que ele se tivesse dedicado de modo exclusivo à venda de estupefaciente (sendo certo que o artigo 12º da acusação é conclusivo). O arguido afirmou trabalhar ocasionalmente na jardinagem ou na construção, o que surge confirmado no relatório social da DGRSP, de onde foram, aliás, retirados os factos respeitantes à sua condição de vida passada e presente.
Em relação aos antecedentes criminais, o tribunal tomou em consideração o CRC do arguido junto a fls. 497 e seguintes, e na certidão provinda do processo 183/18.3PBAGH solicitada durante o julgamento.”

3.2.- Mérito do recurso
Quanto ao conhecimento dos vários fundamentos do recurso interposto nestes autos, importa seguir uma sequência lógica, começando pelos fundamentos que importam a nulidade da decisão recorrida e que é a existência dos vícios previstos no art.º 410º, nº 2, do Cód. Proc. Penal, seguindo-se depois a apreciação das demais questões invocadas pelo recorrente.
Como fundamento do seu recurso invoca o arguido a verificação, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 410º, nº 2, alínea b) do Cód. Proc. Penal, de contradição insanável na decisão recorrida entre os factos provados sob o nº 12 e os factos não provados.
Quanto a estas questões, estabelece o art.º 410º, nº 2 do Cód. Proc. Penal que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do Tribunal a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) O erro notório na apreciação da prova.
Tratam-se de vícios da decisão sobre a matéria de facto que são vícios da própria decisão, como peça autónoma, e não vícios de julgamento, que não se confundem nem com o erro na aplicação do direito aos factos, nem com a errada apreciação e valoração das provas ou a insuficiência destas para a decisão de facto proferida.
Estes vícios são também de conhecimento oficioso, pois têm a ver com a perfeição formal da decisão da matéria de facto e decorrem do próprio texto da decisão recorrida, por si só considerado ou em conjugação com as regras da experiência comum, sem possibilidade de recurso a outros elementos que lhe sejam estranhos, mesmo constantes do processo (cfr., neste sentido, Maia Gonçalves, in “Código de Processo Penal Anotado”, 16ª ed., pág. 873; Germano Marques da Silva, in
“Curso de Processo Penal”, Vol. III, 2ª ed., pág. 339; Simas Santos e Leal-Henriques, in
“Recursos em Processo Penal”, 6ª ed., 2007, pág. 77 e seg.; Maria João Antunes, RPCC, Janeiro-Março de 1994, pág. 121).
Há insuficiência da matéria de facto para a decisão quando os factos dados como assentes na decisão são insuficientes para se poder formular um juízo seguro de condenação ou absolvição, ou seja, são insuficientes para a aplicação do direito ao caso concreto.
No entanto, tal insuficiência só ocorre quando existe uma lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para a decisão de direito, porque não se apurou o que é evidente e que se podia ter apurado ou porque o Tribunal não investigou a totalidade da matéria de facto com relevo para a decisão da causa, podendo fazê-lo.
Esta insuficiência da matéria de facto tem de existir internamente, no âmbito da decisão e resultar do texto da mesma.
Neste sentido decidiu o STJ no Ac. de 5/12/2007, proferido no processo nº 07P3406, em que foi relator Raúl Borges, in www.dgsi.pt, onde se pode ler que:
“Ocorre o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando esta se mostra exígua para fundamentar a solução de direito encontrada, quando da factualidade vertida na decisão se colhe faltarem elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para que se possa formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição. Ou, como se diz no acórdão deste STJ de 25-03-1998, BMJ 475.º/502, quando, após o julgamento, os factos colhidos não consentem, quer na sua objectividade, quer na sua subjectividade, dar o ilícito como provado; ou ainda, na formulação do acórdão do mesmo Tribunal de 20-12-2006, no Proc. 3379/06 - 3.ª, o vício consiste numa carência de factos que permitam suportar uma decisão dentro do quadro das soluções de direito plausíveis e que impede que sobre a matéria de facto seja proferida uma decisão de direito segura.”
No mesmo sentido se decidiu no Ac. do TRC de 12/09/18, proferido no processo nº 28/16.9PTCTB.C1, em que foi relator Orlando Gonçalves, in www.dgsi.pt, onde se escreveu que: “ O art.410.º n.º 2 do Código de Processo Penal, estatui que «mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter por fundamento, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; ou c) O erro notório na apreciação da prova.».
Como resulta expressamente mencionado nesta norma, os vícios nela referidos têm que resultar da própria decisão recorrida, na sua globalidade, mas sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos, designadamente a segmentos de declarações ou depoimentos prestados oralmente em audiência de julgamento e que se não mostram consignados no texto da decisão recorrida. O vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada existe quando da factualidade vertida na decisão se colhe faltarem dados e elementos para a decisão de direito, considerando as várias soluções plausíveis, como sejam a condenação (e a medida desta) ou a absolvição (existência de causas de exclusão da ilicitude ou da culpa), admitindo-se, num juízo de prognose, que os factos que ficaram por apurar, se viessem a ser averiguados pelo tribunal a quo através dos meios de prova disponíveis, poderiam ser dados como provados, determinando uma alteração de direito. Existirá insuficiência para a decisão da matéria de facto se houver omissão de pronúncia pelo tribunal sobre factos relevantes e os factos provados não permitem a aplicação do direito ao caso submetido a julgamento, com a segurança necessária a proferir-se uma decisão justa. – Neste sentido, entre outros, os Acórdãos do STJ de 7/04/2010 (proc. n.º 83/03.1TALLE.E1.S1, 3ª Secção, in www.dgsi.pt) de 6-4-2000 (BMJ n.º 496 , pág. 169) e de 13-1-1999 (BMJ n.º 483 , pág. 49) e os Cons. Leal- Henriques e Simas Santos , in “Código de Processo Penal anotado”, vol. 2.º, 2ª ed., pág.s 737 a 739.”
