Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa
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    Jurisprudência da Relação Criminal
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 - ACRL de 02-11-2011   Alteração substancial e não substancial de factos. Negligência médica.
I. Nos termos e para os efeitos do artº1º, al.f) do CPP, a noção de crime diverso pode reportar-se ao mesmo tipo legal, desde que existam elementos diferenciadores essenciais em relação aos factos descritos na acusação ou na pronúncia que determinem uma diminuição das garantias de defesa.
II. Por esta razão, e a fim de prevenir prejuízos graves para a preparação da defesa, faz-se equivaler à imputação ao arguido de um “crime diverso” a alteração factual que consistir no acrescentamento, aos factos descritos na acusação, de um facto (novo), sem o qual o arguido não poderia ser criminalmente condenado.
III. No caso, os factos pelos quais a arguida foi condenada são naturalisticamente diferentes dos que lhe eram imputados na acusação, os actos de execução em que se manifestam também são diversos, com uma imagem social autonomizável (antes correspondendo a uma acção contrária às legis artis, agora a uma omissão de um dever de vigilância) e foram praticados num período temporal que, apesar de próximo, é significativamente distinto – o que determinou a impossibilidade da arguida se defender destes novos factos.
IV. A alteração dos factos e a conjugação destes com os factos não provados e a consequente condenação, não pode deixar de ser considerado como uma decisão surpresa que afecta as garantias de defesa e põe em causa as garantias de um processo justo e leal, assim como a imprescindível tutela da confiança, como elementos de um processo equitativo, tanto mais que, não fosse a alteração de factos, a arguida seria absolvida.
Proc. 13375/02.8TDLSB.L1 3ª Secção
Desembargadores:  Jorge Raposo - Fernando Ventura - -
Sumário elaborado por Ivone Matoso
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Recurso 13375/02.8TDLSB.L1
4º Juízo Criminal de Lisboa

Acordam – em conferência – na 3ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO
Nos presentes autos, em processo comum com intervenção do tribunal singular, M, casada, médica, nascida em 00 de … de 19.., filha de … e de ….., natural da freguesia de S. Jorge de Arroios, Lisboa, de nacionalidade portuguesa sendo portadora do bilhete de identidade com o nº…. e residente …. e M, viúva, …, enfermeira, nascida …, filha de …. e de …, natural da freguesia de …., de nacionalidade portuguesa sendo portadora do bilhete de identidade nº… e residente na Rua …. foram julgadas e, por decisão de 20.6.08:
 A arguida M absolvida da prática como autora material de um crime de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos em violação das leges artis previsto e punido pelo artigo 150º nº1 e nº2 do Código Penal e condenada pela prática como autora material de um crime de homicídio por negligência previsto e punido pelo artigo 137º nº1 do Código Penal na pena de duzentos e quarenta dias de multa à taxa diária de vinte e dois euros, no montante global de €5280,00.
 A arguida M condenada pela prática como autora material de um crime de homicídio por negligência previsto e punido pelo artigo 137º nº1 do Código Penal na pena de duzentos e vinte dias de multa à taxa diária de oito euros no montante global de €1760,00.
Relativamente ao pedido de indemnização cível deduzido pelos assistentes N e O e a lesada C, após reabertura da audiência para julgamento do pedido de indemnização civil determinada pelo Tribunal da Relação de Lisboa foi proferida decisão de 21.3.2011:
a) Condenando as demandadas M e M solidariamente a pagar aos assistentes N e O a importância de sessenta e cinco mil euros a título de indemnização pela perda do direito à vida de C acrescida de juros à taxa legal e anual de 4% e desde a data da presente decisão até integral pagamento.
b) Condenando as demandadas M e M solidariamente a pagar aos assistentes O e N a importância de vinte e cinco mil euros a título de indemnização pelos danos não patrimoniais (sofrimento, dor e presciência de morte) de C antes de morrer acrescida de juros à taxa legal e anual de 4% e desde a data da presente decisão até integral pagamento.
c) Condenando as demandadas M e M solidariamente a pagar à assistente O a importância de trinta mil euros a título de indemnização por danos não patrimoniais acrescida de juros à taxa legal e anual de 4% e desde a data da presente decisão até integral pagamento.
d) Condenando as demandadas M e M solidariamente a pagar ao assistente N a importância de trinta mil euros a título de indemnização por danos não patrimoniais acrescida de juros à taxa legal e anual de 4% e desde a data da presente decisão até integral pagamento.
e) Absolvendo as demandadas M e M de todo o demais peticionado pelos assistentes O e N e demandante C.
Relativamente à co-arguida e demandada M foi declarado extinto o procedimento criminal por prescrição e homologada desistência de instância cível.
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Interpuseram recurso destas decisões, quanto à matéria criminal, os assistentes N, O e C e a arguida M e da questão cível, ambas as arguidas.
Transcrevem-se as conclusões dos recursos e das respostas:
1.1 Recurso da arguida M quanto à parte criminal:
1. No dia 28.08.2002, faleceu no Hospital Egas Moniz o doente C, que se encontrava internado na enfermaria do 8º Piso daquele hospital central, ao cuidado e vigilância da Arguida M;
2. No fatídico dia, estavam ao serviço de urgência vários médicos, de várias especialidades médicas incluindo cirurgia, como resulta dos documentos junto aos autos, sendo certo que não era a Arguida a única médica de serviço ao serviço de urgência e, muito menos, de serviço ao hospital, como se pretende fazer crer na sentença;
3. A Arguida Recorrente, médica anestesista, estava de serviço à urgência de anestesia do Hospital Egas Moniz, tendo contactado com o doente C apenas na unidade de recuperação pós anestésica (recobro), tendo dado alta ao mesmo para a enfermaria, após verificação do seu estado de saúde;
4. A sentença recorrida é nula porquanto condenou a Arguida exclusivamente por factos novos apurados em sede de audiência de julgamento, tendo sido comunicada à Arguida uma alteração de factos, alegadamente não substancial, quando, na verdade, a alteração era substancial, sem que esta tenha dado o seu consentimento na continuação da audiência, em clara violação do disposto no art.º 359º do CPP e respectivo formalismo.
5. É da própria sentença recorrida que se extrai a substancialidade da alteração de factos comunicada, pois a não ter ocorrido, a omissão do dever de cuidado descrita nunca conduziria à afirmação da responsabilidade penal da arguida M, sendo certo que a Arguida Recorrente seria absolvida da prática de todos os crimes de que foi pronunciada, não fora a alteração de factos comunicada, o que demonstra a substancialidade da mesma;
6. Na sentença ora impugnada dá-se como provado que a Arguida (ora Recorrente) violou os seus deveres por, após ter prescrito medicação pelo telefone, não ter ido à enfermaria verificar o estado do doente, após prescrição de medicamento pelo telefone, o que é um pedaço de vida diferente do que se revela na pronúncia;
7. Ora, no caso, é manifesto que houve alteração dos factos pois, comparadas a acusação e a sentença, constata-se, para além do mais, que o modo de actuação punível da Recorrente é diferente (na sentença) daquele que é descrito na pronúncia, sendo no primeiro caso (pronuncia) a descrição de uma conduta por acção e, no outro (sentença após alteração substancial de factos), a descrição de conduta omissiva;
8. No caso concreto, há crime diverso, uma vez que, os factos novos, diferindo essencialmente ou estruturalmente aos que serviram de suporte à acusação, transmitem agora uma realidade diferente e impõem, em consequência, uma diferente avaliação social, sem prejuízo de manter-se eventualmente a sua qualificação jurídica.
9. Ao pedaço individualizado da vida, trazido pela pronúncia, foram juntos em audiência novos factos e dessa alteração resultou uma imagem ou valoração não idênticas àquela criada pelo acontecimento descrito na acusação, ou que ponha em causa a defesa, estaremos perante uma alteração substancial dos factos.
10. Ínsito ao instituto da alteração substancial de factos prevista no art.º 359º do CPP encontra-se subjacente o princípio do contraditório, o qual, encarado sob o ponto de vista do arguido, pretende assegurar os seus direitos de defesa, com a abrangência imposta pelo art. 32.º, n.º 1 e n.º 5 da Constituição da República, no sentido de que nenhuma prova deve ser aceite em audiência, nem nenhuma decisão deve ser proferida, sem que previamente tenha sido precedida de ampla e efectiva possibilidade de ser contestada ou valorada pelo sujeito processual contra o qual aquelas são dirigidas;
11. Também a propósito convém ter presente o princípio do acusatório consagrado no citado art. 32.º, n.º 5, da C. Rep. e a subsequente vinculação temática do tribunal, como efeito consubstanciador da identidade, unidade ou indivisibilidade do objecto do processo penal a partir do objecto da acusação – veja-se o Ac. TC n.º 132/92 [Acórdãos do Tribunal Constitucional, Vol. XXII, p. 361]
12. O princípio da proporcionalidade (art.º 18º da CRP) impõe que a restrição/compressão aos direitos fundamentais se há-de fazer pelo mínimo indispensável ao exercício de outros direitos fundamentais.
13. A vinculação temática é também justificada pela necessidade de assegurar todas as garantias à defesa do arguido, escorada no princípio da presunção de inocência: .O processo penal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso., proclama o n.º 1 do art.º 32º da CRP, o que impede arbitrários alargamentos da actividade cognitória e decisória do tribunal, sendo inconstitucional uma interpretação contrária a tal princípio, aliás que é – mal – feita pelo Tribunal a quo;
14. No caso dos autos, a verdade é que a diversidade é manifesta: não fora a alteração de factos e nem sequer haveria crime, donde o crime pelo qual a Arguida, aqui Recorrente, foi condenada é – necessária e consequentemente - diverso, ou antes, novo.
15. Acresce que a valorização social da conduta descrita na pronúncia nada tem a ver com a situação da vida descrita após a alteração de factos: Uma coisa é um médico anestesista dar alta do recobro a um doente de forma precipitada, como grosso modo é dito na pronúncia. A pretensa violação de um dever de cuidado dá-se por acção, isto é, o médico adopta um comportamento positivo, consubstanciado na alta a um doente sem critérios médicos que a validassem. Outra coisa, completamente diferente, é afirmar-se a conduta de um médico ao serviço da urgência de uma unidade hospitalar que, após prescrever fármaco pelo telefone, não cuida de saber se o mesmo fez efeito, nem vai junto do doente para se certificar dos resultados clínicos de tal prescrição (como é descrito na sentença). A conduta assim descrita na sentença é (aqui sim) por omissão, sendo que a valorização social é, também ela, outra.
16. Como tem vindo a ser jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal de Justiça, há crime diverso quando há imputação de um crime por acção e condenação por omissão (cf. acórdão do STJ de 31.01.1990);
17. A sentença recorrida refere que os factos descritos na pronúncia não permitiriam uma condenação, donde esta era manifestamente infundada e deveria ter sido rejeitada aquando do recebimento e saneamento dos autos, sendo necessária à sanação da acusação / pronúncia manifestamente insuficiente na fase de julgamento uma alteração substancial de factos.
18. De igual modo, o instituto da alteração substancial dos factos não serve para viabilizar uma acusação pública desprovida dos factos relativos ao modo como o crime foi cometido (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 16.04.1997).
19. No caso dos autos, não só o julgador não cumpriu o disposto no art.º 359º do CPP, por a alteração de factos comunicada ser substancial, como – consequentemente – não pôde a Arguida, ora Recorrente, manifestar a sua concordância ou discordância (expressa) na continuação da audiência.
20. Acresce que a interpretação do Tribunal a quo, segundo a qual a alteração comunicada dos factos é não substancial e, revelando na sentença que, não fora a alteração nem sequer havia crime, é inconstitucional, por violação flagrante e grave do art.º 32º n.º 5 da CRP, que prevê o principio do acusatório, na medida em que não pode o Juiz de Julgamento substituir-se à autoridade judiciária competente – MP – na investigação de crimes, devendo ao Arguido ser assegurado o cumprimento escrupuloso do principio do contraditório.
21. Assim, e dado que se verifica alteração substancial dos factos, o processo deverá retroceder à audiência, depois da produção da prova, para que o juiz presidente, dando cumprimento ao disposto no art. 359º do C.P.P., comunique aos sujeitos processuais aquela alteração, a fim de estes se pronunciarem sobre a mesma, nos termos atrás expostos. Dado que este formalismo não foi respeitado, ocorre a nulidade da sentença prevista na alínea b) do art. 379º do CPP.
22. Tal nulidade, por não integrar o catálogo das insanáveis do art. 119.º e não estando especificadamente prevista como tal, está dependente de ser suscitada, podendo sê-lo em sede de recurso – cfr. art. 120.º, n.º 1 e 379.º, n.º 2.
23. É nula a sentença quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento (alínea c) do art.º 379º do CPP), e por não ter decidido sobre questões que poderia e deveria ter conhecido, designadamente sobre o facto de a Arguida, aqui Recorrente, no dia 28.08.2002 pelas 19:30 horas, se encontrar de urgência à unidade de recobro do Hospital Egas Moniz, a acompanhar anestesia a criança que seria objecto de intervenção cirúrgica, factos esses que são relatados na fundamentação os quais nem sequer são dados como provados ou não provados, apesar de ter sido objecto de apreciação em audiência e na própria fundamentação da decisão recorrida;
24. Encontra-se junto aos autos, e foi apreciado em julgamento, o documento de fls.1659 e sgts. dos autos, nos termos do qual e em síntese, se constata que a Arguida, aqui Recorrente, interveio no acompanhamento de anestesia a menor que seria sujeita a cirurgia, desde a preparação até ao acordar, isto é desde pelo menos as 19:30 minutos (preparação) até às 20:45 horas (alta da sala cirúrgica para o recobro).
25. Da sentença não há qualquer pronúncia quanto a estes factos, os quais, repete-se, foram objecto de produção de prova, quer documental (fls. 1.659 e sgts) quer testemunhal (testemunha F) e, logo, poderiam (deveriam!) ter sido apreciados no sentido de serem dados como provados ou não provados, pois que até estava em causa eventual causa de exclusão da culpa (art.º 36º do Código Penal);
26. A omissão de pronúncia só se verifica quando o juiz deixa de se pronunciar sobre questões que lhe foram submetidas pelas partes ou de que deve conhecer oficiosamente, entendendo-se por questões os problemas concretos a decidir e não os simples argumentos, opiniões ou doutrinas expendidos pelas partes na defesa das teses em presença. (cfr. Acs de 16-11-00, proc. n.º 2287/00-7, de 28-3-00, proc. n.º 126/00, de 14-2-02, proc. n.º 3732/01-5, de 16-01-03, proc. n.º 3569/02-5, de Ac. de 15/12/2005, proc. n.º 2951/05-5 e de 27.4.06, proc. n.º 1287/06-5, os quatro últimos com o mesmo relator)
27. De facto, há omissão de pronúncia quando o tribunal deixa de se pronunciar sobre questão que devesse apreciar, sendo certo que um facto levado a fundamentação terá, necessariamente, de ter sido apreciado e decidido sobre a sua prova ou não prova, sendo que tal constitui o vício enunciado no art.º 379º alínea c) do CPP, o qual determina a nulidade da sentença.
28. Foi incorrectamente julgado o facto descrito sob o n.º 72, porquanto a Arguida M, no telefonema realizado à Arguida Recorrente pelas 19:30 horas do dia 28.08.2002, não transmitiu ou referiu quaisquer queixas de falta de ar manifestadas pelo doente C;
29. Imporia decisão diversa, de acordo com as regras da experiência comum, bem como da análise do documento de fls. 28 do apenso contendo os elementos clínicos do doente C, bem como do depoimento do Dr. A, acima transcrito e identificadas as passagens concretas da gravação, o facto n.º 72 teria de ser dado como não provado, na parte em que se refere à transmissão de queixas de falta de ar, pela Arguida M, o que nunca aconteceu, sendo certo que tendo o telefonema a este médico sido posterior ao realizado à Arguida Recorrente, tais queixas teriam sido também relatadas;
30. O facto 93 (por referencia aos factos 73 e 74) foi incorrectamente julgado, uma vez que sobre a Arguida aqui Recorrente não impendia qualquer dever objectivo ou subjectivo de se abster de prescrever substancia calmante a um doente cujo estado clínico de ansiedade não revelava qualquer sinal de urgência, nem tinha o dever de se deslocar à enfermaria ou promover pelo reenvio do doente para a unidade de recobro;
31. Imporia decisão diversa da recorrida, isto é ser dado como não provado o facto n.º 93 (por referencia aos factos 73 e 74) a análise cuidada dos depoimentos das testemunhas J, C e L, supra transcritos acima transcrito e identificadas as passagens concretas da gravação, bem como dos documentos de fls. 187 e 197 do Apenso I.
32. Os vícios da decisão sobre a matéria de facto são conhecidos oficiosamente pelo tribunal de recurso, mesmo que este se encontre limitado à matéria de direito (acórdão do plenário das secções criminais do STJ n.º 7/95).
33. O tribunal não deu como provados ou não provados todos aqueles factos que, sendo relevantes para a decisão da causa, tenham sido alegados ou resultado da discussão, que constituam o objecto da discussão da causa, ou seja os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência, bem como todas as soluções jurídicas pertinentes, independentemente da qualificação jurídica dos factos resultante da acusação ou da pronúncia, segundo o art. 339.º, n.º 4 do CPP;
34. Nomeadamente, o Tribunal a quo não dá como provados factos que sustentem de forma suficiente e para lá de qualquer dúvida a fonte da obrigação de cuidado da Arguida Recorrente e a sua consequente violação, pois que nos termos da sentença qualquer outro médico do hospital Egas Moniz, de serviço entre as 13:00 horas e as 22:00 horas do dia 28.08.2002, poderia ser responsabilizado por conduta idêntica à imputada à Arguida Recorrente;
35. Tal ausência de factos implica a verificação do vício previsto na alínea a) do n.º 2 do art.º 410º do CPP, sendo quanto a esta matéria totalmente insuficiente a matéria de facto para a decisão recorrida;
36. A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, verifica-se quando, analisada a matéria de facto, se chegue a conclusões irredutíveis entre si e que não possam ser ultrapassadas ainda que com recorrência ao contexto da decisão no seu todo ou às regras de experiência comum.