Veja-se ainda, a título de exemplo, o Ac. deste TRL de 22/09/20, no processo nº 3773/12.4TDLSB.L1-5, em que foi relator Jorge Gonçalves, in
www.dgsi.pt, onde se decidiu que: “ Estabelece o artigo 410.º, n.º 2, do C.P.P. que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova. Trata-se de vícios da decisão sobre a matéria de facto - vícios da decisão e não de julgamento, não confundíveis nem com o erro na aplicação do direito aos factos, nem com a errada apreciação e valoração das provas ou a insuficiência destas para a decisão de facto proferida -, de conhecimento oficioso, que, como já se adiantou, hão-de derivar do texto da decisão recorrida, por si só considerado ou em conjugação com as regras da experiência comum, sem possibilidade de apelo a outros elementos que lhe sejam estranhos, mesmo que constem do processo, sendo os referidos vícios intrínsecos à decisão como peça autónoma. Verifica-se o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal, podendo fazê-lo, não investigou toda a matéria de facto relevante, acarretando a normal consequência de uma decisão de direito viciada por falta de suficiente base factual, ou seja, os factos dados como provados não permitem, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso que foi submetido à apreciação do julgador. Dito de outra forma, este vício ocorre quando a matéria de facto provada não basta para fundamentar a solução de direito e quando não foi investigada toda a matéria de facto contida no objecto do processo e com relevo para a decisão, cujo apuramento conduziria à solução legal (cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos ..., 6.ª ed., 2007, p. 69; Acórdão da Relação de Lisboa, de 11.11.2009, processo 346/08.0ECLSB.L1-3, em http://www.dgsi.pt).
Quanto à contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, prevista no artigo 410º, nº 2, alínea b) do Cód. Proc. Penal, a mesma consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão.
Ocorrerá, por exemplo, quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação da convicção conduz a uma decisão sobre a matéria de facto provada e não provada contrária àquela que foi tomada, porquanto todos os vícios elencados neste artigo se reportam à decisão de facto e consubstanciam anomalias decisórias, ao nível da elaboração da sentença, circunscritas à matéria de facto (cfr., neste sentido,
Simas Santos e Leal-Henriques, in “Recursos em Processo Penal”, 6ª ed., 2007, págs. 71 a 73).
Especificamente quanto ao vício da contradição insanável, decidiu o STJ, no acórdão de 12/03/2015, proferido no processo nº 418/11.3GAACB.C1.S1 - 3.ª Secção, que: «[o] vício da contradição insanável da fundamentação ou entre a
fundamentação e a decisão verifica-se quando no texto da decisão constem posições antagónicas ou inconciliáveis, que se excluam mutuamente ou não possam ser compreendidas simultaneamente dentro da perspetiva de lógica interna da decisão, tanto na coordenação possível dos factos e respetivas consequências, como nos pressupostos de uma solução de direito».
Pode, assim, afirmar-se que há contradição insanável da fundamentação quando, através de um raciocínio lógico, se conclua pela existência de oposição insanável entre os factos provados, entre estes e os não provados, ou até entre a fundamentação probatória da matéria de facto.
A contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, por sua vez, ocorrerá quando, também através de um raciocínio lógico, se conclua pela existência de oposição insanável entre os meios de prova invocados na fundamentação como base dos factos provados ou entre a fundamentação e o dispositivo da decisão.
Ainda nas palavras de Simas Santos e Leal Henriques, in “ Código de Processo Penal Anotado”, II volume, 2ª Edição, 2000, editora Rei dos Livros,
Lisboa, pág. 379: «por contradição, entende-se o facto de afirmar e de negar ao mesmo tempo uma coisa ou a emissão de duas proposições contraditórias que não possam ser simultaneamente verdadeiras e falsas, entendendo-se como proposições contraditórias as que tendo o mesmo sujeito e o mesmo atributo diferem na quantidade e qualidade. Para os fins do preceito (al. b) do n.º 2) constitui contradição apenas e tão só aquela que, expressamente se postula, se apresente como insanável, irredutível, que não possa ser integrada com recurso à decisão recorrida no seu todo, por si só ou com auxílio das regras da experiência.»
No que concerne ao erro notório na apreciação da prova, segundo o disposto no art.º 410º, nº 2, alínea c) do Cód. Proc. Penal, o mesmo releva como fundamento de recurso desde que resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum.
Pese embora a lei não o defina, o «Erro notório» tem sido entendido como aquele que é evidente, que não escapa ao homem comum, de que um observador médio se apercebe com facilidade e que ressalta do teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, só podendo relevar se for ostensivo, inquestionável e percetível pelo comum dos observadores ou pelas faculdades de apreciação do «homem médio».
Há «erro notório» quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória ou notoriamente violadora das regras da experiência comum e ainda quando determinado facto provado é incompatível, inconciliável ou contraditório com outro facto, positivo ou negativo, contido no texto da decisão recorrida (cf. neste sentido, LEAL-HENRIQUES e SIMAS SANTOS, in “Código de Processo Penal anotado”, II volume, 2ª edição, 2000, Rei dos Livros, pág. 740).
Este é um vício do raciocínio na apreciação das provas, de que nos apercebemos apenas pela leitura do texto da decisão, o qual, por ser tão evidente, salta aos olhos do leitor médio, sem necessidade de particular exercício mental, em que as provas revelam claramente um sentido e a decisão recorrida extraiu uma ilação contrária, logicamente impossível, incluindo na matéria fáctica provada ou excluindo dela algum facto essencial (cf. entre muitos outros, Acs. TRC de 09.03.2018, proferido no processo nº 628/16.7T8LMG.C1, em que foi relatora Paula Roberto, e de 14.01.2015, proferido no processo nº 72/11.2GDSRT.C1, em que foi relator Fernando Chaves, ambos disponíveis em www.dgsi.pt).
Entende o recorrente que a decisão recorrida padece do vício de contradição insanável, alegando, para tanto, na sua motivação, que:
“(...) É o que se verifica, com o facto considerado provado no n.º 12 do factos provados: “ O arguido AAA dedicava-se à prática reiterada do crime de tráfico de estupefacientes, fazendo disso modo de vida” e o facto considerado não provado: “O arguido BBB se dedicava à prática reiterada do crime de tráfico de estupefacientes, fazendo disso modo de vida”.
33.º Note-se que os presentes autos apenas respeitam a um só arguido: AAA. A referência, no texto da sentença recorrida ao arguido BBB, deve-se, a nós, a um lapso de escrita que, como tal, pode ser corrigido, nos termos do disposto no artigo 380.º, n.º 1 al b) e n.º 2 do Código de Processo Penal.
34.º No entanto, já não se trata de um lapso de escrita escrever-se nos factos provados e nos não provados que o arguido se dedica à prática reiterada do crime de tráfico de estupefacientes, fazendo disso modo de vida.
35.º Na verdade, não pode ter-se por verificado e não verificado tal facto, por incompatibilidade lógica, daí que se verifique uma contradição da fundamentação.
36.º A contradição é insanável porque não é ultrapassável com recurso às regras da experiência nem com recurso à sentença recorrida no seu todo.(...)
Voltando à decisão recorrida, verificamos que consta efectivamente dos factos provados que:
“ (...)12º- O arguido AAA dedicava-se à prática reiterada do crime de tráfico de estupefacientes, fazendo disso modo de vida.(...)”
E consta dos factos não provados que:
(...) Não resultou provado, nomeadamente:
- O arguido BBB se dedicava à prática reiterada do crime de tráfico de estupefacientes, fazendo disso modo de vida.
- À data dos factos, o arguido BBB não possuía qualquer actividade profissional, seja como trabalhador dependente, seja como trabalhador independente, não auferindo qualquer subsídio ou pensão.
- O arguido BBB vivia, assim, dos proventos que obtinha com a sua actividade de compra e venda de produto estupefaciente, Cannabis (Resina), bem sabendo serem obtidos de forma ilícita, utilizando-os para fazer face às suas despesas diárias e pessoais.(...)”
Sucede, porém, que o arguido confessou a totalidade dos factos e, pela análise conjunta de toda a factualidade provada e não provada, constata-se que a menção na sentença recorrida aos factos não provados, todos eles relativos a BBB, que não é arguido nestes autos, se ficou a dever a um lapso manifesto do juiz a quo na elaboração do texto da decisão, que certamente utilizou como base o texto de outras decisões que havia feito antes.
Este é um lapso material da decisão, susceptível de correcção nos termos previstos no art.º 380º, nº 1, al. b) e nº 2 do Cód. Proc. Penal, mediante a eliminação dos factos não provados do texto da decisão.
No entanto, analisada a motivação da matéria de facto da sentença recorrida, constata-se que consta da mesma o seguinte:
“(...) No que respeita ao modo de vida deste, nenhuma prova foi apresentada que demonstrasse que ele se tivesse dedicado de modo exclusivo à venda de estupefaciente (sendo certo que o artigo 12º da acusação é conclusivo). O arguido afirmou trabalhar ocasionalmente na jardinagem ou na construção, o que surge confirmado no relatório social da DGRSP, de onde foram, aliás, retirados os factos respeitantes à sua condição de vida passada e presente.(...)”
Deste segmento da decisão recorrida, quando confrontado com o facto provado em 12, facilmente se retira que existe efectivamente contradição entre o referido facto provado e a sua fundamentação na parte da motivação de facto da decisão, pois não é possível dar-se como provado que “O arguido AAA dedicava-se à prática reiterada do crime de tráfico de estupefacientes, fazendo disso modo de vida.” e simultaneamente dizer-se que “, nenhuma prova foi apresentada que demonstrasse que ele se tivesse dedicado de modo exclusivo à venda de estupefaciente”.
É que estas duas afirmações encerram uma contradição nos seus termos, contradição esta que é efectivamente insanável, pois não permite concluir, com um juízo de certeza, se o recorrente fazia ou não do tráfico de droga modo de vida, sendo este um facto absolutamente imprescindível para a determinação da medida da pena e para o juízo de prognose favorável ou desfavorável a efectuar em sede de determinação do cumprimento efectivo ou não da pena de prisão aplicada.
Impõe-se, assim, concluir que a decisão recorrida enferma do vício de contradição insanável previsto no art.º 410º, nº 2, alínea b) do Cód. Proc. Penal, o que determina a sua anulação e o reenvio dos autos para novo julgamento, restrito à apreciação desta questão concreta, de harmonia com o disposto nos arts.º 426º, nº 1 e 426º-A do mesmo diploma, ficando prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas no recurso.
Deverá, pois, a primeira instância determinar a produção de prova necessária e adequada para sanar a referida contradição e, após, proferir nova decisão, com base no conjunto dos factos que vierem a provar-se e aqueles já dados como assentes pela decisão recorrida.
No entanto, constata-se ainda existir na sentença recorrida o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no art.º 410º, nº 2, alínea a) do Cód. Proc. Civil, vício este que, não obstante o recorrente não o tenha arguido, é, como referimos, de conhecimento oficioso.
A sentença em apreço condenou o recorrente pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art.º 21º, nº 1 do D.L. nº 15/93, de 22/01, com referência à Tabela I-C anexa, na pena de 5 anos de prisão, pena esta que substitui a pena aplicada ao recorrente de 12 meses de prisão, suspensa na sua execução por 12 meses, no processo nº 183/18.3PBAGH, cuja sentença transitou em julgado a 18/12/18.
Na sentença recorrida apurou-se que:
- desde data não concretamente apurada, mas compreendida no ano de 2016 até ao mês de Março de 2020, o arguido AAA dedicou-se à compra e venda de produto estupefaciente, Cannabis (Resina), no concelho de Angra do Heroísmo;
- para tanto, o arguido AAA adquiria aquele produto estupefaciente a indivíduos e em locais cuja identificação não foi possível apurar, destinando-o, posteriormente, à respectiva venda, sempre a um preço superior àquele pelo qual o havia adquirido, a consumidores, no concelho de Angra do Heroísmo;
- a venda do produto estupefaciente pelo arguido AAA era feita mediante prévio contacto telefónico ou envio de mensagens de texto escritas (vulgo sms), efectuado pelos consumidores, a maioria dos quais seus conhecidos, para o número de telemóvel de que aquele era titular - 960 392 000;
- nesses contactos, o arguido AAA combinava com os consumidores o local de entrega do produto estupefaciente que estes pretendiam e, de seguida, encontrava-se com os mesmos, em locais públicos do concelho de Angra do Heroísmo, entregando-lhes as quantidades de produto estupefaciente pretendidas, a troco de dinheiro;
- o arguido AAA conhecia a natureza e as características estupefacientes do produto, Cannabis (Resina), que teve na sua posse, cedeu, vendeu e transportou consigo, destinando tal produto à venda a consumidores, mediante contrapartida monetária, actividade esta que exerceu durante o período temporal compreendido entre o ano de 2016 e o mês de Março de 2020;
- o arguido AAA sabia que a detenção, cedência, distribuição, transporte ou comercialização de produto estupefaciente era proibida e punida por lei penal e, não obstante, quis proceder à sua aquisição e comercialização conforme acima descrito, com intuito de auferir proventos económicos, o que conseguiu;
- o arguido AAA agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente e, apesar de saber que todas as suas condutas, acima descritas, eram proibidas e punidas por lei, não se absteve de as prosseguir.