37. Na sentença recorrida os factos provados n.ºs 28 e 29 são desmentidos e contraditados pelos factos não provados V e XXVII, o que implica necessária e consequentemente o cometimento do vício previsto na alínea b) do n.º 2 do art.º 410º do CPP.
38. Na sentença recorrida o facto provado n.º 95 é frontalmente contraditório com o facto não provado XXIX. É um sim e um não à mesma realidade, o que implica necessária e consequentemente o cometimento pelo Tribunal a quo do vício previsto na alínea b) do n.º 2 do art.º 410º do CPP.
39. O erro notório na apreciação da prova (al. c) do n.º 2 do art. 410.º do CPP) «constitui uma insuficiência que só pode ser verificada no texto e no contexto da decisão recorrida, quando existam e se revelem distorções de ordem lógica entre os factos provados e não provados, ou que traduza uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável, e por isso incorrecta, e que, em si mesma, não passe despercebida imediatamente à observação e verificação comum do homem médio (…).
40. O vício tem de resultar, como se referiu, do texto da decisão recorrida, «por si só ou conjugada com as regras da experiência comum», isto é, sem a utilização de elementos externos à decisão (salvo se os factos forem contraditados por documento que faça prova plena), não sendo, por isso, admissível recorrer a declarações ou a quaisquer outros elementos que eventualmente constem do processo ou até da audiência» (Ac. do STJ de 17-03-2004, Proc. n.º 2612/03).
41. Na realidade, perante tal factualidade e afirmações produzidas na sentença, designadamente a fls. 1.794 a 1.800, supra transcritas, não poderia a Mma. Juiz a quo considerar que a Arguida Recorrente, com culpa, tenha violado um qualquer dever objectivo de cuidado, sem que a mesma colida com a descrição da conduta da Arguida M, desde logo por esta nunca ter evidenciado qualquer situação de urgência relacionada com o doente C, dado que se assim fosse será chamado o cirurgião de urgência e não a Arguida Recorrente (cf. fls. 187 do Apenso I), sendo incontornável que do texto da decisão recorrida resulta o vício previsto na alínea c) do n.º 2 do art.º 410 do CPP, traduzido no erro notório na apreciação da matéria de facto e que conduziu à injusta decisão proferida contra a Arguida Recorrente;
42. Dispõe a Constituição no n.º 2 do seu art. 32.º, sob a epígrafe 'garantias do processo criminal', que «todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa», preceito que se identifica em geral, com as formulações do princípio da presunção de inocência constantes da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, da Declaração Universal dos Direitos do Homem (de 10.l2.48, DR IS-A de 9.9.78, art. 11.º, n.º 1), na Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (de 4.4.50, Lei n.º 65/78, de l3 de Outubro, art. 6.º, n.º 2) e do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 14.º, n.º 2).
43. O princípio da presunção de inocência constitui, assim, uma decorrência dos direitos à liberdade e à dignidade, à luz dos quais a possibilidade de submeter a consequências penais alguém que não praticou qualquer tacto criminoso, traduz uma situação intolerável e um limite absoluto à prossecução dos fins estaduais de administração da justiça.
44. O Estado não pode prescindir, em processo penal, em que como se dirimem interesses fundamentais do viver em sociedade, duma averiguação, o total do objecto do processo, com o correspondente encargo para o Tribunal de averiguação da verdade material. Não sendo um fim legítimo a condenação, baseada em mera probabilidade, a incerteza dos factos não consente a sua divisão, para distribuição do ónus de prova, consoante a parte a que lhe aproveita.
45. O princípio da presunção de inocência encerra uma ponderação cuja necessidade resulta da aceitação e do reconhecimento de que a verdade processual afasta-se, em muitos casos, da verdade histórica, por esta ser, em muitas situações, inatingível ou, pelo menos, não demonstrável.
46. Em processo penal, a justiça, perante a impossibilidade de uma certeza, encontra-se na alternativa de aceitar, com base em uma probabilidade ou possibilidade, o risco de absolver um culpado e o risco de condenar um inocente. A solução jurídica e moral só pode ser uma: deve aceitar-se o risco de absolvição do culpado e nunca o da condenação de um inocente.» (Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal. vol. 1º, 1986, pág. 216).
47. «O princípio da presunção de inocência surge articulado com o tradicional princípio in dubio pro reo. Além de ser uma garantia subjectiva, o princípio é também uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não tiver a certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa». [Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª Edição, pág. 203]
48. A culpa da Arguida não pode ser afirmada, como resulta da sentença, pelo conhecimento que – na data do julgamento – se tem do resultado verificado: a morte do doente C;
49. Para se afirmar a culpa da Arguida Recorrente seria necessário ficcionar o conhecimento desta da situação clínica do doente, à data dos factos, com base nos contactos que teve com o doente, e em face da informação que lhe foi sendo veiculada, designadamente pela Arguida M que, até às 21:00 horas do dia 28.08.2002 , não contactou com nenhum médico evidenciando qualquer sinal de alarme ou de emergência do estado clínico do doente;
50. Isto é, com base nos conhecimentos da Arguida Recorrente era impossível para esta prever o desfecho fatal, requisito essencial do tipo de crime de homicídio por negligência, facto que impediria a sua condenação pela prática deste crime;
51. Deste modo, a decisão proferida pelo Tribunal a quo, condenando a Arguida Recorrente nos termos em que o faz é ilegal, porque viola o princípio basilar de um sistema judicial próprio de um Estado de Direito Democrático: o princípio da presunção de inocência.
52. Acresce que, a interpretação dos factos que é feita na sentença recorrida, e atendendo à fundamentação jurídica da decisão é, além do mais, inconstitucional, por violação do principio do in dubio ro reo previsto no n.º 5 do art.º 32º da CRP.
53. Ora, no caso dos autos, face à forma como a informação clínica do doente C foi transmitida à Arguida Recorrente, sem que fosse evidenciada qualquer situação de alarme, fez excluir qualquer hipótese de prever o resultado que se veio a verificar, sendo certo que era à Arguida M que se exigia o cumprimento do dever objectivo de assistência ao doente que lhe estava confiado na enfermaria que dirigia.
54. À luz do princípio da divisão de trabalho, delimitador do principio da confiança, e como ensina Figueiredo Dias, não se responde pela falta de cuidado alheio, antes o direito autoriza que se confie em que os outros cumprirão os deveres de cuidado.
55. No caso vertente, é por demais evidente que a Arguida Recorrente confiou na informação que lhe era transmitida pela Arguida M, enfermeira com vários anos de serviço e muita experiência hospitalar, ao prescrever pelo telefone, confiando ainda que a ausência de qualquer sinal de urgência por parte daquela ao descrever a situação clínica do doente, corresponderia à observação que fazia e que só a ela incumbia, atento o facto do doente se encontrar aos seus cuidados na enfermaria.
56. Assim, para que se possa imputar ao agente o juízo de reprovação ético-social por não conformar a sua actuação com a ordem jurídica, é necessário que ele possa e seja capaz, face às circunstâncias do caso e às suas capacidades pessoais, de prever correctamente a realização do tipo legal de crime, o que no caso vertente era impossível dado quie a Arguida, até às 21:00 horas nunca foi contactada com urgência, não podendo a Arguida prever a situação clínica do doente.
57. Se o que o art.º 137º do CP visa evitar prejuízos a bens jurídicos, cometidos por pessoas em geral, então o que constitui este objecto não são quaisquer prejuízos fortuitos de bens jurídicos, mas somente aqueles que se apresentam como o resultado da evitabilidade, a previsibilidade, em concreto, da realização do facto - que só pode afirmar-se quando esta é a consequência normal, típica ou adequada da conduta levada a cabo pelo agente - constitui o limite mínimo abaixo do qual já não se pode falar em negligência (como é óbvio, não pode exigir-se que se evite o imprevisível) – Acórdão do STJ 02.07.1999.
58. A Arguida M, aqui Recorrente, nunca previu, nem poderia prever face ao teor da informação transmitida pela Arguida M, que o estado clínico do doente C era grave e/ou urgente, pois que tal urgência nunca lhe foi comunicada (até às 21:00 horas);
59. Assim sendo, mesmo que se admitisse a possibilidade de imputação objectiva do tipo de crime de homicídio por negligência, por omissão, subjectivamente tal não seria possível pois que esta actuava em erro sobre as circunstâncias de facto o que, necessariamente, afasta a ilicitude da sua actuação (cf. art.º 16º e 17º do C.P.);
60. É pois, manifesta a injustiça da decisão recorrida, na parte que condenou a Arguida M pela prática do crime de homicídio por negligência, por omissão, devendo ser revogada tal decisão e substituída por outra que a absolva da prática de qualquer crime;
61. Do supra exposto resulta que a sentença recorrida violou o disposto nos art.ºs 18º, 32º n.ºs 1 e 5, todos da Constituição da República Portuguesa;
62. A sentença recorrida violou ainda o disposto nos 10º e 137º do Código Penal, quando deveria, no máximo, ter entendido, face à factualidade provada e da fundamentação decisória, que seria de aplicar o disposto no art.º 17º do CP, excluindo a ilicitude da conduta da Arguida aqui Recorrente;
63. A sentença recorrida violou ainda as regras de direito adjectivo ínsitas nos art.ºs 340º e 359º, ambas do Código do Processo Penal, incorrendo a sentença nos vícios previstos nos art.ºs 379º alíneas b) e c), bem como nos previstos nos art.ºs 410º n.º 2, todos do mesmo código.
NESTES TERMOS E nos melhores de Direito aplicável, deverá:
I. Ser declarada a nulidade da sentença recorrida, por violação do dispostos no art.º 359º do CPP, sendo, consequentemente, determinada a reabertura da audiência, no final da produção da prova, para que a Mma. Juiz a quo comunique a alteração substancial dos factos no que respeita à Arguida M aqui Recorrente, em conformidade com o disposto no art. 359º do C.P.P., seguindo-se os demais termos processuais, ou
II. Serem verificados os vícios referidos no n.º 2 do art.º 410º do CPP, determinando-se o reenvio do processo para novo julgamento relativamente às questões concretamente identificadas na decisão de reenvio (n.º 1 do art. 426.º do CPP), sendo certo que
III. A Arguida Recorrente é inocente devendo, por consequência, a decisão contra si proferida ser sempre substituída por outra que, em homenagem ao que é de Lei, a absolva do crime de homicídio por negligência por omissão a que foi condenada, assim se fazendo a boa e costumada JUSTIÇA!
1.2 Resposta do Ministério Público (síntese nossa, uma vez que o Ministério Público optou por não formular conclusões)
É intempestiva a manifestação de discordância em relação à qualificação da alteração dos factos como não substancial: a alteração foi comunicada na sessão de julgamento de 23.5.8 com a presença da arguida e seu mandatário, não tendo sido interposto recurso no prazo legal.
A substancialidade da alteração de factos afere-se por referência ao objecto do processo e não à sua essencialidade para a condenação. A alteração não implicou a aplicação à arguida de crime diverso nem a agravação dos limites máximos e mínimos da condenação (art. 1º al. f) do Código de Processo Penal. Assim, a alteração dos factos não é substancial: o crime foi praticado na forma omissiva, tal como o crime de homicídio descrito na pronúncia já era omissivo, não havendo diversidade de crime.
Não existe omissão de pronúncia por o tribunal não se ter pronunciado sobre o doc. de fls. 1659 porque na motivação a Juiz apreciou o seu teor e considerou-o irrelevante. O tribunal apreciou todas as questões sobre as quais tinha de se pronunciar.
Ao impugnar a matéria de facto a Recorrente não indica nenhum erro de julgamento: limita-se a discordar da valoração da prova apreciando-a de forma que é contrária às regras da experiência.
Não há contradição insanável sobre a matéria de facto. A Recorrente não identifica nem concretiza os erros que pretende existirem. Os factos aparentemente em contradição têm âmbitos referenciais diversos.
Inexiste erro notório porque a posição de garante da arguida M (médica) se situa em plano distinto do da arguida M (enfermeira) e cada uma responde pela sua responsabilidade.
Não há violação do princípio in dubio pro reo porque o tribunal não ficou com dúvidas e em momento algum expressa a existência de dúvidas insanáveis.
Onde a Recorrente vê a existência de erro sobre as circunstâncias de facto ou falta de consciência da ilicitude – normas inaplicáveis aos crimes negligentes – existe apenas um quadro típico de negligência inconsciente.
1.3 Resposta dos assistentes
1 - Não é verdade que os factos pelos quais a recorrente foi condenada não tivessem correspondência na Acusação.
2 – Muitos factos, passíveis de responsabilidade criminal já constavam da acusação, apesar do tribunal a quo ter dado mais relevância a determinada conduta que consubstanciou outros factos não substanciais provados em audiência.
3 - A alegação de que não fosse a alteração dos factos comunicada, a arguida seria absolvida não pode proceder, pois não fosse a condenação, os assistentes nunca se conformariam, recorrendo da matéria de facto dada como não provada ou incorrectamente julgada.
4 - Os factos dados como provados nos pontos 31, 32, 37, 44, 68, 76 a 80, foram incorrectamente julgados, com má valoração da prova, pois o que deveria ter ficado provado foi que efectivamente o doente teve uma alta precoce, sem condições de prosseguir para a enfermaria, uma vez que a unidade onde se encontrava tinha meios técnicos mais adequados para aferir o estado de saúde do doente, como adiante se demonstrará.
5 - Da interpretação do art.1.º, al. f) do CPP, resulta claramente que uma alteração dos factos é substancial se vier a ter por efeito a imputação de crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis, não sucedendo isso, ela não é substancial, ficando sujeita ao regime do art.358.º CPP.
6 - Este é o critério seguro de orientação, que a própria lei nos dá, para qualificar a alteração de substancial ou não, sobre o qual e nesse sentido tem vindo a pronunciar-se maioritariamente a jurisprudência.
7 - Acontece que, a alteração dos factos operada nos presentes autos, não teve por efeito a imputação de crime diverso às arguidas, nem a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis, por conseguinte, nunca poderá ser qualificada de substancial.
8 - No cumprimento do disposto no art.358.º, a recorrente, não havendo prova que contradissesse os factos alterados, porque estes surgiram da prova produzida em audiência, apresentou defesa requerendo diligências de prova impertinentes e manifestamente dilatórias.
9 - Quanto aos meios de prova requeridos pela arguida, uma vez que não é da responsabilidade dos outros médicos do hospital Egas Moniz que se trata, é flagrante a impertinência do requerido, face à prova que constava dos autos, ao que acresce o facto da recorrente nem tão pouco indicar os factos a que se destinava a prova de tais requerimentos.
10 - Ora, é evidente que o requerido nada pretendia provar, sendo totalmente irrelevantes à luz dos factos alterados, constituindo uma manobra manifestamente dilatória.
11 - A Inquirição da testemunha, Dr. A que foi arrolado pela Recorrente para prestar depoimento a fim de esclarecer o motivo pelo qual, após ter sido contactado optou por ir jantar, ora, o Dr. A não é arguido, nem a sua conduta se encontra em apreciação.
12 - Acresce que, este facto não se encontra descrito na alteração não substancial, a que a defesa se devia cingir.
13 - Dr. F foi arrolado para testemunhar sobre a alegação inscrita nos pontos 20 e 29 do requerimento da Recorrente, nomeadamente quais os médicos de serviço e se a testemunha chegou depois da Recorrente, perto das 21h, Ora, nenhum destes factos faz parte da alteração não substancial, nem tão pouco se vê qualquer pertinência neste depoimento.
14 - Assim como não tinha qualquer pertinência a audição das testemunhas Dr.s C e A, que não presenciaram nenhum dos factos constantes da alteração comunicada, sendo mais uma manobra manifestamente dilatória da Recorrente.
15 - O que a Recorrente defende na sua Alegação é que, ao abrigo do príncipio da acusação e do objecto do processo, o Tribunal ao decidir deve ficar preso aos factos constantes da acusação.
16 - O que significaria decapitar a descoberta da verdade e colocar o tribunal ao serviço de realidades fictícias.
17 - A alteração não substancial dos factos operada, para além de não implicar imputação de crime diverso, nem agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis, constitui uma alteração simples, não substancial, respeitando apenas ao modo de execução do crime.
18 – Quanto à alegada omissão de pronuncia (art.379.º, alínea c) CPP), a fundamentação da sentença, nos termos do disposto no art.374.ºn.º2, CPP, contém a enumeração dos factos provados e não provados, bem como os motivos de facto e de Direito que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
19 - Os factos cuja omissão de pronúncia a recorrente argúi não foram deduzidos na contestação, tendo sido apresentados através de requerimento inusitado, no decurso da audiência de julgamento.
20 - Ora, dos documentos apresentados pela Recorrente a fls., resulta que esta teve oportunidade de observar o doente na altura em que recebeu o telefonema da arguida M, cerca das 19h30m;
21 - E que, posteriormente à cirurgia, teve igualmente oportunidade de o observar, o que seria expectável, uma vez que prescreveu medicação por telefone, tendo optado, no entanto, por ir jantar.
22 - Acresce que, da mesma documentação consta ainda que a anestesia foi inalatória (fls1664) e que a cirurgia destinava-se à extracção de um feijão do ouvido.
23 - Consta ainda da referida documentação (fls. 1663) que a anestesia teve fim às 20h08m e a saída da sala às 20h15m.
24 - Ora, a pronúncia sobre tais factos, só poderiam agravar a conduta da Recorrente.
25 - Além disso, como transcreve a própria Recorrente nas suas Motivações, tais factos constam da fundamentação a fls. 1774 e 1775, por isso, não existe qualquer omissão de pronúncia.
26 - Acresce que, nunca poderia ter sido dado provado que a arguida estava impossibilitada, ainda que momentaneamente, se recebeu o telefonema pelas 19h30, iniciou uma anestesia às 20h que terminou o efeito às 20h08, com a saída da sala às 20h15m.
27 – O perito Joaquim Viana pronunciou-se no sentido de que deveria ter observado C e protelar a anestesia ou, ir logo que possível.