Com base nesta factualidade, o Tribunal a quo considerou verificar-se a prática pelo arguido de um só crime de tráfico de estupefacientes, porquanto o mesmo vendeu e deteve dolosamente canábis, estupefaciente incluído na Tabela I-C, fora dos casos previstos no artigo 40º do DL 15/93, com conhecimento da proibição dessa detenção, e, apesar da pluralidade de condutas, actuou de forma prolongada, mas num sequencial lapso de tempo, num contexto de vendas constantes a diversos consumidores, tendo actuado com unidade resolutiva e de propósitos entre as várias condutas, considerando-se que a repetição dos actos, com produção de sucessivos resultados, deve ser imputada a uma realização única, dada a natureza exaurida do crime.
Como resulta da matéria de facto assente, as vendas de estupefaciente pelo arguido ocorreram entre 2016 e 2020, durando, pois, cinco anos.
Decidiu ainda a sentença recorrida que os factos provados nos presentes autos e os do Processo Comum Singular nº 183/18.3PBAGH, constituem um único crime prolongado, protelado, protraído, exaurido ou de trato sucessivo, e, como o tipo legal que se concluiu ter o arguido cometido é mais grave dada a moldura penal prevista para a respectiva punição, substituiu a pena aplicada ao arguido no Processo nº 183/18.3PBAGH, pela pena aplicada nestes autos, dando, para tanto, a seguinte explicação:
“(...) Isto posto, importa aqui considerar que o arguido foi já condenado no Processo 183/18.3PBAGH por um crime de tráfico de menor gravidade devido à prática de actos de tráfico cometidos entre 13 e 31 de Março de 2018, tendo sido dadas como provadas três vendas de haxixe a consumidores. Esse período temporal está incluído no lapso de tempo de que cuida este processo, sendo certo que aqui se deu como provado que o arguido já vinha traficando desde 2016 e continuou a fazê-lo até 2020.
Assim, e porque os factos desse e deste processo estão englobados numa unidade resolutiva, há que ter em conta que há já uma condenação com trânsito em julgado e que não pode ser violado o princípio ne bis in idem consagrado no artigo 29º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa.
O que dizer de tal matéria?
Na verdade, conforme resulta da factualidade destes autos e da dada como provada no Processo 183/18.3PBAGH, há clara unidade de resolução criminosa.
Isto é, as condutas em causa, homogéneas e sem qualquer hiato temporal com efeito cortante entre si, impõem a consideração, como já referido, de que estamos perante um crime prolongado, protelado, protraído, exaurido ou de trato sucessivo, o qual abrange as condutas de ambos os processos.
Ora, se assim é, impõe-se a ponderação da eventual violação do princípio ne bis in idem e do caso julgado por força do julgamento nos presentes autos.
Entendemos que a solução do caso sub judice, a fim de evitar a violação do mencionado princípio, é a mesma encontrada pelo art.º 79º, n.º 2, do Código Penal, que dispõe: “Se, depois de uma condenação transitada em julgado, for conhecida uma conduta mais grave que integre a continuação, a pena que lhe for aplicável substitui a anterior.”(...)”
Daqui resulta que o Tribunal a quo considerou que dos factos apurados nos presentes autos e dos factos apurados nos autos nº 183/18.3PBAGH resulta que o arguido praticou um só crime continuado de tráfico de estupefacientes e, como tal, deve ser punido.
Ora, quanto ao que se deve considerar como prática do crime de tráfico de estupefacientes, prevê-se no art.º 21º, nº 1 do D.L. nº 15/93, de 22/01 que:
“Quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos.” (sublinhados nossos)
Relativamente à caracterização deste tipo de crime reproduzimos aqui as considerações, completas e actuais, expendidas no Acórdão do STJ de 5/12/07, proferido no processo nº 07P3406, em que foi relator Raul Borges, in
www.dgsi.pt: “(...)A previsão legal do artigo 21º do DL 15/93, de 22-01, a exemplo do “antecessor” artigo 27º do Decreto-Lei nº 480/83, de 13-12, contem a descrição da respectiva factualidade típica, de maneira alargada, contendo o tipo fundamental, matricial. Trata-se de um tipo plural, com actividade típica ampla e diversificada, abrangendo desde a fase inicial do cultivo, produção, fabrico, extracção ou preparação dos produtos ou substâncias até ao seu lançamento no mercado consumidor, passando pelos outros elos do circuito, mas em que todos os actos têm entre si um denominador comum, que é exactamente a sua aptidão para colocar em perigo os bens e os interesses protegidos com a incriminação.
Não importa ao preenchimento deste tipo legal a intenção específica do agente, os seus motivos ou fins a que se propõe; o conhecimento do fim apenas pode interessar para efeitos de determinação da ilicitude do facto.
O tráfico de estupefacientes tem sido englobado na categoria do “crime exaurido”, “crime de empreendimento” ou “crime excutido”, que se vem caracterizando como um ilícito penal que fica perfeito com o preenchimento de um único acto conducente ao resultado previsto no tipo.
A consumação verifica-se com a comissão de um só acto de execução, ainda que sem se chegar à realização completa e integral do tipo legal pretendido pelo agente.
O conceito foi introduzido na nossa jurisprudência com o acórdão do STJ de 18-04-1996, CJSTJ 1996, tomo 2, 170, onde se refere que o crime exaurido é “ uma figura criminal em que a incriminação da conduta do agente se esgota nos primeiros actos de execução, independentemente de os mesmos corresponderem a uma execução completa, e em que a repetição dos actos, com produção de sucessivos resultados, é, ou pode ser, imputada a uma realização única”, isto é, “aquele em que o resultado típico se obtém logo pela realização inicial da conduta ilícita, de modo que a continuação da mesma, mesmo que com propósitos diversos do originário, se não traduz necessariamente na comissão de novas violações do respectivo tipo legal”.(...)
Trata-se de crimes que como as falsificações e outros, ficam perfeitos com a comissão de um só acto crime formal com antecipação de punição - para o crime de falsificação veja-se o acórdão do STJ de 15-02-2006, processo 4306/05-3ª.(...)
Como se referia no acórdão do STJ de 12-12-1991, BMJ, 412, 206, o crime é de perigo, em cuja punição relevam exigências de prevenção de futuros crimes.
O crime em causa é um crime de trato sucessivo, em que a mera detenção da droga é já punida como crime consumado, dada a sua vocação (é um crime de perigo presumido) para ser transaccionada - acórdão do STJ de 29-06-1994, CJSTJ1994, tomo2, 258.
O crime de tráfico de estupefacientes enquadra-se na categoria dos crimes de perigo abstracto: aqueles que não pressupõem nem o dano, nem o perigo de um concreto bem jurídico protegido pela incriminação, mas apenas a perigosidade da acção para uma ou mais espécies de bens jurídicos protegidos, abstraindo de algumas das outras circunstâncias necessárias para causar um perigo a um desses bens jurídicos.
O perigo presumido envolve-se na mera comprovação da detenção de uma determinada quantidade de substância tóxica, independentemente da real demonstração do perigo, ou o que dá no mesmo, da intenção de transmiti-la.
Cada uma das actividades previstas no preceito, sem mais, é dotada de virtualidade bastante para integrar o elemento objectivo do crime.
Trata-se de crime de perigo abstracto ou presumido, pelo que não se exige para a sua consumação a verificação de um dano real e efectivo; o crime consuma-se com a simples criação de perigo ou risco de dano para o bem jurídico protegido (a saúde pública na dupla vertente física e moral), como se refere nos acórdãos de 12-02-1986, BMJ 354, 331, de 30¬04-1986, BMJ 356, 166, de 23-09-1992, BMJ 419, 464, de 24-11-1999, BMJ 491, 88, de 01¬06-2004, CJSTJ 2004, tomo 2, 239, de 04-10-2006, processo 2549/06-3ª, de 11-10-2006, processo 3040/06-3ª, de 12-04-2007, processo 1917/06-5ª, de 19-04-2007, processo 449/07¬5ª.
Noutra perspectiva, trata-se de um crime pluriofensivo.
O normativo incriminador do tráfico de estupefacientes tutela uma multiplicidade de bens jurídicos, designadamente de carácter pessoal - a vida, a integridade física e a liberdade dos virtuais consumidores - visando ainda a protecção da vida em sociedade, o bem-estar da sociedade, a saúde da comunidade (na medida em que o tráfico dificulta a inserção social dos consumidores e possui comprovados efeitos criminógenos), embora todos eles se possam reconduzir a um bem geral - a saúde pública - pressupondo apenas a perigosidade da acção para tais bens, não se exigindo a verificação concreta desse perigo - ver acórdão do Tribunal Constitucional nº 426/91, de 06-11-1991, in DR, II Série, nº 78, de 02-04-1992 e BMJ 411,56 (seguido de perto pelo acórdão do TC nº 441/94, de 07-06-1994,, in DR, II Série, nº 249, de 27-10-1994): “O escopo do legislador é evitar a degradação e a destruição de seres humanos, provocadas pelo consumo de estupefacientes, que o respectivo tráfico indiscutivelmente potencia”.
Já no preâmbulo da Convenção Única de 1961 sobre os estupefacientes, concluída em Nova Iorque, em 31-03-1961 (aprovada para ratificação pelo Decreto-Lei nº 435/70, de 12¬09 (BMJ 200, 348) e ratificada em 30-12-1971) se referia a preocupação com a saúde física e moral da humanidade, reconhecendo a toxicomania como um grave mal para o indivíduo, constituindo um perigo social e económico para a humanidade.
Por seu turno, no preâmbulo do Decreto-Lei nº 420/70, de 3/09, referia-se terem-se presentes os perigos que o consumo de estupefacientes comportava para a saúde física e moral dos indivíduos e a sua não rara interpenetração com fenómenos de delinquência.
No preâmbulo do Decreto-Lei nº 430/83, de 13-12, que efectuou a adaptação do direito interno ao constante daquela Convenção de 1961 e da Convenção sobre as substâncias psicotrópicas de 1971, aprovada para adesão pelo Decreto nº 10/79, de 30-01, fazia-se referência a relatório coevo de um organismo especializado das Nações Unidas, onde se dizia: “A luta contra o abuso de drogas é antes de mais e sobretudo um combate contra a degradação e a destruição de seres humanos. A toxicomania priva ainda a sociedade do contributo que os consumidores de drogas poderiam trazer à comunidade de que fazem parte. O custo social e económico do abuso das drogas é, pois, exorbitante, em particular se se atentar nos crimes e violências que origina e na erosão de valores que provoca”(...)”.
O tipo-base deste crime caracteriza-se, assim, quanto à tipicidade das acções que o integram, como um tipo plural, com uma actividade típica ampla e diversificada, que abrange desde a fase inicial do cultivo, produção, fabrico, extracção ou preparação dos produtos ou substâncias até ao seu lançamento no mercado consumidor, passando por todos os elos do circuito e sendo todos os actos aptos a colocar em perigo os bens e os interesses protegidos pela incriminação.
Enquadra-se também na categoria de “crime exaurido” ou “crime de empreendimento”, na denominação alemã, ou ainda de “crime excutido”, porquanto o resultado típico se alcança logo com a realização inicial do iter criminis, tendo em conta o processo normal de actuação e desde que a droga não se destine exclusivamente a consumo.