28 - Quanto à impugnação da matéria de facto provada, na opinião da recorrente, o facto constante do n.º70 da sentença, não deveria ter sido dado como provado na parte em que se diz ter a segunda arguida referido que o doente se queixava de falta de ar, devendo antes ter sido dado como não provado que tal informação não foi transmitida,
29 - Ora, “devendo antes ter sido dado como não provado que tal informação não foi transmitida”, equivale a provar-se que tal informação foi transmitida.
30 - No entanto, admite-se sem conceder que, ainda que se considerasse como não provado a referência de que o doente se queixava de falta de ar, passava a considerar-se provado, conforme pretende a Recorrente, apenas o seguinte: 70 - A Segunda arguida transmitiu então à primeira arguida que o doente continuava bastante ansioso, com tossícula e a afirmar que ia morrer.
31 - Diga-se em abono da verdade que, transmitido à recorrente o supra descrito, tal como pretende ver provado a Recorrente, era mais do que suficiente para esta ir observar directamente o paciente;
32 - Isto porque, como ficou demonstrado, não é normal que o doente se mostre bastante ansioso após a alta do recobro, pois tendencialmente as pessoas acalmam quando chegam à enfermaria junto dos familiares.
33 - No momento em foi contactada, cerca das 19h30m, a Recorrente, na pior das hipóteses, estaria já falar com os pais duma criança a anestesiar por via analatória para extração de um feijão do ouvido.
34 - Contactada, cerca das 19h30m, após ter dado alta ao paciente, o qual, segundo a Recorrente, estaria em perfeitas condições para seguir para a Enfermaria,
35 - Obtendo, nesta altura, após o referido telefonema, informação sobre o quadro clínico do paciente, seria obviamente espectável de acordo com a diligência e cuidado a que estava obrigada, que fosse junto do paciente para se inteirar de qual o seu estado e resolver qual a melhor assistência a deferir-lhe, podendo assim, ter evitado a morte do mesmo.
36 - E terá sido esse o pensamento desta enfermeira: se ele vinha assim do recobro e mostra-se cada vez mais agitado, então será melhor contactar a médica de urgência do recobro que foi quem lhe deu a alta.
37 - Acontece porém, que esta enfermeira não devia, obviamente, ter-se baseado somente nas informações e estado do recobro, devendo ter observado se as queixas do paciente correspondiam e qual o real estado de saúde.
38 - Caso a enfermeira M tenha referido, como pretende ver provado a recorrente, que o doente continuava bastante ansioso, com tossícula e a afirmar que ia morrer, deveria ser o bastante para que a Recorrente, ao abrigo do dever de cuidado a que estava obrigada ir observar imediatamente o paciente, uma vez que a alta do recobro tinha sido há pouco tempo e as queixas do paciente eram piores.
39 - Acresce que, como ficou demonstrado em audiência, foi unânime a opinião de todos os médicos que ministraram por telefone, porque nem todos o fazem, de que só em casos de extrema urgência se ministra por telefone e logo que possível há que observar o paciente.
40 - Do relato da Testemunha A podemos concluir que a Segunda arguida não valorizou as queixas do paciente e não observou o paciente no sentido de verificar se as mesmas tinham fundamento, pois se o tivesse feito o resultado não se produziria.
41 - No julgamento deste ponto da matéria de facto poderá ter influenciado na decisão o depoimento da própria Recorrente que afirma que seria melhor hidroxizina porque não tinha efeito respiratório (cassete n.º1, desde o n.º04:77 ao n.º23:94 do lado A, desde o n.º00:00 ao n.º23:96 do lado B)
42 - Ora, se não tivesse sido alertada para a respiração, porque razão daria a Recorrente esta resposta!?
43 - Apesar de, com violação do dever de cuidado e diligência, a Enfermeira M não ter verificado se as queixas do paciente correspondiam, a verdade é que, com o referido telefonema era expectável que a Recorrente tivesse suspeitado que aquele quadro clínico era indicador de que algo se estaria a passar de muito errado.
44 – O perito J pronunciou-se no sentido de tudo aquilo que pode acontecer de grave ou muito grave num pós operatório se traduz por ansiedade e por agitação. Muitas vezes o doente não se queixa, coisas até de uma gravidade extraordinária e por isso é que, de certo modo, exige. Falando daquilo, que ensina numa aula normalmente até a médicos não anestesistas.
45 - Quanto aos factos provados n.º 72, 73, 74, na sua conjugação com o facto provado n.93, ao contrário do que a Recorrente quer fazer crer, não é frequente os médicos prescreverem medicação por telefone.
46 - Dos depoimentos prestados em audiência, resulta que a prescrição por telefone só se faz em caso de urgência e se tal acontecer, o médico que ministra vai logo que possível observar o paciente, esta foi a opinião da totalidade dos médicos que prestou depoimento em audiência e que admitiram essa pratica ocasional.
47 - E muito menos num paciente no pós-operatório, quando o risco de complicações é muito superior.
48 - A testemunha Dr. A, (cassete n.º11, desde o n.º02:676 ao n.º 23:90 do lado A, desde n.º00:00 ao n.º23:93 do lado B, e cassete n.º12, lado A, n.º00:00 ao n.º09:88), mais precisamente na cassete n.º12, lado A, 00:00 ao 09:88, referiu não ser normal prescrever por telefone, muito menos com doentes internados.
49 - Do depoimento do perito J, nomeadamente da transcrição elaborada pela Recorrente, pode aferir-se a renitência deste em prescrever por telefone.
50 - O perito J foi peremptório em afirmar que não prescreveria por telefone (cassete n.º27, lado B, n.º00:00 ao n.º23:57)
51 - Se a Recorrente se dirigisse à enfermaria para observar C, teria salvo a vida deste.
52 - Ao prescrever por telefone a Recorrente colocou-se na posição de garante e assumiu o risco da sua conduta.
53 - Quanto ao facto da Recorrente não se ter deslocado à enfermaria para observar C, este facto é por demais evidente e por conseguinte não carece de fundamentação.
54 - Quanto ao facto de não dar instruções para o fazer regressar ao recobro a fim de aí o observar e serem avaliados os seus parâmetros vitais, designadamente com recurso a monitor, parece evidente também que, sendo a Recorrente a anestesista responsável pelo recobro naquele dia, seria a pessoa com competência para o admitir novamente naquela unidade, uma vez que, como ficou demonstrado em audiência de julgamento, aquele Hospital não tinha Unidade de Cuidados intermédios.
55 - Isto porque, a Recorrente não devia desconhecer o estado de saúde do paciente na altura da alta, conjugado com a informação do estado de saúde na altura do telefonema, seria forçoso concluir que o estado de saúde se agravou e que haveria algo de errado naquela situação.
56 - O dever de diligência e cuidado a que estava obrigada impunha que a Recorrente tomasse uma dessas medidas previstas no facto n.º73.
57 - O facto do regulamento do recobro indicar que deve chamar-se em caso de urgência, o médico de urgência interna ou anestesista, depende da especialidade, ora este tipo de complicação pode ser de qualquer destas especialidades.
58 - A este facto acresce que a anestesista contactada foi a que teve contacto com o doente no recobro e deu alta ao paciente já em estado de ansiedade, conforme afirma a enf.ª M afirma, no seu depoimento, quando diz que foi buscar um paciente ao recobro e ouviu dizer que C já estava bastante ansioso.
59 - A ansiedade não chegou a ser despistada no recobro como deveria ter sido, começando aqui a violação do dever de diligência e cuidado.
60 - Ora, obviamente que a conduta delituosa da Recorrente começa no recobro dadas as queixas que o doente apresenta logo à chegada da enfermaria, os registos de enfermagem, os testemunhos das familiares, bem como o depoimento da enf.ª E (cassete n. º14, lado A, desde o n.º00:00 ao n.º15:90), de assistência ao recobro, que admitiu que a alta foi dada às 17h30m, o que coincide com o último registo dos sinais vitais no recobro (fls. 43), apesar da decisão a quo ter entendimento diferente.
61 - A Enf.ª E que ainda hoje é colega de trabalho da arguida Recorrente, apesar de demonstrar muita cautela e cuidado no seu depoimento e um visível controlo nas palavras proferidas, acabou por admitir que a alta foi dada por volta das 17h30m, apesar deste facto muito estranhamente não ter sido dado como provado pelo tribunal a quo.
62 - Registe-se que esta enfermeira afirmou estar presente na altura da alta, tendo-se ausentado logo de seguida de modo a que não estava presente no momento da transferência.
63 - Acresce que, como referiu a Recorrente nas suas Motivações, os factos 72, 73 e 74, a decisão sobre os mesmos é inatacável por corresponder à realidade.
64 - Do confronto dos factos provados n.º 28 e 29, não existe qualquer contradição com os factos V e XXVII,
65 - Isto porque, o facto da primeira arguida não saber a concreta extensão da técnica utilizada na intervenção cirúrgica e não se informar junta da colega anestesista Dr.ª I da extensão da técnica de sistrunk,
66 - Não colide com o facto de não ter tentado informar-se junto dos cirurgiões da extensão da técnica de sistrunk,
67 - Nem com o XXVII que refere a observação no recobro durante 24 horas com vista a despistar possíveis situações de edema;
68 - Apesar de se considerar que o n.ºXXVII deveria ter sido dado como provado, substituindo-se “... pelo menos vinte e quatro horas com vista a despistar possíveis situações de edema” por “... por tempo suficiente com vista a despistar possíveis situações de edema”
69 - Quanto ao facto 95, este refere-se às arguidas, quando o XXIX se refere apenas à arguida, apesar de obviamente, esta ter actuado de forma voluntária, livre e consciente.
70 - Este lapso não constitui contradição insanável, ao abrigo do disposto no art.410.º, n.º2, al.b) do CPP.
71 - Do texto da decisão não resulta qualquer erro notório na apreciação da prova e fundamentação da decisão, nomeadamente no que consta a fls.1795 e 1796, 1799 e 1800.
72 - Da prova produzida resulta, claramente, que tanto a Arguida Recorrente como a Arguida M omitiram na sua conduta os deveres de cuidado e diligência a que estavam obrigadas, e que por via disso causaram a morte a C.
73 - Seria de esperar que a arguida Recorrente, respondendo às exigências de cuidado objectivamente imposto e devido, após receber o telefonema que relatava o estado de saúde do paciente já na enfermaria, suspendesse o que se preparava para fazer, protelando por alguns minutos a anestesia inalatória.
74 - Conforme afirmou a arguida, o doente manifestou-se ansioso no recobro e pedia para ir junto dos familiares, ora, seria de esperar que, ao abrigo do dever de cuidado, a arguida ao receber o telefonema que lhe indicasse um estado de saúde agravado, calculasse que algo de complicado se estaria a passar na saúde do paciente, pois o que seria expectável era que este melhorasse na enfermaria.
75 - E tal não aconteceu, se o doente piorou, apresentando queixas que indicam um agravamento do estado de saúde, impunha-se à arguida que protelasse a anestesia que se preparava para fazer e que ainda não tinha iniciado; optando por continuar com a anestesia, assim que esta terminasse, impunha-se-lhe verificar o estado de saúde do paciente.
76 - Pois a arguida tinha a obrigação de conhecer, conforme referiu o perito J (cassete n.º28, lado A, n.º00:00 ao n.º24:12, lado B n.º00:00 ao n.º22:42, neste caso a transcrição infra consta do lado A)
77 - A Recorrente não teve somente contacto com o doente durante o período do recobro, a responsabilidade da sua conduta vai para além do período do recobro.
78 - Ao mandar ministrar medicação a um doente, está igualmente a assumir a responsabilidade das consequências dessa medicação, assim como, ao ser contactada devido ao estado clínico e optar por não fazer uma observação directa do paciente, também assume conscientemente os riscos dessa mesma conduta imprudente.
79 - Caso a arguida recorrente tivesse ao abrigo do dever de cuidado, observado directamente o paciente na altura em que foi contactada, evitaria o resultado.
80 - Acresce que, o dever de cuidado e diligência impunham à Recorrente que despistasse a ansiedade desde o momento em que ela começou a ser demonstrada,
81 - E que, após o período do recobro, estivesse de sobre-aviso até afastar todas as possíveis causas dessa ansiedade, ao abrigo do dever de assistência e de tratamento
82 - Ao que acresce o facto da Recorrente saber que naquele hospital não havia cuidados intermédios, e que ao dar alta do recobro os meios técnicos de despistagem de complicações cirúrgicas e pós-operatórias diminuíra substancialmente.
83 - Sobre a Recorrente e todos os profissionais de saúde que com o paciente tiveram contacto, impende um dever de assistência, de vigilância e acompanhamento até à convalescença.
84 - Impunha-se à recorrente que esta observasse e despistasse a ansiedade demonstrada, o que nunca chegou a fazer.
85 - A complicação de edema da glote é uma complicação comum a todas as cirurgias da região do pescoço, o que implica uma vigilância apertada no período pós-operatório.
86 - Apesar de se encontrar sob a vigilância das enfermeiras do 8.º piso, a Recorrente não fica isenta do dever de cuidado, vigilância e acompanhamento, já que a alta do doente foi da sua responsabilidade e medicou o doente posteriormente à alta.
87 - Acresce que, conforme resulta do código deontológico, a Recorrente não deve aceitar diagnósticos sem observação directa.
88 - Quando a Recorrente refere que pelas 19h30 iniciou a preparação de anestesia a criança, está a mentir descaradamente, tal como tem feito em todo o julgamento quanto a esta matéria, pois toda a documentação junta revela o contrário, refira-se que a hora de entrada no Hospital é às 19h19, cerca das 19:20, depois é preenchida toda a papelada e burocracia, depois faz-se o percurso todo até ao bloco, portanto nunca poderia às 19:30 estar já a preparar uma anestesia, até porque a paciente só entrou no bloco às 19:45 e a preparação para uma anestesia deste género equivale a uma rápida conversa com os pais para aferir da existência de anestesias e outras questões do género.
89 - Ainda que o telefonema da Enfermeira M não fosse de molde a anunciar ou evidenciar qualquer situação de emergência ou urgência, o facto de transmitir que C estava ansioso e agitado e que se queixava de falta de ar, era informação suficiente para um médico, na posição da arguida, prefigurar como possível a ocorrência de uma complicação que só seria despistada mediante observação directa.
90 - A conduta da Recorrente traduz uma violação grave dos deveres de cuidado, diligência e assistência.
91 - Pois é inequívoco que, se a recorrente actuasse com a prudência, diligência e cuidado que lhe são exigíveis no exercício da sua profissão, teria salvo a vida a C.
92 - Por conseguinte, não existe qualquer erro notório nem se vê como é possível a recorrente arguir qualquer erro na motivação apresentada.
93 - O princípio in dubio pro reo pressupõe a dúvida quanto à prova da matéria de facto, o que não ocorreu nos presentes autos.
94 - Os factos considerados provados estão devidamente fundamentados, dir-se-á ainda que poderiam e deveriam ter sido provados mais factos reveladores da responsabilidade da Recorrente, de acordo com a conjugação dos depoimentos prestados pela enfermeira do recobro E, dos depoimentos dos familiares de C e declarações da arguida Enf.ª M, que percepcionaram o estado de saúde à chegada ao piso 8.º.
95 - Acresce que, apesar de ter ficado por esclarecer, não se acredita que C tenha ficado monitorizado a partir das 17h30, momento em que devia ter sido provada a hora da alta, conforme declarações da Enf.ª E e último registo dos sinais vitais da folha do recobro a fls.43.
96 - À chegada ao 8.º piso, foi pelos ali presentes constatado que C referia que tinha falta de ar e a sua respiração era acelerada, continuava ansioso e agitado (facto 55).
97 - Facto que terá levado ao contacto telefónico com a responsável do recobro, pois era dali que o doente tinha vindo.
98 - Ora, a falta de diligência e cuidado da arguida Recorrente foi evidente desde o momento da alta do recobro até à hora da sua morte.
99 - A omissão de diligência e assistência por parte da Recorrente foi causal da morte de C, pois como se referiu, se aquela tivesse actuado conforme seria de esperar de um médico, teria observado directamente o doente e salvado a vida.
100 - No entanto, também foi causa da morte a falta de diligência e assistência da arguida M que, de acordo com as mais elementares regras de experiência, e como profissionalmente lhe era exigido, deveria ter observado o paciente e verificado a gravidade da situação, a fim de accionar todos os mecanismos de urgência.
101 - Se a arguida M tivesse dado atenção às queixas do paciente, para além de ter accionado todos os mecanismos de urgência atempadamente, poderia até ter-lhe salvo a vida, pois o quarto onde C estava tinha oxigénio e,
102 - Conforme ficou registado em audiência, nomeadamente através do depoimento do Dr. A, entre outros, a aplicação de oxigénio é inócua, não faz mal nenhum, sendo certo que, neste caso, teria salvo a vida a C.
103 - Por conseguinte, quer a Recorrente, quer a arguida M, actuaram com manifesta violação do dever de diligência e cuidado a que estavam obrigadas, negando a assistência que a própria profissão lhes impunha,
104 - a primeira porque tendo assistido C no recobro, e tomado conhecimento após a saída daquela unidade que o estado de saúde se tinha agravado, não lhe deu a assistência devida observando-o directamente ou mandando-o regressar a fim de o observar a fim de aferir o verdadeiro estado de saúde, ou pedindo a outro colega que o observasse directamente;
105 - A informação recebida pela Recorrente, de que C estava ansioso e agitado e que se queixava de falta de ar, era informação suficiente para um médico, na posição da arguida, prefigurar como possível a ocorrência de uma complicação que só poderia ser confirmada e tratada mediante observação directa.
106 - A recorrente, por força do contrato que a liga ao Hospital, tinha o dever jurídico de garante da vida e da integridade física dos pacientes hospitalizados naquele hospital, cabendo-lhe impedir a sua morte ou uma lesão de saúde (art.10.º e 137.º CP).
107 - A violação do dever de cuidado (violação do dever de diligência) determina-se por critérios objectivos, nomeadamente pelas exigências postas a um homem avisado e prudente na situação concreta do agente.
108 - A extensão do dever de cuidado é referida ao homem médio do círculo social ou profissional do agente, isto é, do concreto círculo de responsabilidades em que o agente se move, neste caso, o médico ou enfermeiro.