O bem jurídico tutelado em primeiro lugar é a saúde pública, na sua dupla vertente física e moral, e num segundo plano a integridade física e moral dos consumidores, o que faz deste crime um crime de perigo abstrato, cujo preenchimento não exige para a respectiva consumação a verificação de um dano real ou efectivo ou sequer o perigo concreto do bem jurídico tutelado.
É ainda, quanto ao objecto da acção, um crime de mera actividade ou formal, cuja consumação se verifica pela mera execução de um comportamento humano, não se exigindo um resultado.
Ao nível da tipicidade subjectiva, o crime de tráfico de estupefacientes tem sido integrado pela jurisprudência no elenco dos crimes de trato sucessivo, em que existe uma unidade de resolução criminosa, ou “unidade resolutiva”, e uma conexão temporal entre os atos realizados.
O crime continuado, por seu turno, vem previsto no art.º 30º do Cód. Penal nos seguintes moldes:
”1 - O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.
2 - Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.”
Quanto ao que se deva entender por crime continuado, pronunciou-se, entre outros, o TRL, no seu acórdão datado de 1/06/2021, proferido no processo nº 9590/11.1TDLSB.L2-5, em que foi relator Jorge Gonçalves, in www.dgsi.pt, pela seguinte forma, que perfilhamos:
“(..) A lei substantiva penal vigente regula a problemática do concurso de crimes, do crime continuado e do crime único constituído por uma pluralidade de actos ou acções no artigo 30.º do Código Penal (..).
Da análise do referido preceito, verifica-se que o mesmo estabelece critérios de distinção entre unidade e pluralidade de infracções, a partir dos quais caberá à doutrina e à jurisprudência encontrarem as soluções mais adequadas, tendo em vista a multiplicidade de situações que se prefiguram.
Enquanto no n.º1 do artigo 30.º estabelece critérios relativos à problemática do concurso de crimes «tout court», no n.º2 regulam-se situações que também têm a ver com a pluralidade de crimes, mas que o legislador juridicamente unifica como um só crime.
Perfilha-se o chamado critério teleológico para distinguir entre unidade e pluralidade de infracções, sendo certo que o n.º1 do artigo 30.º sofre duas importantes ordens de restrições: os casos de concurso aparente de infracções e de crime continuado.
Nos casos de concurso aparente, são formalmente violados vários preceitos incriminadores, ou é várias vezes violado o mesmo preceito. Mas esta plúrima violação é tão-só aparente, porquanto resulta da interpretação da lei que só uma das normas tem cabimento, ou que a mesma norma deve funcionar uma só vez. Apontam-se diversas regras, das quais as mais indiscutidas são as da especialidade e da consunção, para delimitar estes casos.
Por sua vez, nos casos de crime continuado está em causa a prática repetida do mesmo tipo legal de crime, ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada de forma essencialmente homogénea e no quadro de uma solicitação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.
Este último elemento constitui o fundamento da unificação criminosa: a diminuição da culpa do agente, resultante da “cedência” a uma solicitação exterior. Por isso, sempre que a repetição da conduta criminosa seja devida a uma tendência da personalidade do agente, a quaisquer razões de natureza endógena, ou sempre que ocorra independentemente de qualquer solicitação externa, ou que decorra de oportunidade provocada ou procurada pelo próprio agente, haverá pluralidade de crimes e não crime continuado.
Saliente-se que o elemento unificador das condutas numa continuação criminosa consiste na diminuição de culpa do agente e não na unidade de resolução criminosa ou na homogeneidade da actuação delitiva. Esta última, assim como a proximidade temporal das condutas, é um elemento meramente indiciário da continuação criminosa, que deverá ser confirmado pela verificação de uma solicitação exterior mitigadora da culpa.
Como se assinala no acórdão do S.T.J., de 23 de Janeiro de 2008, processo 07P4830, a unidade de resolução criminosa nem sequer existe no crime continuado, pois o que caracteriza esta figura é precisamente a renovação de tal resolução perante as solicitações externas exercidas sobre o agente.
A propósito destas matérias ensina Eduardo Correia (Direito Criminal II, Reimpressão, Livraria Almedina, Coimbra – 1971, § 10.°, 35, p. 201 e seg.):
“O problema é evidentemente, o da determinação da ilicitude material. (...) para que uma conduta se possa considerar como constituindo uma infracção não basta, como sabemos, que seja antijurídica; é ainda necessário que seja culposa, que possa ser reprovada ao agente. Ora pode acontecer que o juízo concreto de reprovação tenha de ser formulado várias vezes em relação a actividades subsumíveis a um mesmo tipo legal de crime, a actividades, portanto, que encarnam a violação do mesmo bem jurídico. E encontramos, assim, a culpa como elemento limite da unidade de infracção; a unidade de tipo legal preenchido não importa definitivamente a unidade da conduta que o preenche; pois sendo vários os juízos de censura, outras tantas vezes esse mesmo tipo legal se torna aplicável e deverá, por conseguinte, considerar-se existente uma pluralidade de crimes.
Como, porém, determinar a existência de uma unidade ou pluralidade de juízos de censura?”
O critério será “ (...) o de considerar a forma como o acontecimento exterior se desenvolveu, olhando fundamentalmente à conexão temporal que liga os vários momentos da conduta do agente. E justamente no sentido de que para afirmar a existência de uma unidade resolutiva é necessária uma conexão temporal que, em regra e de harmonia com os dados de experiência psicológica, leva a aceitar que o agente executou toda a sua actividade sem ter de renovar o respectivo processo de motivação.”
E acrescenta (36, p. 203 e segs):
“(...) a unidade ou pluralidade de tipos legais a que pode subsumir-se uma certa relação da vida constitui o critério decisivo para fixar a unidade ou pluralidade de infracções. Mas, assim como da violação de uma só norma ou de um só artigo da lei penal não é lícito, sem mais, concluir pela realização de um só tipo e portanto de um só crime, do mesmo modo a violação de várias disposições pode só aparentemente indicar o preenchimento de vários tipos e a correspondente existência de uma pluralidade de infracções. E por aqui somos conduzidos ao estudo do chamado concurso aparente de infracções.”