109 - Ao receber o doente sem ter conhecimento da concreta extensão da técnica utilizada na intervenção cirúrgica realizada a C, existe da parte da Recorrente culpa na assunção, demonstrando falta de cuidado no cumprimento do dever de informação e preparação prévia.
110 - Tal dever de cuidado no cumprimento do dever de informação, traduz-se no facto da Recorrente ter empreendido uma tarefa para a qual não possuía os necessários conhecimentos, daí advindo uma falta de cuidado.
111 - É obvio que ambas arguidas têm uma obrigação de impedir o resultado típico, em virtude dos deveres cujo cumprimento assumiram e lhe incubem por razão da sua profissão.
112 - Sobre a Recorrente (omitente) recai o dever jurídico que pessoalmente a obriga a evitar tal resultado.
113 - O dever jurídico do médico é pugnar pela melhoria de saúde dos doentes, e em casos de emergência, utilizar todos os esforços e meios para lhe salvar a vida.
114 - A recorrente, ao ser contactada perante determinado quadro clínico de um doente e ao ministrar-lhe um medicamento está a assumir o tratamento do mesmo e por via disso, o dever de garante.
115 - Como bem refere a sentença relativamente aos profissionais de saúde, designadamente, médicos e enfermeiros, existe um dever genérico de auxílio ou de assistência que a própria natureza das suas profissões impõe.
116 - A Recorrente, ao omitir determinado comportamento que lhe era esperado e a que estava obrigada, designadamente ir observar directamente o paciente, quer antes de mandar ministrar qualquer tipo de medicação, quer após no sentido de verificar se a mesma tinha sortido efeito, omitiu a assistência necessária que salvaria a vida a C,
117 - O que significa que a actuação que se esperava e a que estava obrigada era adequada a evitar o resultado.
118 - Pois, ninguém duvida que, se a Recorrente o tivesse observado, ter-lhe-ia salvo a vida.
Termos em que, negando provimento ao Recurso, farão V/Ex.as A Acostumada Justiça!
2.1 Recurso dos assistentes quanto à parte criminal
1 - Apesar de não de se concordar com a decisão dos factos 31, 37, 44, 68, 76 a 80, apenas aqui se recorre da decisão no que respeita à escolha e fixação da medida da pena, bem como da omissão de decisão quanto ao pedido de indemnização formulado nos autos
2 - A opção por uma pena de multa em detrimento de uma pena de prisão deve ser feita em função das exigências de prevenção geral e especial que a situação concreta oferece.
3 - Como refere a douta decisão recorrida, no caso vertente as razões de prevenção geral mostram-se elevadas, atendendo, por um lado, ao incremento de ilícitos desta natureza na área desta comarca e o sentimento de insegurança que a ocorrência e conhecimentos dos mesmos causa na comunidade e, por outro lado, a natureza do bem jurídico e a intensidade da violação ao mesmo perpetrada.
4 - Ao optar pela pena de multa o tribunal a quo apenas teve em atenção a função de prevenção especial da pena, como factor dissuasor da prática futura de crimes pelas arguidas.
5 - Esquecendo que a aplicação das penas visa a protecção de bens jurídicos, entendida como tutela da crença e confiança da comunidade na sua ordem jurídico penal e a reintegração social do agente, apresentando-se a prevenção geral positiva como finalidade primordial a prosseguir e nunca podendo a prevenção especial positiva por em causa o mínimo de pena imprescindível á estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada. (cfr. Ac. STJ, de 30/6/1999, proc. N.º501/99 -3.ª; SASTJ, n.º32, 91).
6 - A factualidade dada como provada que nos permite concluir que seria mais adequada a aplicação de uma pena de natureza detentiva, ainda que suspensa na sua execução, à arguida M é a que consta dos factos n.º 21, 30, 69, 70, 71, 72, 73, 74, 92 e 95.
7 - Ora, tendo mantido contacto com o paciente durante o recobro, durante o qual este se mostrou sempre ansioso, e posteriormente tendo-lhe sido comunicado já o doente se encontrava na enfermaria que o doente estava mais ansioso e que revelava falta de ar, ao ministrar hidroxizina via telefone, sem tão pouco se preocupar em verificar posteriormente o medicamento que mandou ministrar teria surtido algum efeito no paciente, a arguida violou de forma grave o dever de cuidado a que estava obrigada.
8 - Mais revelou um total desprezo pela saúde e vida do doente.
9 - A factualidade dada como provada que nos permite concluir que seria mais adequada a aplicação de uma pena de natureza detentiva, ainda que suspensa na sua execução, à arguida M é a seguinte: 27, 48 e 49, 50, 52, 55, 56, 59, 60, 62, 63, 64, 65, 66, 68, 75, 78, 79, 80, 81, 82, 83,84, 87, 91, 92, 95 10 - Desde já se infere a gravidade da falta de zelo, pois existiam apenas 11 pacientes ao cuidado de 2 enfermeiras.
11 - Apesar de não se encontrar transcrito na douta decisão recorrida, o que não é compreensível, dada a gravidade deste facto e o que em si mesmo demonstra, sendo tal esclarecimento relegado para o aspecto jurídico da causa (pag.61), é importante esclarecer que a terceira e última vez que a arguida se deslocou ao quarto foi para ministrar a medicação a todos os doentes, começando a medicação pelos quartos em sentido oposto ao quarto onde se encontrava C.
12 - Tal facto é claramente revelador da passividade com que a arguida se manteve durante todo o tempo em que a vida do doente perigava e se lhe impunha que actuasse com urgência.
13 - A arguida não ignorava o estado de saúde do paciente, pois foi-lhe dado a conhecer pelo mesmo e respectivos familiares.
14 - Repare-se que até esta hora nunca a arguida transmitiu qualquer queixa do paciente a este médico, que foi o médico que realizou a intervenção cirúrgica, antes pelo contrário, foi este médico que teve a iniciativa de perguntar pelo estado de saúde do doente.
15 - A interpretação que o tribunal a quo faz deste facto é imprecisa, pois não se compreende porque razão a arguida “ciente que a injecção de hidroxizina intra muscular por si administrada a C não tinha provocado alteração do estado do mesmo” tomou a liberdade de telefonar para o Dr. A e não para a Drª M que foi quem lhe mandou ministrar o referido medicamento.
16 -Repare-se que durante o período em que C esteve sob o cuidado desta arguida, nunca ela solicitou verdadeiramente a presença de qualquer médico junto do mesmo.
17 - A arguida nunca accionou o estado de emergência que a situação impunha, requerendo a presença de um médico urgente.
18- No entanto, sabendo que o Dr. A se encontrava de serviço noutro Hospital e que, por conseguinte, iria demorar a chegar, ao invés de verificar o estado de saúde do paciente, a arguida ignorou por completo esta informação e
19 - Ora, perante este quadro clínico qualquer leigo na matéria concluiu que este desfecho se enquadra nas queixas que o paciente tinha vindo a apresentar há, pelo menos, duas horas.
20 - O que foi completamente ignorado pela arguida, que não esteve atenta ao quadro clínico do doente, descuidando o seu estado de saúde, sem nunca observar, conforme as mais elementares regras de conduta o impunham.
21 - Não teria que ser o doente a manifestar todas as queixas que apresentou, mas sim a arguida que, violando grosseiramente todos os mais elementares deveres de conduta e cuidado, nem tão pouco observou o paciente no sentido de verificar a gravidade do seu estado clínico.
22 -Temos que nos lembrar que C queixou-se, incessantemente, durante duas horas, de falta de ar, tendo o oxigénio por cima da cabeceira que apenas foi ministrado pela arguida por volta das 21horas quando já nada havia a fazer que pudesse salvar a vida ao paciente.
23 - A culpa é de tal modo grave, que repugna pensar-se uma pena de multa na medida em que foi aplicada realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
24-C faleceu face à total ausência de cuidados de saúde, o que revela culpa com grande gravidade da parte da segunda arguida.
25 - Relativamente à arguida M resulta da matéria de facto provada que C, quando deu entrada na Enfermaria, estava ansioso e agitado, queixava-se de falta de ar e a sua respiração era acelerada, o que foi desde logo percepcionado por aquela.
26 - Todavia, e apesar de ser alertada uma vez mais pela tia de C não volta a contactar nenhum médico, sendo que inicia a distribuição dos fármacos do serviço de acordo com a rotina habitual.
27 - Pouco releva se C não evidenciava tiragem ou adejo nasal, se suava pouco ou muito se o dreno estava funcionante e não havia perdas hemáticas significativas, porquanto, o mesmo se queixava de falta de ar e isso bastava.
28 - A arguida M ao não voltar a contactar os médicos ou não equacionar a situação como situação de urgência omitiu um dever de cuidado e de diligência de que era capaz e estava obrigada e que conduziu à morte de C.
29 - A última vez que a tia foi falar com a enfermeira “ordenou-lhes” que fossem ver rapidamente o sobrinho pois as queixas que este apresentava e os sintomas eram cada vez piores. Perante este cenário, a arguida começou a medicação pelos quartos mais afastados e quando se dirigiu ao quarto, já meia hora depois não foi para o assistir mas sim para lhe dar a medicação.
30 -Se é certo que em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa, mais certo é que no caso em apreço a pena aplicada ficou muito aquém da medida da culpa.
31 - Na determinação da pena aplicável, o tribunal dá preferência à pena de multa sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
32 -São finalidades das penas e medidas de segurança: a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade (art.40.º, n.º1CP)
33 -No caso em apreço o bem jurídico tutelado é, nada mais, nada menos que a vida humana!
34 -A arguida M foi condenada a uma pena de 240 dias de multa à taxa diária de €22, no valor total de 5280€, o que, não chega a atingir o valor de uma remuneração que esta arguida aufere mensalmente no exercício da sua profissão.
35 - A arguida M foi condenada a uma pena de 220 dias de multa à taxa diária de €8, no valor total de 1760€, o que, não chega a atingir o valor de uma remuneração que esta arguida aufere mensalmente no exercício da sua profissão.
36 - Ora, tal condenação não protege o bem jurídico tutelado.
37 - Por conseguinte, deverão V/Ex.as substituir a pena por uma de natureza detentiva, ainda que suspensa na sua execução, muito próxima do limite máximo, pois só assim, se fará a acostumada justiça.
38 -Se assim não se entender, deverá fixar-se a multa muito próximo do máximo legal, agravando-se sensivelmente o valor diário que não deverá ser inferior a 100€ diários.
39 -Isto, para ambas as arguidas, pois ambas cometeram o crime com igual gravidade de culpa.
40 - Acresce que, à data da leitura de sentença havia transitado a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferida a 15/5/2008, na qual “acordam os juízes da 9.ª Secção deste Tribunal da Relação em conceder provimento ao recurso interposto, revogando a decisão revidenda (o despacho proferido em 19 de Junho de 2007, a fls. 185 e segs. – vd. Certidão de fls.17 a 19 -, pelo Mmª Juiz da 2.ª Secção do 4.º Juízo do tribunal Criminal de Lisboa) e, nessa conformidade, o tribunal a quo, por ser o competente, deverá tomar as necessárias providências para vir a conhecer o pedido de indemnização civil oportunamente formulado nos autos.”
41 - Ora, o tribunal a quo, proferiu sentença em 20 de Junho de 2008, sem conhecer o pedido de indemnização civil oportunamente formulado nos autos, o que constitui nulidade nos termos do disposto na alínea c), do n.º1 do art. 379.º do CPP, o que aqui se argúi para os devidos efeitos legais.
Decidindo desta forma farão Vossas Excelências a Acostumada Justiça!
2.2 Resposta do Ministério Público (síntese nossa, uma vez que o Ministério Público optou por não formular conclusões)
Falta interesse em agir aos assistentes porque não deduziram acusação particular e a decisão proferida não os afecta nem a nenhum interesse próprio e concreto devidamente expressado processualmente.
A concreta pena escolhida para cada uma das arguidas traduz a recriminação e a prevenção geral e especial, reclamadas no caso concreto
Os critérios utilizados na determinação da medida concreta da pena e as medidas concretamente aplicadas, são adequadas e suficientes para garantir as necessidades de sancionamento, prevenção geral e especial.
2.3 Resposta da arguida M:
1. Os Assistentes fundamentam o seu recurso, entre outras questões, na alegada discordância quanto à escolha e medida da pena aplicada à Arguida;
2. Sem prejuízo de a Arguida, agora como sempre clamar nesta sede a sua inocência, e bem assim não prescindir da apreciação do recurso interposto da decisão final condenatória, sempre dirá que aos Assistentes está vedado o recurso com tal fundamento.
3. De facto, os Assistentes tiveram uma decisão que lhes foi favorável e, por contraposição, desfavorável à Arguida, que dela interpôs recurso;
4. Nos termos do art. 401º n.º 1 alínea a) do CPP, os Assistentes podem recorrer das decisões que lhes sejam desfavoráveis, o que não é, manifestamente, o caso;
5. A Arguida foi, bem ou mal logo se verá no momento de apreciação do seu recurso, condenada a pena de multa, cuja aplicação é aliás obrigatória quando o tipo a preveja como alternativa à pena de prisão (cf. art.º 70º do CP);
6. A personalidade da Arguida, o facto de estar socialmente inserida, ser respeitada pelos seus colegas médicos e chefias, não possuir antecedentes criminais foi ponderado na determinação da medida da pena, atentas as finalidades de prevenção geral e especial;
7. A verdade é que, os Assistentes não demonstram qual o interesse concreto, que não vindicta privada, na interposição do recurso com este fundamento, e em que medida é que a decisão, que atacam por via do recurso, lhes é desfavorável;
8. Pelo que dúvidas não restam quanto à falta de legitimidade e de interesse em agir dos Assistentes para recorrer com este fundamento. Nesse sentido:
9. O assistente não tem legitimidade para recorrer, desacompanhado do Ministério Público, relativamente à espécie e medida da pena aplicada, salvo quando demonstrar um concreto e próprio interesse em agir (Acordão de Fixação de Jurisprudência, STJ, 30.10.1997, in www.dgsi.pt).
TERMOS EM QUE
Deverá ser rejeitado o recurso dos Assistentes, com fundamento na discordância quanto à escolha e medida da pena aplicada à Arguida, por manifesta falta de legitimidade e interesse em agir, nos termos conjugados dos art.ºs 69º alínea c) e 401º n.º 1 alínea a) e n.º 2, todas as disposições do CPP.
3. Recurso da parte cível das arguidas/demandadas.
3.1 Recurso da Demandada M quanto à parte cível:
1. O presente recurso está limitado à decisão cível condenatória, uma vez que – em razão do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa – foi ordenada a remessa dos autos ao Tribunal a quo para julgamento do pedido de indemnização cível;
2. Encontra-se pendente recurso interposto pela Arguida quanto à decisão final que condenou a Arguida pela prática dos crimes de que foi pronunciada, mantendo esta total interesse na sua apreciação, conjuntamente com o presente recurso quanto à condenação cível;
3. Por força do recurso identificado em 2) cuja apreciação se encontra pendente neste Venerando Tribunal, a Arguida sempre se presume inocente, não podendo o Tribunal a quo julgar o pedido cível dando como assumidos os factos constantes da decisão condenatória recorrida, sob pena de haver uma total inversão dos mais elementares princípios de direito penal, v.g. do princípio da presunção de inocência;
4. A Arguida reforça, reitera e clama a sua inocência;
5. No dia 28.08.2002, faleceu no Hospital Egas Moniz o doente C, que se encontrava internado na enfermaria do 8º Piso daquele hospital central, ao cuidado e vigilância da Arguida M;
6. No fatídico dia, estavam ao serviço de urgência vários médicos, de várias especialidades médicas incluindo cirurgia, a Recorrente não era a única médica de serviço ao serviço de urgência e, muito menos, de serviço ao hospital;
7. A Recorrente, médica anestesista, estava de serviço à urgência de anestesia do hospital Egas Moniz,
8. A Recorrente era funcionária do Hospital Egas Moniz, Pessoa Colectiva de Direito Publico;
9. Os actos praticados pela recorrente, foram exercidos no âmbito das suas competências e funções, não extrapolando nenhuma delas;
10. Pela recorrente foram praticados actos materiais de prestação de cuidados de saúde, ao serviço do Hospital Egas Moniz, como tal, classificados de actos de gestão Publica;
11. Tais actos não foram praticados em nenhum espaço de saúde privado, nem tão pouca a Recorrente foi contratada e paga directamente pela vítima para prestar tais actos médicos;
12. Então, estando a Recorrente ao serviço do Hospital Egas Moniz, a Responsabilidade Civil que daí advêm é a que está regulada no Decreto – Lei n.º 48051/ de 21 Novembro de 1967
13. Do Diploma supra referido extrai-se no artigo.º 2º: O Estado e demais pessoas colectivas públicas respondem civilmente perante terceiros pelas ofensas dos direitos destes ou das disposições legais destinadas a proteger os seus interesses, resultantes de actos ilícitos culposamente praticados pelos respectivos órgãos ou agentes administrativos no exercício das suas funções e por causa desse exercício.
14. Na sentença ora Recorrida é nos dito “ o critério de determinação da legitimidade das partes assenta, na falta de indicação legal em contrário, na titularidade da relação material controvertida (… )”
15. Pois bem, na situação em apreço existe claramente a indicação legal de quem tem legitimidade passiva, pois só o Hospital è exclusivamente responsável, nas relações externas, pelos danos causados pela prática de um facto ilícito decorrente de acto médico praticado, a título de negligência, no exercício das funções pelo funcionário da unidade hospitalar – veja-se o Ac. STJ Processo n.º 128-99.8TAVIS.C2.S1.de 07/14/2010.
16. É a própria sentença recorrida que atribui à Recorrente a culpa a título de negligência inconsciente.