Por sua vez, em contraposição às situações em que se verificam várias resoluções criminosas – e de todas as vezes que o agente resolve agir contra o comando de uma norma jurídica, tal significa que, de todas essas vezes, esse comando se mostrou ineficaz -, mas em que se admite, nos pressupostos do artigo 30.º, n.º2, a sua unificação num único crime continuado -, temos aquelas em que, a existência de várias condutas objectivamente típicas agregadas em função de uma única resolução criminosa, conduzem ao cometimento de um único crime. Mas para que tal aconteça necessário é que se mostre provada a existência de uma única resolução criminosa.(...)
Como se refere no acórdão do S.T.J., de 20 de Setembro de 2006, processo 03P4425, são dois os critérios que têm sido seguidos e defendidos pela doutrina para encontrar a forma de distinguir as situações em que se deve considerar um só crime constituído por uma pluralidade de actos ou acções e a figura do crime continuado.
Lê-se nesse aresto (transcrição sem notas de rodapé):
«O primeiro - critério objectivo - parte da posição sustentada por Carrara, o qual após advertir que a unidade de tempo não tem carácter absoluto humanamente considerada, nos diz, com aparente ambiguidade, que o critério distintivo da continuação ou descontinuidade criminosa reside no seguinte: «se os actos são materialmente continuados, com mais facilidade se dirá que não são juridicamente continuados; se constituem diversos momentos de uma só acção criminal teremos um crime único. Se são materialmente descontinuados, de modo a que haja um intervalo que represente interrupção da acção criminal, poder-se-á aceitar mais facilmente a ideia, não só de vários actos, mas também de várias acções distintas e excluir assim o crime único para reconhecer a ocorrência de vários crimes, caso existam diversas resoluções; o crime continuado só ocorrerá se se verificou unidade de determinação».
Daqui se deduz que para o insigne (...) é na descontinuidade que se encontra o critério distintivo entre o crime continuado e o crime único com pluralidade de actos.
O segundo - critério subjectivo - tem por referência a intenção do agente, sendo seu lídimo representante Pilitu.
Haverá crime único, com pluralidade de actos, caso ocorra unidade de desígnio e intenção criminosa. Por sua vez, estaremos perante crime continuado se se verificar unidade de desígnio e pluralidade de resolução criminosa.
Fazendo apelo à conjugação destes dois critérios vêm-se orientando a doutrina e a jurisprudência alemãs. Assim, refere Jescheck que: “deve-se ter por verificada uma acção unitária quando os diversos actos parcelares correspondem a uma única resolução de vontade e se encontram tão vinculados no tempo e no espaço que para um observador não interveniente são tidos como uma unidade”.
Entre nós a voz autorizada do Professor Eduardo Correia parece que se inclinou no sentido do critério objectivo (mitigado, já que não prescinde de considerações de índole subjectiva, por certo face às dificuldades de prova sobre a intenção do agente), ao referir que: “... verificado que entre as actividades do agente existe uma conexão no tempo tal que, de harmonia com a experiência comum e as leis psicológicas conhecidas, se deva presumir
tê-las executado a todas sem renovar o respectivo processo de motivação, estamos em presença de uma unidade jurídica, de uma só infracção”.
Por sua vez, a jurisprudência dos nossos tribunais superiores não é pacífica, já que enquanto nalgumas decisões se vem optando pelo critério subjectivo, noutras vem-se enveredando pelo critério objectivo.»
A nosso ver, conforme afirmado diversas vezes pela jurisprudência, existe unidade de resolução criminosa quando, segundo o senso comum sobre a normalidade dos fenómenos psicológicos, se puder concluir que as várias acções foram executadas em resultado de uma só deliberação, sem ter o agente de renovar o seu propósito e respectivo processo de motivação.
Não é esse o caso em relação ao arguido/recorrente A, como não é relativamente a qualquer dos arguidos nos presentes autos.
Quanto ao crime continuado, refere Figueiredo Dias (Direito Penal Português, As consequências do crime, Aequitas, 1993, pág. 296), integrar uma unidade jurídica construída por sobre uma pluralidade efectiva de crimes. Perante uma repetição de factos de significado penal equivalente, com um nexo de continuidade, a ordem jurídica estipula a consideração dessa continuação de delitos como um único facto, no sentido jurídico-penal, ou seja, como uma unidade jurídica de acção, a sancionar da mesma forma que o concurso ideal.
Por sua vez, Eduardo Correia refere (ob. cit., págs. 210 e 211) que «pressuposto da continuação criminosa será verdadeiramente, a existência de uma relação que, de fora, e de maneira considerável, facilitou a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito».
Em suma, na base do instituto do crime continuado encontra-se um concurso de crimes, pois que aquele se traduz objectivamente na realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico.
Certo é, porém, que o instituto do crime continuado exige, obviamente, algo mais, para além da ocorrência de um concurso de crimes, pois como se vê da segunda parte do n.º 2 do artigo 30.º, exige-se que aquele concurso (realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crimes) seja executado por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.
Deste modo, verifica-se que, fundamentalmente, são razões atinentes à culpa do agente que justificam o instituto do crime continuado. É a diminuição considerável desta, a qual segundo o texto legal deve radicar em solicitações de uma mesma situação exterior que arrastam aquele para o crime, e não em razões de carácter endógeno. Essencial será, verdadeiramente, a existência de uma relação que, de fora, e de maneira considerável, facilite a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito.
Toda a construção do crime continuado apoia-se, assim, na diminuição considerável da intensidade da culpa que resulta de uma conformação especial do momento exterior da conduta que concorre para determinar o agente à resolução de renovar a prática do mesmo crime. A reiteração é devida mais a uma disposição das coisas do que a uma tendência da personalidade do agente.
Perante culpa significativamente diminuída, entende o legislador apenas ser admissível um só juízo de censura, e não vários, como seria de fazer, o que se alcança mediante a unificação jurídica em um só crime (continuado) de comportamento ou comportamentos que violam diversas normas incriminadoras ou a mesma norma incriminadora por mais de uma vez.
Por outro lado, vem entendendo a jurisprudência do S.T.J. que a proximidade ou conexão temporal entre as diversas condutas do agente constitui elemento de relevo para a verificação da continuação criminosa.(...)”