17. Logo a sentença recorrida errou ao responsabilizar directamente a Recorrente perante o lesado, com fundamento de acto ilícito, pois a tal se opõe o art. 2.º n.º 1 do DL 4850, devendo ser absolvido da instancia nos termos do disposto no art.494.º e) do CPC;
18. Tratando-se de uma excepção dilatória, o tribunal a quo deveria ter conhecido oficiosamente, art. 495.º do CPC:
19. Porquanto tal gera a nulidade da sentença ora recorrida, nos termos do art.º668. n.º1 d) e segunda parte do n.º4 do mesmo artigo do CCP;
20. Os valores indemnizatórios fixados pelo Tribunal a quo são excessivos, para todas as condenações, à luz da Jurisprudência dos nossos tribunais, mormente do STJ;
21. Assim, e recorrendo dos valores atribuídos pelo STJ, mesmo em casos que o grau de culpa se situa no dolo:
i) Pela perda do direito à vida, 30.000.00 € a 50.000.00 €
ii) À Recorrente foi estipulado o valor de 65.000.00 €
iii) Por danos não patrimoniais, dor, sofrimento e presciência de morte, 10.000.00 €
a 20.000.00 €
22. Por outro lado, o quantum indemnizatório entre o grau de culpa atribuído á Recorrente, que se molda em negligencia inconsciente e os valores atribuídos;
23. E como se verifica na sentença recorrida, a qual não teve em consideração tais parâmetros;
24. Sendo os danos não patrimoniais insusceptíveis de avaliação pecuniária, os mesmo só se alcançam através de juízos de equidade e recorrendo a situações análogas conforme o disposto no art. 8.º n.3 do Código Civil.
25. E como da sentença se extrai, que a ora Recorrente não foi a única responsável, como também a sua culpa se situa na negligência inconsciente tendo isso em consideração cabe-nos recorrer da douta Jurisprudência para demonstrar o que supra afirmamos;
26. Visto isto, leva-nos a crer que o tribunal a quo não teve, mas devia de ter tido, os pressupostos atenuantes do grau de culpa se situar em negligencia inconsciente;
27. Como também ter reconhecido que a Recorrente e a Enfermeira, também ela demandada, não serem as únicas responsáveis por tais factos;
28. O julgamento segundo os critérios de equidade, não pode significar arbitrariedade, antes um meio de correcção do direito, tendo em consideração as circunstâncias do caso em concreto;
29. «o montante da indemnização correspondente aos danos não patrimoniais deve ser calculado … segundo critérios de equidade, atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e às do lesado e do titular da indemnização, às flutuações do valor da moeda, etc. E deve ser proporcionado à gravidade do dano, tomando em conta na sua fixação todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida». Citando Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado, Vol. I, 2.ª ed., pág. 435),
30. Assim, os valores fixados em termos indemnizatórios, não poderiam ultrapassar todos eles, os valores mínimos dentro do que a jurisprudência tem atribuído, até em função da culpa diminuta da Arguida, admitindo – que não se admite – que a sentença recorrida (tanto na parte criminal como na parte cível) não venha merecer reparo pelo Tribunal superior, ou seja:
i) Pela perda do direito à vida 30.000.00 €
ii) Por danos não patrimoniais, sofrimento, dor e presciência de morte 10.000 00 €
iii) A título de danos não patrimoniais, a atribuir aos assistentes o valor de 10.000.00 € a cada.
31. Para tal, referindo uma vez mais que a culpa da ora Recorrente se situa no nível menos intenso, negligencia inconsciente;
32. Do factos dados como provados na sentença ora recorrida, é atribuída à Recorrente uma menor intensidade da sua culpa face á outra demandada a Enfermeira M;
33. Na sentença ora recorrida fica provado que a Enfermeira M, presenciou o estado da vítima desde o momento que a mesma deu entrada na enfermaria;
34. A vítima ao dar entrada na enfermaria ficou ao cuidado e vigilância da Demandada (Enfermeira)
35. A Enfermeira ao lhe ter sido verbalizado pela própria vitima a falta de ar e o seu mau estar, deveria ter tido como dever de diligência, valorizado tal afirmação e ter accionado os mecanismos de urgência que a mesma estava obrigada a fazer;
36. Na chamada telefónica que teve com a ora Recorrente, não informou que se tratava de uma situação urgente;
37. Tendo informado que era apenas um quadro de agitação do doente;
38. Por tudo isso, é por demais evidente que a Recorrente confiou na informação que lhe era transmitida pela M, enfermeira com vários anos de serviço e muita experiência hospitalar, ao prescrever pelo telefone, confiando ainda que a ausência de qualquer sinal de urgência por parte daquela ao descrever a situação clínica do doente, corresponderia à observação que fazia e que só a ela incumbia, atento o facto do doente se encontrar aos seus cuidados na enfermaria.
39. Tendo a Enfermeira tardiamente comunicado o estado critico que a vitima se encontrava a ora Recorrente, a qual se deslocou imediatamente à enfermaria, mas já nada podendo fazer para alterar o que veio a acontecer.
40. Sendo também certo, que a ora Recorrente, na altura em que o estado de saúde da vitima se agudizou, a mesma se encontrava no Bloco Operatório a participar como medica anestesista numa operação que ai decorria.
41. Por tal não se vislumbra o porquê de os valores indemnizatórios fixados estarem repartidos de igual modo entre as duas Demandadas.
42. Na havendo assim diferenciação do quantum indemnizatório, mas havendo diferenciação na intensidade da culpa.
43. Porquanto impugna-se os montantes indemnizatórios fixados, por não terem, e como os juízos
de equidade assim o dizem, diferenciado os valores e ter que ser de montante inferior para a ora Recorrente.
44. Tendo resultado da sentença que a culpa da outra demandada é mais intensa, não se vislumbra o porque dos valores fixados a pagar em termos indemnizatórios sejam de igual montante.
45. Do supra exposto resulta que a sentença recorrida violou o disposto nos arts.º 18º, 32º n.º 2 todos da Constituição da República Portuguesa visto que ainda não existe sentença de condenação, transitada em julgado, no processo-crime, o qual originou o pedido de ndemnização civil ora em crise, pois do mesmo foi interposto recurso para a Relação ainda não havendo decisão.
46. A sentença recorrida violou ainda o disposto no art.º 26º n.3 do Código de Processo Civil por força do n.º 2 do Decreto – Lei n.º 48501 de 26/11/67. Como violou o preceituado no art.º 495º do CPC .
47. A sentença recorrida violou ainda as regras dispostas no art.º 8º n.3 do Código Civil.
NESTES TERMOS E nos melhores de Direito aplicável, deverá:
I. Ser declarada a nulidade da sentença recorrida, por violação dos dispostos no art.º art.º668. n.º1 d) e segunda parte do n.º4 do mesmo artigo do CCP; por força do art.494.º e) do mesmo diploma;
II. Ser declarada a ilegitimidade passiva da Arguida, com a consequente absolvição da instância;
E no caso de assim o não ser decretado, e por mera prudência que o dever de patrocínio assim o obriga a:
III. Serem reduzidos os valores a título de indemnização conforme os quesitos supra 35. 36. 37.
IV. Serem reduzidos para metade do valores atribuídos à outra Demandada (Enfermeira) porquanto da sentença resulta que a culpa da ora Recorrente é menos intensa assim se fazendo a boa e costumada JUSTIÇA!
3.2 Recurso da Demandada M quanto à parte cível:
1ª -A sentença recorrida não se pronunciou e desconsiderou completamente os fundamentos de facto e de direito constantes da contestação que a recorrente apresentou ao pedido de indemnização civil, a qual se tem aqui por inteiramente reproduzida.
2ª -O Hospital Egas Moniz era à data dos factos uma entidade pública colectiva, como se demonstrou na peça processual identificada na conclusão anterior.
3ª -A Recorrente era então titular de uma relação pública de emprego, na modalidade de funcionária, e exercia as funções que lhe eram cometidas em nome e no interesse da referida entidade pública, no âmbito das atribuições e competências desta, numa relação de comitente/comissário.
4ª -A recorrente foi condenada no processo penal pela prática de um crime por negligência e não negligência grave.
5ª -Ou seja, a esta luz, a Recorrente não agiu com a diligência e o zelo manifestamente inferiores ao normalmente devido.
6ª -Nestas circunstâncias, condenada a recorrente por um crime meramente negligente, a acção de indemnização sob impugnação devia ter sido proposta apenas contra o Estado / Hospital Egas Moniz (cfr. Maria José Rangel Mesquita, in Responsabilidade Civil Extracontratual da Administração Publica e Ac. do S.T.A., de 3-06-2004, Procº nº 047722, 1ª Subsecção, do C.A.).
7ª -A sentença a quo não distingue a responsabilidade penal da responsabilidade civil ou funcional.
8ª -Com efeito, a responsabilidade penal é pessoal e, a este título, a Recorrente já foi punida no respectivo processo, sendo que a responsabilidade civil ou funcional é da entidade pública colectiva, a quem a recorrente, em seu nome, prestava a sua actividade, no âmbito das atribuições e competências e da relação de comitente/comissário desta entidade.
9ª -A sentença recorrida enferma de nulidade por omissão dos fundamentos de facto sobre que pudesse sustentar a decisão de improcedência de excepção de ilegitimidade ou, quando assim não se entenda, de erro de julgamento por insuficiência de fixação da matéria de facto, nos termos do artº 668º, nº 1, al b) e d) do C.P.C..
10ª -Enferma ainda de erro de julgamento por errónea interpretação e aplicação do nº 1 do artº 2 do DL nº 48051, porquanto o pedido de indemnização civil devia ter sido proposto apenas contra a entidade publica colectiva, Hospital Egas Moniz, uma vez que a Recorrente foi condenada no processo pela prática de um crime meramente por negligência, sendo, assim, a Recorrente parte ilegítima no presente processo de pedido de indemnização civil.
11ª -Porém, em qualquer caso, sem conceder quanto à conclusão anterior, nunca podia estar neste processo desacompanhada do Estado / Hospital Egas Moniz.
12ª -Efectivamente, a Recorrente encontrava-se com o Estado / Hospital Egas Moniz numa relação comitente/comissário, determinando esta relação, por natureza, uma relação incindível jurídico-processual de litisconsórcio necessário passivo.
13ª -Tendo o pedido indemnizatório sido proposto apenas contra a Recorrente, esta, não podendo estar no processo respectivo desacompanhada do Estado, é para ilegítima, pelo que a sentença recorrida ao ter preterido e violado o litisconsórcio necessário passivo incorreu ainda aqui em erro de julgamento por errada interpretação e aplicação do artº 22º da C.R.P. e 28º do C.P.C., em leitura conjugada.
Termos em que, com o douto suprimento de V. Excelências, que se requer, deve dar-se provimento ao presente recurso e, em consequência, revogar-se ou declarar-se a nulidade da sentença recorrida, com todas as consequências legais.
3.3 Resposta dos assistentes aos recursos das Demandadas
1 - O douto Tribunal da Relação de Lisboa, decidiu, por decisão transitada em julgado, que o Tribunal a quo é o competente para decidir sobre o pedido de indemnização cível.
2 - Na douta decisão pode ler-se claramente que “o processo penal é, por definição, suficiente, com capacidade para acolher e decidir todas as questões relacionadas com a responsabilidade criminal do individuo…”
3 - O pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos especificamente enunciados.
4 - Ora, no caso em apreço, os demandantes fundaram o seu pedido de indemnização cível na prática de um crime e, por isso, deduziram-no no processo penal, em função do princípio da adesão da acção civil à acção penal.
5 - Por conseguinte, tem toda a razão a douta decisão, ao decidir que, tal como os demandantes configuraram o pedido e tendo em conta a causa de pedir, é indiscutível que as demandadas aqui recorrentes são parte legitima porque têm interesse em contradizer o mesmo.
6 - As Recorrentes parecem pretender que um médico ou enfermeiro, porque se encontram em funções, no espaço físico do Hospital, poderá praticar quaisquer crimes, pois no entender de ambas as recorrentes, a responsabilidade civil decorrente da pratica do crime terá sempre que ser assacada ao Hospital.
7 - Ora tal seria completamente inconstitucional, pois corresponderia a considerar-se que determinados cidadãos têm mais direitos e privilégios, só porque têm a profissão de médicos ou enfermeiros, o que sabemos não ser constitucionalmente admissível.
8 - Também não é possível considerar-se que os actos praticados e que deram origem à condenação penal nos presentes autos, sejam classificados como actos de gestão pública.
9 - Pelo menos, não se vislumbra possível, num Estado de Direito democrático, haver cidadãos com mais direitos que outros e inatingíveis sob o ponto de vista da responsabilidade civil pela prática de crime.
10 - Os actos praticados, obviamente nunca poderão ser considerados de gestão pública, são sim actos decorrentes da prática de crime.
11 - Quanto à definição de actos praticados no exercício das suas funções, a interpretação constitucionalmente adequada implica necessariamente que estejamos diante de actos funcionais, pelo que a norma (DL 48051) deverá ser objecto de uma interpretação conforme a Constituição (art.22 da C.R.P.).
12 - Por contraposição a actos pessoais (praticados fora do exercício das suas funções do lesante ou praticados durante esse exercício mas não por causa deles), os actos funcionais caracterizam-se por se realizarem no exercício das funções desempenhadas tendo em vista a prossecução dos interesses públicos cometidos à pessoa colectiva em que se integra, e por causa desse exercício (e não meramente por ocasião do mesmo).
13 - Sobre a distinção entre actos pessoais e actos funcionais, cf., v. g., Marcello Caetano, Manual de direito administrativo, Vol. II, 10.º ed., pp. 1228 e ss., como afirma o Autor, a distinção vai efectuar-se em termos de averiguar “se o facto praticado representou o legítimo exercício da competência para fins de interesse público ou, antes, um abuso de autoridade com excesso do que no caso exigia para cumprimento das funções (op. Cit., p. 1230).
14 - A responsabilidade civil dos médicos admite ambas as formas previstas na lei, a responsabilidade contratual ou obrigacional e a responsabilidade extracontratual, delitual ou aquiliana.
15 - Se, no desempenho das suas funções e por sua causa, tiver o médico procedido com dolo, o mesmo responde civilmente perante o titular dos direitos ou interesses legítimos em causa, sendo a pessoa colectiva de direito público solidariamente responsável, por se verificar culpa na escolha do referido funcionário ou agente (culpa in eligendo).
16 - Não existindo uma relação contratual entre o médico e o paciente, a responsabilidade pelo acto médico assume exclusivamente natureza extracontratual.
17 - Estamos perante a prática de um crime de homicídio e não de um mero ilícito qualquer.
18 - Se o acto ou a omissão tiver sido praticado com culpa leve, é o hospital exclusivamente responsável pelos danos causados, nos restantes casos, se o acto ou a omissão do médico tiver sido praticado com dolo ou com diligência e zelo manifestamente inferior àquele a que se encontrava obrigado atendendo ao cargo desempenhado, o médico responde perante o paciente, sendo obrigado a indemnizá-lo.
19 - Mas quando estamos perante a prática de um crime, o elemento gerador da responsabilidade é um comportamento não só ilícito, mas também criminal, pelo que aqui apenas poderá ser responsável as arguidas/demandadas.
20 - A perspectivação da responsabilidade civil extracontratual como “remédio” para a violação de direitos fundamentais talqualmente se encontra consagrada no art.22.º da CRP não se restringe à responsabilidade por actos ilícitos e culposos (stricto sensu), mas abrange igualmente uma responsabilidade de algum modo objectiva resultante do funcionamento anormal dos serviços públicos.
21 - Por conseguinte, contrariamente ao alegado pelas Recorrentes, não subsiste qualquer nulidade na douta decisão em crise, resultando antes do cumprimento de uma decisão superior.
22 - O valor de 65.000 euros pagará pouco mais de um carro, pergunta-se, uma vida vale isso – o preço de um carro!?
23 - O recurso à analogia não é possível neste processo, como a Recorrente não deveria desconhecer.
24 - E não é possível por duas razões muito simples:
- A primeira é porque não existe nenhum caso análogo a este (a morte de um jovem, com 30 anos, após ter sido submetido a uma intervenção simples para retirar um quisto no pescoço, que morreu asfixiado numa cama de uma hospital, a pedir ajuda durante horas, indignado e revoltado, num sofrimento atroz, até ao ultimo suspiro), é demasiado bárbaro o que aconteceu, quanto mais a existência de um caso semelhante;
- A segunda é porque, para se aplicar a analogia, é necessário que o caso omisso não constitui objecto de nenhuma disposição legal (Pires de Lima e Antunes Varela, código civil anotado, vol. I, Coimbra editora).
25 - Por conseguinte, não tem qualquer sentido falar-se do recurso à analogia, nem a menção aos valores constantes da Portaria n.º377/2008, quanto às vítimas de acidentes de viação, que mereceram tão grande contestação.
26 - A Recorrente para justificar a sua tese vai buscar valores fixados para o dano morte em 1996, desactualizadissimos como é óbvio, pois já passaram 15 anos!
27 - Muito mal estaríamos se a jurisprudência se pautasse por valor fixados há 15 anos!
28 - O último valor apresentado pela Recorrente, que não anda longe, apesar de nada se assemelhar ao caso em apreço, foi fixado em 2008.
29 - A recorrente M, apesar da sua exaustiva procura dos valores mais baixos até hoje fixados, só demonstra que os valores fixados na douta sentença ficaram aquém do que deveria, pois apresenta valores desactualizados, e vitimas nada comparáveis com a situação.
30 - Por conseguinte, a recorrente não apresenta qualquer fundamento razoável para a alteração deste valor, devendo manter-se inalterado.
31 - Quanto à indemnização pelo sofrimento da vitima antes de morrer, como bem sabe a recorrente, o valor foi fixado em função do sofrimento, dor e presciência da morte pelo C antes de morrer.
32 - É pelo grau de sofrimento da vítima antes de morrer (que deve ter sido atroz), que se pauta o valor de indemnização e não pelo grau de culpa do agente e muito menos pelo facto de haver mais responsáveis, pois como se sabe, a responsabilidade é solidária podendo o pagamento ser exigido a qualquer um deles.
33 - O valor fixado a título de danos não patrimoniais é impossível de reconstituir a situação que existiria, se o facto danoso se não tivesse verificado.
34 - Por isso, o tribunal concedeu ao lesado a indemnização capaz de indirectamente o compensar pelo sofrimento causado, pois não é compensável o sofrimento de uma pessoa que durante horas asfixia lentamente, a pedir ajuda, numa cama de hospital, incrédulo, revoltado e que apesar de ter lutado pela vida até ao último suspiro, assiste incrédulo à sua própria morte.