Transpondo estes ensinamentos para o caso dos autos, verifica-se que não existe matéria de facto suficiente para podermos concluir que estamos em presença de um crime continuado de tráfico de droga relativamente aos factos apurados em ambos os processos.
É verdade, como é referido pelo Tribunal a quo, que os crimes praticados pelo arguido têm todos a mesma natureza, foram praticados com um modus operandi muito semelhante, num período compreendido entre 2016 e Março de 2020, durante o qual também ocorreram os factos apurados no processo nº 183/18.3PBAGH.
No entanto, o arguido sofreu uma condenação pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes a 18 de Dezembro de 2018, tendo-lhe sido aplicada uma pena de 12 meses de prisão, suspensa por 12 meses no processo nº 183/18.3PBAGH, por factos ocorridos a 31 de Março de 2018.
Sucede que em parte nenhuma da decisão recorrida se discute se esta condenação interrompeu ou não a resolução criminosa do arguido, que foi considerada como uma só.
Será que após esta condenação não temos uma nova resolução criminosa, incompatível com a afirmação de um nexo de coesão entre todos os crimes?
Por outro lado, o crime continuado pressupõe que a conduta foi executada mediante solicitação de uma mesma situação exterior que diminuiu consideravelmente a culpa do agente, o que também não se deu como provado no caso dos autos, pois em parte alguma da sentença recorrida se refere a diminuição da culpa do arguido na prática dos factos apurados.
Também não se apurou na decisão em apreço que a reiteração da actividade criminosa do arguido resultou de uma pressão «exterior», não sendo possível identificar quais as circunstâncias que actuaram como razões exógenas determinantes de uma culpa significativamente diminuída.
A tudo isto acresce, como refere o Ministério Público junto deste Tribunal da Relação, que o juiz a quo também não explicou como é que procedeu à substituição de uma pena de prisão suspensa na sua execução por uma pena de prisão efectiva, sem que antes tivesse procedido à revogação daquela suspensão, em obediência ao exigido pelo art.º 56º do Cód. Penal.
É que em vez de proceder à substituição da pena aplicada ao arguido no processo nº 183/18.3PBAGH pela pena aplicada nos presentes autos, parece que a decisão recorrida procedeu ao cúmulo jurídico das penas, ao arrepio do previsto no art.º 79º, nº 2 daquele diploma.
Da conjugação dos arts.º 30º e 79º, nº 2 do Cód. Penal decorre que uma vez descobertos novos factos que se possam encontrar numa situação de continuação criminosa com outros já julgados, se impõe previamente apurar se aqueles integram efetivamente a continuação, numa só unidade jurídica criminosa, o que não dispensa o juízo sobre uma menor gravidade da culpa, ditado pela menor exigibilidade decorrente da persistência de um mesmo quadro de solicitação externa, na realização das várias condutas que, executadas de forma essencialmente homogénea, atinjam o mesmo bem jurídico ( cf., neste sentido, o Acórdão do TRC, datado de 27/09/17, proferido no processo nº
1432/16.8T9PBL.C1, em que foi relatora Maria José Nogueira, in www.dgsi.pt).
Ora, no caso que nos ocupa o Tribunal a quo não procedeu à indispensável ponderação sobre a existência de um eventual nexo psicológico, de coesão, entre as condutas criminosas julgadas no âmbito do processo nº 183/18.3PBAGH e as que estão em causa neste segundo processo.
Impõe-se, assim, concluir que, conforme decorre do próprio texto da decisão, esta enferma do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no art.º 410º, nº 2, alínea a) do Cód. Proc. Penal.
Em consequência, também por esta razão se impõe decidir pelo reenvio parcial dos autos, nos termos dos arts.º 426º e 426º-A do do Cód. Proc. Penal, para julgamento dos factos relativos à formulação de um juízo sobre a eventual verificação de uma situação de continuação criminosa entre as condutas já julgadas no âmbito do processo nº 183/18.3PBAGH e as que estão em causa nos presentes autos, factos esses que, uma vez fixados, deverão determinar, à luz do direito aplicável, os termos da correspondente decisão.

4. DECISÃO:
Pelo exposto, acordam os Juízes que integram esta 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em:
1- Proceder à correcção do lapso material constante da decisão recorrida, eliminando da mesma os seguintes factos não provados:
- O arguido BBB se dedicava à prática reiterada do crime de tráfico de estupefacientes, fazendo disso modo de vida.
- À data dos factos, o arguido BBB não possuía qualquer actividade profissional, seja como trabalhador dependente, seja como trabalhador independente, não auferindo qualquer subsídio ou pensão.
- O arguido BBB vivia, assim, dos proventos que obtinha com a sua actividade de compra e venda de produto estupefaciente, Cannabis (Resina), bem sabendo serem obtidos de forma ilícita, utilizando-os para fazer face às suas despesas diárias e pessoais.(...)”;
2- Declarar nula a sentença recorrida por insuficiência da matéria de facto
para a decisão e por contradição insanável entre os factos provados em 12 e a fundamentação da matéria de facto provada, nos termos previstos no art.º 410º, nº 2, alíneas a) e b) do Cód. Proc. Penal, e, em consequência, determinam o reenvio do processo para novo julgamento, nos termos do art.º 426º, nº 1 do mesmo diploma, restrito à apreciação das seguintes questões:
- saber se o arguido AAA se dedicava à prática reiterada do crime de tráfico de estupefacientes, fazendo disso modo de vida;
- determinar os factos relevantes e necessários à formulação de um juízo sobre a eventual verificação de uma situação de continuação criminosa entre as condutas já julgadas no âmbito do processo nº 183/18.3PBAGH e as que estão em causa nos presentes autos, factos esses que, uma vez fixados, deverão determinar uma decisão em conformidade com o direito aplicável.
Sem custas ( arts.º 513º do Cód. Proc. Penal ).
Lisboa, 19 de Março de 2024
(texto elaborado em suporte informático e integralmente revisto pela relatora)
Carla Francisco
(Relatora)
Manuel José Ramos da Fonseca
Luísa Oliveira Alvoeiro
(Adjuntos)
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