35 - O sofrimento passado pela vítima que escrevia constantemente “falta cada vez + ar”, “+ ar”, chegou a perguntar “está tudo doido?”, “vou morrer”, etc, é evidente que a morte nas condições em que foi - por asfixia lenta - é de um sofrimento inimaginável.
36 - Como refere a maioria da jurisprudência, embora o dano moral não possa ser pago (apagado) com dinheiro, pode, todavia, tentar ser compensado (infelizmente nos casos de perda de um filho, a dor nunca se apaga e não há valor algum que compense um pai pela morte de um filho).
37 - Como refere a maioria da jurisprudência, essa tentativa de compensação, possibilitando o dinheiro satisfações de vária ordem, deve dar-se ao ofendido, no caso de danos morais, uma quantia que se considere adequada a proporcionar-lhe alegrias ou satisfações que de algum modo contrabalancem as dores, pesares ou sofrimentos que o ofensor lhe tenha causado. Uma indemnização assim concebida será de cálculo difícil. Poderá mesmo dizer-se que nunca ela poderá ser computada com inteiro rigor e precisão e dependerá sempre, em larga medida, do prudente arbítrio do juiz.
38 - Deverão, assim, ser tidas em conta as circunstâncias do caso concreto, as regras da boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das realidades da vida e não mero um juízo comparativo de jurisprudência.
39 - Como vem sendo sublinhado pelo STJ, essa indemnização nunca se poderá reconduzir a um papel meramente simbólico, antes devendo representar uma adequada compensação, aferida segundo critérios de equidade. A jurisprudência vem, de resto, acentuando cada vez com mais insistência, a ideia de que está ultrapassada a época das indemnizações simbólicas ou miserabilistas para compensar danos não patrimoniais. A indemnização tem de ser significativa, o que não quer dizer que possa ser arbitrária. (STJ, 55/06.4PTFAR.E1.S1, www.dgsi.pt) 40 – O valor fixado a título de danos morais aos demandantes está aquém do sofrimento que estes têm vivido, pois não há valor que pague a um pai a morte de um filho.
41 - Não poderá haver diferenciação do quantum indemnizatório pois é solidária a responsabilidade das demandadas (ar. 497.ºCC).
42 - Nada se tendo dito, e mais uma vez, andou bem a douta decisão recorrida, presumem-se iguais as culpas das pessoas responsáveis.
43 - Ao contrário do que alega a Recorrente, e conforme consta da douta sentença proferida a 20 de Junho de 2008 (que apenas decidiu quanto à parte criminal), considerou-se que foi mais expressiva a intensidade da violação dos respectivos deveres de cuidado e diligencia relativamente à demandada e Recorrente M.
44 - Por conseguinte, mais uma vez, não subsiste qualquer razão ou fundamento à Recorrente mais uma vez pois a diferenciação do quantum indemnizatório só lhe seria prejudicial.
45 - Não existe listisconsórcio necessário passivo, pois não existe lei que exija a intervenção simultânea da demandada e do Hospital na relação controvertida.
46 - Nem poderia haver, pois a responsabilidade é solidária, podendo o credor exigir de qualquer dos devedores toda a prestação, ou parte dela (art.519.º CC).
47 - Estamos perante a prática de um crime, pelo que aqui apenas poderão ser responsáveis as arguidas/demandadas.
48 - Não se trata aqui de uma responsabilidade pelo risco, mas sim de uma responsabilidade extracontratual decorrente da prática de um crime.
49 – Deverão manter-se os valores indemnizatórios fixados que se encontram aquém do sofrimento do falecido e dos pais.
Pedindo a devida atenção para o perigo de prescrição do presente caso, Confirmando a douta decisão recorrida, farão Vossas Excelências a Acostumada Justiça!
Os recursos foram admitidos.
*
Subidos os autos a esta Relação, a Ex.ma Senhora Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer em que sustenta, com dúvidas, que a alteração de factos que foi comunicada aos sujeitos processuais reveste a natureza de “alteração não substancial de factos” prevista no art. 358º do Código de Processo Penal porque da Acusação/pronúncia consta a descrição do teor telefonema efectuado pela arguida M para a arguida M, nos mesmos termos em que vem a ser acolhido pela sentença, o facto de a arguida M ter prescrito, via telefónica, a administração de hidroxizina e mantém a imputação à arguida M da prática de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo art. 137º nº1 do CP, tal como já constava da Acusação/pronúncia.
Relativamente à impugnação da matéria de facto por existência de erro de julgamento – art. 412º nº3 e 4 do Código de Processo Penal, considerando que a questão central reside na credibilidade dada às declarações prestadas pela arguida M quanto ao teor do telefonema que esta efectuou para a arguida M, pelas 19h 30m, considerando que se deve conferir maior credibilidade ao teor do depoimento do médico cirurgião, testemunha A merece-nos ponderação, quando também ele afirma que a arguida M, no telefonema que lhe faz pelas 20h 10m, lhe não transmitiu que o doente C se queixava de falta de ar e de que ia morrer, do perito J, enquanto o depoimento prestado pela auxiliar de acção médica L deve ser descredibilizado - surgindo como inquietante a sua memória cirúrgica revelada por um lado na capacidade que esta testemunha revela em julgamento de conseguir, cirurgicamente, estar presente na Sala das Enfermeiras no exacto momento em que ocorrem os telefonemas da enfermeira M para a médica anestesista M (às 19h 30 m) e ainda no exacto momento do telefonema da arguida/enfermeira M para o médico cirurgião A e por outro lado na incapacidade de recordar outros factos essenciais. Refere que esse depoimento também não se mostra coerente também face aos depoimentos das testemunhas afectivamente ligados à vítima, no que estes revelam, em sintonia com os depoimentos de A e da arguida M, da postura desvalorizadora da gravidade da situação adoptada pela arguida M.
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Pronunciaram-se sobre o parecer a arguida M e os assistentes sustentando que a sentença recorrida não merece censura ao condenar a arguida M pelo crime de homicídio negligente.
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Foram observadas as formalidades legais, nada obstando à apreciação do mérito do recurso (arts. 417º nº 9, 418º e 419º, nºs. 1, 2 e 3, al. c) do Código de Processo Penal na versão introduzida pela Lei 48/07 de 29.8).

II – FUNDAMENTAÇÃO
As relações reconhecem de facto e de direito, (art. 428º do Código de Processo Penal) e, in casu, foi interposto recurso sobre a matéria de facto pela Recorrente M.
É jurisprudência constante e pacífica que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas (art.s 403º e 412º do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal) .
*
Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões dos Recorrentes, as questões a decidir são as seguintes:
Recurso penal interposto pela arguida M.
Intempestividade da discordância do recorrente relativamente à nulidade da sentença por violação do disposto nos artºs 358º e 359º do Código de Processo Penal.
Nulidade da sentença por violação do disposto nos art.s 358º, 359º e 379º do Código de Processo Penal
Nulidade por omissão de pronuncia (art. 379º al. c) do Código de Processo Penal).
Recurso de impugnação da matéria de facto provada (factos 70, 72, 73, 74 e 93).
Contradição insanável da decisão sobre a matéria de facto.
Erro notório.
Violação do Principio in dubio pro reo.
Imputação do elemento subjectivo do crime de homicídio negligente.
Recurso penal interposto pelos assistentes.
Nulidade por omissão de pronúncia sobre o pedido de indemnização civil.
Ilegitimidade ou falta de interesse em agir.
Medida das penas.

Recurso da parte cível interposto pelas arguidas/demandadas M e M.
Questão Prévia: Ilegitimidade passiva das arguidas/demandadas.
Valores indemnizatórios.

A ordem lógico-jurídica de conhecimento das questões impõe que se comece por conhecer das questões prévias ou incidentais, pela seguinte ordem:
Nulidade por omissão de pronúncia sobre o pedido de indemnização civil.
Ilegitimidade ou falta de interesse em agir.
Questão Prévia: Ilegitimidade passiva das arguidas/demandadas.
Intempestividade da discordância do recorrente relativamente à nulidade da sentença por violação do disposto nos art.s 358º e 359º do Código de Processo Penal.

Seguindo-se o conhecimento das demais questões de acordo com a ordem supra exposta.
*
Sobre a questão da ilegitimidade passiva das Demandadas para o pedido de indemnização civil, o tribunal a quo decidiu:
Da Legitimidade Passiva:
Em sede de contestação vieram as demandadas M e M suscitar a sua ilegitimidade passiva.
Para tanto invocou a primeira ser funcionária pública e prestar o seu trabalho no Hospital Egas Moniz pertença do Estado Português a quem é imputável o resultado da sua actuação no exercício da sua actividade profissional.
Por seu turno a segunda invocou ser funcionária pública e prestar o seu serviço do Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental EPE que tem sobre si a responsabilidade do especial risco que está sujeita no decurso da sua actividade profissional nos termos do Regulamento de Exercício Profissional dos Enfermeiros.
A causa de pedir assenta em factos ilícitos praticados no exercício das suas funções e por causa delas pelo que deve ser aplicado o art. 2º do D.L nº48051 de 21 de Novembro de 1967 e considerar que a responsabilidade é do Estado e no do agente.
Uma vez que o pedido de indemnização civil enxertado em processo penal não admite articulado de resposta a eventuais excepções deduzidas os assistentes e demandante pronunciaram-se em sede de alegações finais pugnando pela improcedência da excepção por estar em causa uma responsabilidade emergente da prática de crime.
Cumpre decidir:
No que concerne à legitimidade singular, diz o art. 26° nº1 do Código de Processo Civil que o autor é parte legítima quando tem interesse em directo em demandar, o qual se exprime, de acordo com o n°2 do mesmo preceito, pela utilidade derivada da procedência da acção e o réu é parte legítima quando tem interesse directo em contradizer, o qual, nos termos do mesmo n°2, se determina pelo prejuízo decorrente dessa procedência.
Trata-se de um pressuposto processual relativo às partes e à sua posição perante o objecto da causa, procurando-se a coincidência entre os sujeitos que em nome próprio impulsionam e conduzem o processo e aqueles em cuja esfera jurídica a decisão judicial irá produzir efeitos.
Porém, é da verificação deste, como dos restantes pressupostos processuais, que depende o conhecimento do mérito da causa, pelo que a pertinência das partes em face do objecto inicial do processo, em que consiste a legitimidade, é prévia ao conhecimento do fundo da causa.
O critério de determinação da legitimidade das partes assenta, na falta de indicação legal em contrário, na titularidade da relação material controvertida, tal como esta é configurada pelo autor, na petição inicial.
Tratando-se de legitimidade singular deve entender-se que é através, antes de mais, do pedido e, caso, se afigure necessário, da respectiva causa de pedir que se determina a legitimidade.
No caso vertente os assistentes e demandante deduziram um pedido de indemnização civil contra as arguidas e demandadas reclamando o ressarcimento de danos na sua tese emergentes da prática de crime por aquelas cometido.
Tal como foi configurado o pedido e tendo em conta a causa de pedir é indiscutível que as demandadas são parte legítima porque têm interesse em contradizer o mesmo.
Com efeito é às demandadas que nestes autos é imputada a prática de ilícito criminal e é às mesmas que é reclamado o pagamento dos danos sofridos em consequência de tal crime.
O pedido não é dirigido contra as demandadas na qualidade de funcionárias de um serviço público nem contra o Estado.
Assim, julgo improcedentes as excepções de ilegitimidade deduzidas declarando que as demandadas são parte legítima.
É a seguinte a matéria de facto assente nas sentenças recorridas:
MATÉRIA DE FACTO PROVADA:
A) Matéria de Facto Provada resultante da sentença já proferida nos autos relativamente à matéria crime:
1- Em 8 de Junho de 2002, C foi observado pela primeira vez no Serviço de Urgência do Hospital de S. Francisco Xavier devido a uma fístula da face anterior do seu pescoço com cinco anos de evolução e que drenava líquido seroso.
2- Na sequência dessa observação C foi encaminhado para a consulta externa de Cirurgia Plástica do Hospital Egas Moniz onde veio a comparecer no dia 27 de Junho de 2002 tendo sido observado pelo médico A que verificou a existência de uma fístula no 1/3 inferior da face anterior do pescoço com drenagem sistemática de líquido seroso há cerca de cinco anos, estabeleceu diagnóstico de recidiva de fístula do canal tireoglosso e determinou a realização de uma ecografia cervical.
3- Em 11 de Julho de 2002, após a realização da referida ecografia cervical, C foi novamente observado em tal consulta externa pelo Dr. A que lhe fez proposta de intervenção cirúrgica por ser a única forma de tratamento de tal patologia que provocava àquele, além do mais, infecções de repetição.
4- Por tal ter sido aceite por C o mesmo foi encaminhado para a consulta de anestesia, onde fez referência a uma rinite alérgica e a hábitos tabágicos, à data de cerca de 3 cigarros por dia sendo que em 1 de Agosto de 2002 foi considerado apto da anestesia.
5- Foram realizados os exames complementares pré-operatórios, os quais não revelaram alterações.
6- Como antecedentes pessoais, C, tinha sofrido, respectivamente, aos dois e cinco anos de idade intervenções cirúrgicas a quistos cervicais e, ainda, uma intervenção cirúrgica a um joelho em 1997 sendo que as mesmas decorreram sem intercorrências.
7- Às 12H46 do dia 27 de Agosto de 2002, C foi admitido no quarto 801 da Enfermaria do Serviço de Cirurgia Plástica e Reconstrutiva Maxilo-Facial e Urologia B do Hospital Egas Moniz (doravante Enfermaria) a fim de fazer a preparação para a intervenção cirúrgica proposta - excisão de quisto do canal tireoglosso fistulizado - e a ter lugar no dia seguinte.
8- Tinha sido feito estudo médico prévio e adequado a tal intervenção e exceptuando a patologia referida C estava bem de saúde e bem disposto.
9- Cumprido o protocolo médico e de enfermagem de preparação para intervenção cirúrgica, no dia seguinte, 28 de Agosto de 2002, C deu entrada no bloco operatório pelas 11H50 e na sala de operações pelas 13H10.
10- Tendo sido efectuada a intervenção cirúrgica prevista, a qual teve o seu início pelas 13H40 e o seu termo antes das 15H35 e que decorreu sem quaisquer problemas ou intercorrências.
11- A intervenção cirúrgica foi efectuada pelo Dr. A à data do Internamento Complementar de Cirurgia Plástica e Reconstrutiva e sob a tutela e auxílio de uma Assistente Graduada da mesma especialidade, Drª L, tendo sido anestesista a Drª I.
12- Em tal intervenção adoptou-se a técnica ou operação de Sistrunk sendo esta a mais utilizada e a mais indicada para tal patologia.
13- De acordo com a mesma a abordagem é realizada através de incisão cutânea cervical horizontal ao nível do quisto.
14- De seguida procede-se à dissecção cuidada do quisto e/ou canal até ao osso hióide.
15- Após a secção da parte média do osso, prossegue-se a dissecção até ao foramen caecum, removendo também uma pequena porção de tecido adjacente (da base da língua).
16- O encerramento inicia-se pela sutura da hipofaringe/base da língua, colocação de dreno e depois por planos até à pele.
17- Neste caso concreto, intra-operatoriamente verificou-se que a fístula ia até ao osso hióide e anexo ao mesmo persistia um quisto não removido e/ou recidivado.
18- Foi, então, efectuada a remoção de 1 cm do corpo do hióide e quistectomia, identificado trajecto fistuloso até à base da língua e feita remoção de elipse da mucosa lingual com cerca de 1 cm de maior diâmetro englobando o orifício de abertura da fístula.
19- A lesão foi abordada pelas duas cicatrizes das anteriores intervenções a que C fora já sujeito, respectivamente, com dois e cinco anos de idade.
20- Por último, foi fechado o plano da mucosa, as fáscias do pescoço, deixando dreno passivo (lâmina de silastic) a atravessar os planos e exteriorizado através da própria cicatriz do pescoço.
21- Por se tratar de uma reintervenção havia risco acrescido a nível do gesto cirúrgico dado que a fibrose cicatricial resultante das intervenções anteriores dificulta a dissecção das estruturas e altera a anatomia regional normal o que aumenta a possibilidade de lesão de vasos e nervos, nomeadamente, o hipoglosso e laríngeo superior.
22- Não obstante neste caso concreto a intervenção cirúrgica decorreu sem complicações ou intercorrências.
23- Após a intervenção cirúrgica e cerca das 16H00 C foi transferido para a Unidade de Recobro Pós-Anestésico – URPA - (doravante Recobro) de que era responsável, à data e por se encontrar de serviço de urgência, a médica anestesista e primeira arguida Drª M.
24- A quem, além do mais, foi verbalmente transmitido pela médica anestesista Drª I com intervenção na cirurgia efectuada que a mesma tinha decorrido sem intercorrências.
25- No protocolo operatório consta apenas a indicação da técnica cirúrgica utilizada na intervenção cirúrgica realizada a C - operação de Sistrunk e fistulectomia.
26- No registo operatório consta a técnica anestésica utilizada na intervenção cirúrgica realizada a C.
27- Na prescrição terapêutica para o pós-operatório de C consta, além do mais, a avaliação uma vez por turno dos parâmetros vitais do mesmo.
28- A primeira arguida não sabia qual a concreta extensão da técnica utilizada na intervenção cirúrgica realizada a C, nomeadamente, que a mesma implicava compromisso da base da língua e intervenção no osso hióide.
29- A primeira arguida não se informou junto da colega anestesista Drª I da extensão da técnica de Sistrunk utilizada na intervenção cirúrgica realizada a C.
30- Durante o período em que permaneceu no Recobro C apresentou-se muito ansioso, pedindo com insistência que lhe tirassem a sonda naso-gástrica porque o incomodava.
31- Durante o período em que permaneceu no Recobro e até ao momento em que lhe foi dada alta C não revelou dispneia, sudorese, cianose, adejo nasal, tiragem supra-esternal ou supra clavicular, nem infra diafragmática.
32- Cerca das 17H00 a primeira arguida foi chamada ao Recobro uma vez que o penso cirúrgico de C se apresentava repassado de sangue e a sonda naso-gástrica continha no seu interior algum sangue deglutido.
33- Foi então efectuado novo penso da ferida operatória na presença da primeira arguida, a qual constatou que não havia hemorragia activa da ferida operatória, o dreno silastic encontrava-se funcionante e os parâmetros vitais se mantinham estáveis.
34- Por determinação da primeira arguida foi também colhido a C sangue para a realização de um hemograma.
35- Após receber os resultados da análise que considerou normais a primeira arguida, observou uma vez mais C e na conversa que manteve com o mesmo este não lhe referiu nem apresentou à observação qualquer dificuldade respiratória ou rouquidão.
36- Nessa altura, C demonstrou vontade de ir para o quarto para receber visitas.
37- Cerca das 18H30 foi pela primeira arguida dada alta do Recobro a C.
38- De acordo com as leges artis, o estado do doente deve ser avaliado e registado enquanto permanece no Recobro, nomeadamente no momento da admissão e no momento da alta.
39- Na referida avaliação, deverá ser utilizada, além de outros critérios de observação, a escala de Aldrete sendo esta uma escala de avaliação da recuperação anestésica em que até ao valor máximo de dez se avaliam os seguintes parâmetros: saturação de O2, consciência, circulação, ventilação e actividade muscular.
40- Na referida avaliação e no caso de doentes em coma deverá ser utilizada a escala de Glasgow.
41- De acordo com o Regulamento do Recobro “É obrigatório o preenchimento de folha de registos de Enfermagem adoptada na URPA, em que constará a evolução do doente, a terapêutica, a avaliação de critérios de alta e a hora a que esta se verifica, com a assinatura do anestesista responsável”.
42- A duração da permanência de um doente no Recobro é determinada pela observação de critérios que permitem a alta, critérios esses avaliados, além do mais, através de uma das duas escalas supra referidas.
43- O estado de C foi pela primeira vez avaliado, por volta das 16H00, de acordo com a Escala de Aldrete e registado na folha de Registo da Unidade de Recuperação Pós-Anestésica com o Score de Recuperação Pós-Anestésica.
44- Na avaliação efectuada pela arguida previamente à alta do Recobro e de acordo com a Escala de Aldrete, C tinha os seguintes valores:
Saturação de O2----2
Consciência----2
Circulação----2
Ventilação----2
Actividade Muscular----2, num total de dez.
45- Tal avaliação não foi registada na referida folha.
46- Assim, os profissionais de saúde seguintes que contactaram com C não sabiam quais os critérios de acordo com a escala de Aldrete utilizados pela primeira arguida para dar a alta.
47- O preenchimento de folha referido em 43 competia aos enfermeiros do Recobro.
48- O quarto 801, atribuído no dia anterior a C, situa-se no piso 8 do Hospital Egas Moniz e ao fundo de um corredor comprido, pelo qual se tem acesso aos doze quartos da Enfermaria em causa com um total de trinta e uma camas.
49- Desses doze quartos oito eram destinados a doentes de Cirurgia Plástica num total de vinte e uma camas e quatro a doentes de Urologia B num total de dez camas.
50- No dia 28 de Agosto de 2002, para além, de C estiveram na referida Enfermaria dez pacientes.
51- O gabinete de enfermagem situa-se à entrada e no início do referido corredor.
52- O quarto de C dispunha de rede de gases medicinais (oxigénio, ar comprimido medicinal e vácuo), calhas técnicas hospitalares com iluminação ambiente e de leitura, convector do sistema de aquecimento central do Hospital, tomadas eléctricas com alimentação assegurada por gerador de emergência, uma linha telefónica e, por último, uma unidade de chamada de enfermeiros que se encontrava inoperacional.
53- Por volta das 18H50 foi efectuada a transferência de C do Recobro para Enfermaria tendo as intercorrências sido verbalmente transmitidas pelo enfermeiro do Recobro J à enfermeira M.
54- Durante a transferência de C do Recobro para Enfermaria este apresentava-se ansioso e agitado, fazendo gestos com a mão em direcção ao seu pescoço.
55- C, quando deu entrada na Enfermaria, continuava ansioso e agitado, queixava-se de falta de ar e a sua respiração era acelerada, o que foi desde logo percepcionado pela segunda arguida.
56- Na enfermaria C ficou aos cuidados de vigilância de duas enfermeiras de turno, a segunda arguida e Enfermeira G e a Enfermeira contratada M.
57- À chegada à Enfermaria C era esperado por duas familiares, designadamente, pela sua irmã, C e sua tia T que constataram o seu estado referido em 55.
58- Cerca das 19H30 chegou à Enfermaria a sua namorada C.
59- Durante o período compreendido entre as 19H00 e as 21H00 a segunda arguida deslocou-se ao quarto de C por três vezes, duas delas juntamente com a enfermeira M.
60- Da primeira vez foi no momento da entrada de C na Enfermaria e juntamente com a enfermeira M, outra para lhe administrar uma injecção e a terceira vez juntamente com a enfermeira M e pelas 21H00.
61- Logo no início foram trazidas a C compressas, um saco para o lixo, um urinol e gelo para colocar cerca de dez minutos de meia em meia hora na zona intervencionada.
62- Durante todo este período de tempo de duas horas, em que esteve sempre acompanhado ou pelas referidas familiares ou por estas e sua namorada, C queixou-se, sempre e constantemente, de sentir bastante dificuldade em respirar.
63- Por lhe ter sido recomendado pelas referidas enfermeiras que não falasse para não se esforçar, C passou a comunicar o que estava a sentir através de escritos em jornais e revistas.
64- Num exemplar da revista Nova Gente nº1354 de 28 de Agosto a 3 de Setembro de 2002 C escreveu, entre outras, as seguintes frases:
será que não vêem que estou mal
E se me engasgo
acalmar-me como? Eu não vou dormir assim
Não é melhor a ventilação
Estou mesmo mal
Tenho medo
Falta-me ar cada vez +
Eu é que sei o que estou a passar
Em pequeno não passei isto
levantem estou cada vez pior
Não respiro bem.
Vocês são médicos
Como vou dormir
Falta de ar. As pessoas estão doidas
65- Num exemplar do jornal Correio da Manhã do dia 27 de Agosto de 2002 C escreveu as seguintes frases:
Não consigo respirar bem
Vou ficar sozinho a noite
Falta-me + Ar
Eu amo-te e reza muito
66- Tais queixas foram transmitidas pelas familiares do doente às enfermeiras de serviço, segunda arguida e M.
67- A enfermeira M viu escritos de C.
68- A segunda arguida viu pelo menos um escrito de C.
69- Atentas as queixas e agitação de C, cerca das 19h30, a segunda arguida contactou a primeira arguida a qual o tinha assistido no Recobro, sendo tal contacto efectuado telefonicamente.
70- A segunda arguida transmitiu então à primeira arguida que o doente continuava bastante ansioso, com tossícula, referindo falta de ar e a afirmar que ia morrer.
71- A segunda arguida transmitiu, ainda, à primeira arguida que o doente estava agitado.
72- Perante tal informação, por telefone, a primeira arguida, deu indicação à segunda arguida para administrarem a C ½ formula de Hidroxizina IM (injecção intra muscular), ou seja, 50 mg de Atarax IM, o que foi feito logo após tal telefonema e pela segunda arguida.
73- Perante a informação prestada pela segunda arguida à primeira esta não se deslocou à Enfermaria para observar C, não deu instruções para o fazer regressar ao Recobro a fim de o aí observar e serem avaliados os seus parâmetros vitais, designadamente, com recurso ao monitor nem deu instruções para que fosse solicitada a presença na Enfermaria de outro médico de serviço a fim de observar aquele.
74- A primeira arguida depois de ter dado tal indicação e até ao momento em que a sua presença na Enfermaria foi solicitada através de bip não se deslocou à mesma para observar C nem contactou a segunda arguida ou a enfermeira M a fim de saber o efeito naquele da terapêutica por si indicada pelo telefone.
75-- Pelas 20H00, o Dr. A que estava nesse dia de serviço de urgência e de acordo com o sistema instituído presencialmente no Hospital de S. Francisco Xavier contactou a Enfermaria para saber o estado de C tendo falado com a enfermeira M.
76- Após tal contacto telefónico M informou a segunda arguida que o Dr. A ia jantar e que depois se deslocaria à Enfermaria para observar C.
77- Nessa altura a segunda arguida M contacta o Dr. A, cirurgião de urgência.
78- Assim, cerca das 20H10 a segunda arguida, ciente que a injecção de hidroxizina intra muscular por si administrada a C não tinha provocado alteração do estado do mesmo atentas as queixas relatadas pelos seus familiares, deu conhecimento ao Dr. A que C estava muito agitado, se queixava de falta de ar e de que ia morrer.
79- A segunda arguida deu-lhe ainda conhecimento de que C estava muito ansioso.
80- O referido médico informou-a que depois passaria na Enfermaria.
81- Após ter contactado o Dr. A e até às 21H00 a segunda arguida não voltou a contactar a primeira arguida, o Dr. A ou qualquer outro médico de serviço naquele hospital solicitando a presença destes junto de C ou informando-os do estado deste último.
82- Pouco tempo depois, a tia de C dirigiu-se ao gabinete de enfermagem e solicitou à segunda arguida e à enfermeira M que fossem ao quarto assistir àquele dadas as queixas que ele apresentava.
83- Poucos minutos depois, a segunda arguida e a referida enfermeira M, iniciam a distribuição dos fármacos aos restantes doentes do Serviço, iniciando a rotina pelo início do corredor, ou seja, pelos quartos mais afastados daquele onde se encontrava o doente C.
84- Cerca das 21H00, a segunda arguida e a enfermeira M chegam ao quarto de C e quando se preparavam para lhe administrar a terapêutica prescrita o mesmo ficou pálido com cianose nas mãos e nos lábios e sudorese.
85- É-lhe colocado oxigénio pela segunda arguida e nesse momento C fez uma contracção com rotação da cabeça para a esquerda.
86- Foi logo solicitada a presença da primeira arguida através de BIP.
87- A primeira arguida compareceu de imediato e encontrou C em paragem respiratória e midríase fixa à esquerda, com pulso filiforme e tensão arterial 50/30 mm Hg, sudorese e palidez.
88- Foi solicitado de imediato o carro de emergência e iniciadas pela primeira arguida manobras de reanimação com aplicação de ambu com oxigénio à face de C e solicitação dos tubos de intubação e laringoscópio.
89- A primeira tentativa de intubação não foi conseguida, verificou-se por laringoscopia a existência de extenso hematoma e sufusão hemorrágica de toda a região epiglótica e extensa sufusão da base da língua.
90- Durante cerca de 45 minutos a equipa de médicos presentes efectuou manobras de reanimação as quais não obtiveram resultado positivo, pelo que findas as mesmas foi declarado o óbito do doente C, o que ocorreu pelas 21H45.
91- A autópsia anatomo-patológica efectuada a C pelas 10H00 do dia 30 de Agosto de 2002 no Hospital Egas Moniz detectou, embebição hemorrágica dos tecidos moles da região cirúrgica com extensão aos planos superiores; marcado edema de toda a região glótica com diminuição franca do diâmetro da glote e embebição hemorrágica das estruturas dos andares superiores da laringe. Edema cerebral. Encravamento das amígdalas cerebelosas com sulco muito marcado. Pulmões com edema e congestão (pulmões de choque). Mucosa gástrica com múltiplas erosões sangrantes (erosões de stress). Conteúdo hemático no estômago. Pequeno quisto urinifero no parênquima renal esquerdo e estabeleceu como causa da morte do mesmo edema da glote e embebição hemorrágica do tecido periglótico.
92- No período pós-operatório e, pelo menos pelo período de vinte e quatro horas, é necessária uma vigilância apertada da ventilação e sinais vitais, pois pode ocorrer obstrução das vias aéreas superiores por edema/hemorragia, situação que, pode obrigar, designadamente, a traqueostomia de emergência, o que era do conhecimento das arguidas.
93- Com toda a actuação descrita e nomeadamente em 69 a 74 e 92 a primeira arguida omitiu um dever de cuidado e de diligência de que era capaz e a que estava obrigada em virtude da sua qualidade de médica e funções exercidas naquele dia naquele Hospital, actuação esta que conduziu à morte de C resultado que não representou como consequência possível da sua conduta.
94- Com toda a actuação descrita e nomeadamente em 55, 56, 59, 60, 63,66, 68 a 72, 76 a 83 e 92 a segunda arguida omitiu um dever de cuidado e de diligência de que era capaz e a que estava obrigada em virtude da sua qualidade de enfermeira e funções exercidas naquele dia naquele Hospital, actuação esta que conduziu à morte de C resultado que não representou como consequência possível da sua conduta
95- As arguidas sabiam que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
96- A primeira arguida é médica desde 000 e desde 000 médica anestesista no Hospital Egas Moniz a cujos quadros pertence desde 000.
97- Uma vez que não tem dedicação exclusiva aufere rendimentos provenientes do exercício de funções em tal Hospital e também de clínica privada num total de cerca de €5000,00 mensais.
98- A primeira arguida é casada sendo que o seu marido é também médico no … e aufere cerca de €1700,00 mensais.
99- A primeira arguida tem três filhos sendo que nenhum está a seu cargo.
100- A primeira arguida tem para, além dos encargos normais, a amortização mensal de empréstimo contraído para aquisição de habitação própria no valor mensal de cerca de €1100,00 e o pagamento do colégio frequentado pelos seus netos no valor de €360,00 mensais.
101- A primeira arguida é licenciada em Medicina.
102- A primeira arguida é tida como profissional rigorosa e competente.
103- Do seu Certificado de Registo Criminal nada consta.
104- A segunda arguida à data dos factos era enfermeira do Hospital Egas Moniz há cerca de 25 anos e daquele serviço desde 1996.
105- A segunda arguida foi aposentada compulsivamente e tem como rendimentos mensais a importância de cerca de €2000,00.
106- A segunda arguida é viúva tem uma filha universitária a seu cargo e ingressa, ainda, o seu agregado um filho que já trabalha.
107- A segunda arguida paga de renda de casa a importância de €90,00 mensais.
108 A segunda arguida tem o Curso Geral de Enfermagem.
109- A segunda arguida sempre foi tida como profissional exemplar, experiente, sabedora e correcta no trato com os utentes do serviço e demais profissionais de saúde.
110- Do Certificado de Registo Criminal da segunda arguida nada consta.
B) Matéria de Facto Provada resultante da reabertura da audiência relativamente à matéria civil determinada pelo Tribunal da Relação de Lisboa:
111- C nasceu no dia … em …
112- C é filho de O e de N.
113- C casou em …. com ….
114- O referido casamento foi dissolvido por divórcio decretado por sentença em …. e transitada em …..
115- C faleceu no dia 28 de Agosto de 2002 com o estado civil de divorciado.
116- C nasceu a … em …
117- E é filha de O e N.
118- O assistente N nasceu a ….
119- A assistente O nasceu a ….
120- C era pessoa activa, comunicativa, alegre e estimada por amigos e familiares de quem era solidário.
121- C durante duas horas sentiu que estava a sufocar.
122- C teve consciência de que ia morrer e sentiu um profundo sofrimento e revolta.
123- Em consequência da morte de C os assistentes seus pais perderam a alegria e o propósito de vida.
124- Os assistentes tornaram-se pessoas tristes, revoltadas e que evitam o convívio com os demais.
125- A demandante C era muito apegada ao seu irmão C que era o seu melhor amigo e confidente.
126- A demandante com a morte de seu irmão C sentiu dor, revolta e impotência.
127- Os assistentes perderam com a morte de seu filho C uma fonte de amparo na velhice e na doença.
MATÉRIA DE FACTO NÃO PROVADA:
C) Matéria de Facto Não Provada resultante da sentença já proferida nos autos relativamente à matéria crime:
I- A intervenção cirúrgica a C se iniciou pelas 13H00 e terminou pelas 15H15.
II- Na técnica de Sistrunk o dreno utilizado tenha de ser preferencialmente aspirativo.
III- Por se tratar de uma reintervenção havia riscos acrescidos no período pós-operatório.
IV- A primeira arguida não soubesse o que significava técnica de Sistrunk.
V- A primeira arguida não tivesse tentado informar-se junto dos colegas cirurgiões da extensão da técnica de Sistrunk.
VI- C tenha pedido para tirar a sonda naso-gástrica porque lhe dificultava a deglutição.
VII- A primeira arguida no Recobro deu indicação oral e administrada, em presença, de hidrocortisona 100 mg EV.
VIII- Não foi efectuada a avaliação do estado de C na altura em que lhe foi dada a alta pela primeira arguida.
IX- Os profissionais de saúde seguintes que contactaram com C após a alta do Recobro desconhecessem o seu estado.
X- À chegada à Enfermaria a tia de C, T tenha constatado que aquele tinha falta de ar e não conseguia sequer dirigir palavra.
XI- As frases não consigo respirar bem, vou ficar sozinho a noite, eu amo-te e reza muito tenham sido escritas na revista Nova Gente nº1354 de 28 de Agosto a 3 de Setembro de 2002.
XII- No telefonema efectuado, pelas 19H30, a segunda arguida tenha transmitido à primeira arguida que C estava sentado na cama.
XIII- A segunda arguida não tenha dado relevância às queixas de C que as suas familiares lhe transmitiam.
XIV- No telefonema efectuado pelas 19H30, a primeira arguida perguntou à segunda arguida quais eram os sinais e parâmetros vitais de C, se respirava bem e se era necessário ir ao pé do doente tendo sido informada de que as queixas de falta de ar não correspondiam à observação dos parâmetros vitais (não notava cianose, estridor, tiragem, nem adejo nasal ou sudorese).
XV- A enfermeira M tenha transmitido ao Dr. A que C se encontrava bem mas muito agitado e que já tinha vindo assim do recobro.
XVI- Pelas 20H40 a segunda arguida e a enfermeira M aguardavam que o fármaco administrado a C por ordem da primeira arguida contribuísse para o acalmar.
XVII- A tia de C se tenha deslocado ao gabinete de enfermagem cerca das 20H40 e por o ver cada vez mais aflito.
XVIII- A tia de C tenha dito à segunda arguida e à enfermeira M que C suava bastante.
XIX- Estas tenham respondido que iriam de seguida.
XX- Pelas 20H40, a segunda arguida tenha contactado o Dr. A e lhe tenha dado conta que a família de C estava muito ansiosa.
XXI- O Dr. A informou-a de que passaria na Enfermaria para falar com C e família.
XXII- Pelas 21H00 tenha sido solicitada pelas enfermeiras a saída dos familiares do quarto de C
XXIII- C tenha feito rotação da cabeça para a direita.
XXIV- C tivesse midríase fixa à direita e não tivesse cianose.
XXV- A primeira arguida retirou o penso cirúrgico e verificou que não havia sinais de edema, efisema subcutâneo ou hematoma do local da ferida operatória.
XXVI- As manobras de reanimação tenham durado cinquenta minutos.
XXVII- A primeira arguida em obediência ao dever de cuidado e diligência a que estava obrigada e de que era capaz deveria e poderia ter-se informado da extensão da cirurgia a que C tinha sido sujeito e de acordo com tal informação manter o mesmo em observação no Recobro durante pelo menos vinte e quatro horas com vista a despistar possíveis situações de edema da glote ou embebição hemorrágica da região epiglótica, as quais como era do seu conhecimento são raras mas possíveis em tal tipo de cirurgia e ao não fazê-lo causou a morte de C, desfecho que previu mas que confiou que não se daria.
XXVIII- A primeira arguida em violação das regras básicas pelas quais se pauta o exercício da sua profissão de médica anestesista deu alta do Recobro a C sem fazer a utilização da referida escala e sem estarem observados os critérios objectivos que permitiriam a alta do mesmo ou sem realizar o registo da escala de Aldrete ou score de recuperação pós-anestésica nos registos de saída e consequentemente não sendo conhecida a sua real situação causando com tal atitude perigo para a vida daquele.
XXIX- A primeira arguida actuou de forma voluntária, livre e consciente bem sabendo que tal conduta era proibida e punida por lei.
XXX- A segunda arguida em obediência ao dever de cuidado e diligência a que estava obrigada e de que era capaz sabendo o tipo de cirurgia a que C tinha sido sujeito, perante as queixas apresentadas pelo mesmo deveria tê-las comunicado aos médicos que contactou alertando-os para tais queixas.
XXXI- Ao não dar relevância a tais queixas e não as transmitindo como podia e devia aos médicos que contactou actuou de forma descuidada, imprudente e desatenta tendo causado com a sua conduta a falta de assistência atempada de C que se encontrava sob o seu cuidado e a sua morte, desfecho que previu mas que confiou que não sucederia.
XXXII- À data a prática médica de registo dos doentes era feita em blocos de apontamentos próprios previamente à alta da unidade do Recobro.
XXXIII- Na observação efectuada previamente à alta do Recobro C tinha os seguintes parâmetros vitais:
Tensão arterial – 120 mg-70mg
Pulso – 90 pulsações por minuto
Saturação de Oxigénio -98%
Hemoglobina - 14,9.
D) Matéria de Facto Não Provada resultante da reabertura da audiência quanto à matéria civil determinada pelo Tribunal da Relação de Lisboa:
XXXIV- C tinha formação na área de animação sócio-cultural e exercia a profissão de animador cultural.
XXXV- C se fosse vivo auferiria atentas as suas qualificações e espírito de trabalho uma quantia mensal em média não inferior ao dobro do salário mínimo nacional.
XXXVI- Os assistentes desde a data das respectivas reformas e até ao fim das suas vidas podiam contar com o apoio do seu filho C se fosse vivo à razão em média de metade do salário mínimo nacional..
É a seguinte a motivação da decisão de facto:
Crime
A prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, salvo quando a lei dispuser diferentemente.
A livre apreciação da prova não se confunde com apreciação arbitrária da prova nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova: a prova livre tem pressupostos valorativos de obediência a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica.
Quando está em causa a questão da apreciação da prova não pode deixar de se dar a devida relevância à percepção que a oralidade e a imediação conferem ao julgador.
Com efeito, a convicção do tribunal é formada, para além dos dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e, ainda, das lacunas, contradições, hesitações, inflexões de voz, (im)parcialidade, ansiedade, embaraço, desamparo, serenidade, olhares para alguns dos presentes, coerência de raciocínio e de atitude, seriedade e sentido de responsabilidade manifestados, coincidências e inverosimilhanças que, porventura, transpareçam em audiência, das mesmas declarações e depoimentos, ou seja, a convicção é também formada pela linguagem silenciosa e do comportamento.
De facto, a comunicação não se estabelece apenas por palavras mas também pelo tom de voz e postura corporal dos interlocutores e estas devem ser apreciadas no contexto da mensagem em que se integram.
Trata-se de um acervo de informação não verbal e dificilmente documentável face aos meios disponíveis mas rico, imprescindível e incindível para a valoração da prova produzida e apreciada segundo as regras de experiência comum e lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica.
O juiz não é uma mera caixa receptora de tudo o que a testemunha diz ou de tudo o que resulta de um documento e a sua apreciação funda-se numa valoração racional e crítica de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos enformada por uma convicção pessoal.
Em processo penal não existe um verdadeiro ónus probatório em sentido formal, vigora o princípio da aquisição da prova articulado com os princípios da investigação e da verdade material e da presunção de inocência do arguido, os quais impõe que o tribunal construa os suportes da sua decisão por apelo aos meios de prova validamente produzidos e independentemente de quem os ofereceu, investigue e esclareça oficiosamente os factos em busca da verdade material e em caso de dúvida intransponível decida a favor do arguido.
Refira-se que o juiz não está processualmente obrigado a elencar todos os factos alegados mas apenas aqueles que têm interesse para a caracterização do crime e suas circunstâncias juridicamente relevantes e que são indispensáveis para a escolha da pena e determinação da medida concreta da mesma.
De igual modo, o juiz não está processualmente vinculado a efectuar uma enumeração mecânica de todos os meios de prova constantes dos autos ou indicados pelos sujeitos processuais mas apenas a seleccionar e a examinar criticamente os que serviram para fundamentar a sua convicção positiva ou negativa, ou seja, aqueles que serviram de base à selecção da matéria de facto provada e não provada. Tal matéria é a que constitui objecto de prova e é juridicamente relevante para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da medida da pena aplicável (vide neste sentido, entre outros, Ac. do STJ de 30.6.1999, BMJ nº488, p. 272 e Ac. da Relação de Évora de 16.3.2004 proferido no âmbito do processo nº1160/03.1).
Não se olvide que o juiz está adstrito às regras processuais, designadamente, aos meios de prova permitidos em audiência de julgamento e, por via disso, os válidos e relevantes para suportar a decisão.
Assim, foram apenas considerados e valorados factos sustentados em prova produzida, examinada e contraditada em audiência de julgamento.
Saliente-se, ainda, que a lei impõe a fixação de factos e não de conclusões ou de conceitos de direito pelo que foram extirpadas as referências espúrias o que conduziu em algumas situações a uma diferente redacção dos factos mas sem que o seu sentido ou significado fosse alterado.
Por outro lado, optou-se por elencar e agrupar factos em termos cronológicos de molde a facilitar a sua apreensão e descrição e foram introduzidos os factos que no entender do Tribunal consubstanciam alterações não substanciais e que foram comunicados nos termos legais o que conduziu também à alteração da ordem do enunciado factual constante do despacho de pronúncia.
Fez-se também apelo a documentos examinados em audiência e aos meios de prova produzidos pelas arguidas em sua defesa, aí se incluindo as suas declarações, para clarificar, concretizar e descrever determinados factos sendo que relativamente aos mesmos não foi efectuada qualquer comunicação, quer por se ter considerado que não eram situações subsumíveis à disciplina do preceito, quer que não consubstanciavam alterações não substanciais quer, ainda, por se ter considerado que o sendo derivavam da defesa das arguidas.
Teve-se em atenção na descrição factual a circunstância de o procedimento criminal ter sido extinto por prescrição relativamente a M, cuja responsabilidade criminal, por via disso, não cabe apreciar, tendo-se apenas mantido as referências a esta consideradas relevantes para fundamentação da decisão relativamente aos demais.
Cabe, por último, esclarecer que a motivação da decisão de facto não é nem pode, constituir um substituto do princípio da oralidade e da imediação e transformar-se numa espécie de documentação da audiência.
À luz de tais princípios formou-se a convicção deste Tribunal e, consequentemente, se procedeu à selecção da matéria de facto positiva e negativa relevante.
A convicção subjacente a tal selecção, mormente positiva, fundou-se, ainda e mais concretamente:
Quanto aos factos 1 a 6, na análise crítica das cópias certificadas dos elementos clínicos do Hospital Egas Moniz referentes a C constantes do apenso I aos presentes autos (elementos esses que se mostram repetidos no apenso II, tendo-se optado pela menção ao apenso I pela melhor qualidade e perceptibilidade das cópias), mormente, cópia do boletim clínico da especialidade de cirurgia plástica de fls.111, cópia da ficha de marcação de consulta externa da especialidade de cirurgia plástica de fls.112, cópia do pedido de exame pré-anestésico de fls.117, cópia do pedido de avaliação pré-anestésica de fls.119 a 120, cópia da prestação de consentimento de C de fls.121, historial de fls.122, cópia dos exames hematológicos de fls.125 a 126, cópia do relatório da ecografia cervical de fls.128 a 129 conjugados com os depoimentos das testemunhas A e I.
Com efeito, tais elementos clínicos e depoimentos permitiram elucidar a natureza, características e consequências da patologia de que padecia C, o tratamento proposto e o consentimento para o mesmo prestado por aquele, o tipo de consultas e exames complementares e preparatórios realizados, os antecedentes, hábitos e patologias associadas referidos em tais consultas e o limite temporal em que tal fase preparatória ocorreu.
Refira-se que os depoimentos de tais testemunhas foram especialmente esclarecedores, porquanto, os mesmos na qualidade de, respectivamente, médico cirurgião e médica anestesista tiveram contacto directo com C, efectuando-lhe consultas de cirurgia e de avaliação pré-anestésica e confrontados com os elementos clínicos supra referidos desvendaram a linguagem técnica nos mesmos contida, contextualizando todo o percurso clínico empreendido por aquele previamente à cirurgia.
Tais depoimentos foram não só valorados positivamente, pelo indiscutível conhecimento directo revelado, mas também pela segurança, lucidez e riqueza do seu teor.
Com efeito, as hesitações que denunciaram no decurso dos depoimentos, são plenamente explicáveis pelo tempo entretanto decorrido e o efeito pernicioso do mesmo sobre a memória, não sendo susceptíveis de lhes retirar credibilidade.
Relativamente aos factos 7 a 22, 25, 26 e 27 na apreciação crítica das cópias certificadas dos elementos clínicos de C constantes dos autos e do apenso I, designadamente, cópia do mapa electivo da cirurgia de fls.205 a 206 dos autos, registo de identificação do doente de fls.113 do apenso I, historial clínico de fls.122 do apenso I, os registos de enfermagem de fls.134 a 136 do apenso I de que consta nota de entrada, registo da visita pré-operatória e a lista de verificação pré-operatória, registos do bloco operatório de fls.137 a 139 do apenso I de que consta o protocolo operatório, o registo operatório e ficha de anestesia, prescrição terapêutica pós-operatória e fls.123 do apenso I e diário clínico de fls.19 a 20 do mesmo apenso, mapa dos profissionais de saúde que tiveram contacto com C de fls.480 dos autos conjugados com os depoimentos das testemunhas, A, L, I e T, as declarações da demandante C, parecer técnico-científico de fls.621 a 633 dos autos e esclarecimentos do perito J.
Tais elementos clínicos descrevem o protocolo médico e de enfermagem observado no dia da admissão de C protocolos esses com vista à sua preparação para a intervenção cirúrgica, elucidam a natureza das técnicas cirúrgica e anestésica utilizadas, identificam os profissionais de saúde que tiveram intervenção na cirurgia e esclarecem em que qualidade ocorreu tal intervenção e localizam no tempo e no espaço a mesma.
Refira-se que as concretizações temporais foram feitas por apelo aos citados elementos e que relativamente ao termo da cirurgia o registo operatório de fls.138 do apenso I não é fidedigno porquanto a hora aí mencionada é igual à do início da cirurgia. Ora, as regras da experiência comum impõem que uma cirurgia por mais expedita que seja (e não é caso) não se inicia e acaba no mesmo minuto mas que seguramente termina antes do fim da anestesia. Assim, e por apelo também às citadas regras entendeu-se fixar o termo da cirurgia como sendo anterior ao fim da anestesia.
O mapa de fls.480 dos autos esclarece as categorias dos profissionais de saúde que contactaram com C, designadamente e com relevo quanto a estes factos dos médicos cirurgiões que tiveram intervenção na cirurgia.
Os depoimentos das testemunhas, A, L, médicos cirurgiões, e de I, médica anestesista permitiram, em concreto, esclarecer o modo como decorreu a intervenção cirúrgica a que foi sujeito C.
Com efeito, tais testemunhas levaram a cabo tal intervenção cirúrgica tendo relatado em audiência de julgamento, a sua concreta actuação, descrevendo as técnicas utilizadas e a prescrição terapêutica delineada e as razões da opção pelas mesmas bem como, no caso dos cirurgiões, pela colocação de um dreno não aspirativo e reafirmando que no decurso da mesma não ocorreram quaisquer complicações ou intercorrências.
Tais depoimentos mereceram credibilidade não só pelo conhecimento directo que denunciaram mas também pelo seu detalhe e segurança sendo que a cautela revelada pelas testemunhas A e L não diminuiu tal credibilidade por ser compreensível em face da posição processual anteriormente assumida pelos mesmos nos autos (a de arguidos).
Relativamente à descrição da técnica de Sistrunk plasmada nos factos 13 a 16 valorou-se, para além, do artigo técnico constante de fls.924 a 930 dos autos, o teor do supra referido parecer técnico-científico e dos preciosos esclarecimentos do perito J, que de modo sereno, claro e paciente, auxiliou o Tribunal, além do mais, na difícil tarefa de descodificação da linguagem técnica e interpretação do objectivo, natureza e características da intervenção cirúrgica em causa.
O teor do referido parecer e dos aludidos esclarecimentos foram também determinantes para a resposta positiva ao facto 21, porquanto, desvendaram as alterações fisiológicas decorrentes de intervenções anteriores à mesma zona do corpo e consequentes dificuldades e riscos cirúrgicos daí decorrentes.
No que se refere ao estado de saúde de C valorou-se o teor dos elementos clínicos supra identificados e que à excepção da patologia que motivava a intervenção não excluem que o mesmo se encontrava bem de saúde.
No que tange ao estado de espírito de C em momento prévio à operação valorou-se, ainda, as declarações da demandante C e o depoimento da testemunha T, respectivamente, irmã e tia daquele, porquanto as mesmas acompanharam-no no dia da intervenção cirúrgica e, nomeadamente, em momento prévio a esta tendo constatado directamente o seu comportamento que atenta a sua relação de proximidade com aquele se revelaram particularmente idóneas a interpretar, descrever e qualificar.
Quanto aos factos 23, 24, 28 a 45 e 47, na análise crítica, ponderada e conjugada das declarações prestadas pela arguida M, os depoimentos das testemunhas, I, E, J, regulamento do Recobro de fls.177 a 183 dos autos, cópia da folha de ponto nº110 com o registo de assiduidade da arguida M de fls.169 dos autos, cópia do fax de fls.216 dos autos, artigos técnicos de fls.931 a 932 dos autos, exames hematológicos de fls.127 do apenso I, folha de enfermagem do Recobro de fls.140 a 142 do apenso I, parecer técnico-científico de fls.621 a 633 dos autos, esclarecimentos do perito J e depoimentos das testemunhas, L, M e M.
A arguida de modo detalhado e assertivo e, por vezes denunciando cautela e incómodo compreensíveis atenta a sua posição processual e a natureza dos crimes imputados, concretizou as circunstâncias de tempo e lugar em que teve contacto com C, esclareceu, a natureza e amplitude das funções que naquele dia lhe estavam atribuídas e que motivavam a sua presença no Recobro quando possível e sempre que solicitada, o modo de funcionamento de tal unidade e as regras regulamentares por que se rege, identificou os profissionais de saúde, mormente enfermeiros que aí se encontravam, os elementos clínicos e informações verbais que lhe foram transmitidos pela sua colega anestesista interveniente na cirurgia e descreveu a sua concreta actuação profissional relativamente a C
Em tais declarações a referida arguida revelou o seu conhecimento pessoal relativamente à técnica cirúrgica utilizada e o modo como interpretou as indicações que constavam nos elementos clínicos fornecidos, mormente, no protocolo operatório.
A arguida de forma clara e segura descreveu o teor das informações verbais que lhe foram transmitidas pela sua colega anestesista e testemunha I, esclarecendo que a ênfase foi dada às de natureza anestésica e inexistência de intercorrências na cirurgia, o que não só foi corroborado pelo teor do depoimento prestado pela referida testemunha como também é consentâneo com as regras da experiência comum, dado que se tratavam de duas profissionais daquela especialidade e C estava a ser transferido para uma unidade vocacionada para a sua recuperação da anestesia a que fora sujeito.
Saliente-se que nem a mencionada arguida nem tal testemunha confirmaram ter no âmbito de tal conversa sido aflorada a extensão da técnica utilizada, sendo certo, que nem faria sentido que a arguida tentasse obter esclarecimento quanto a tal técnica da sua colega anestesista ou que esta lhos prestasse de modo satisfatório, dado que a referida técnica é uma técnica cirúrgica e quanto à mesma estariam mais habilitados a prestar informações concludentes e inequívocas os colegas que realizaram a cirurgia.
Por outro lado, tratando-se de uma unidade de recuperação de anestesia (e não da cirurgia) tal conhecimento não era sequer indispensável naquela fase, sendo excessiva, a meu ver, a ênfase dada na pronúncia a esta questão.
Nas suas declarações a mesma arguida efectuou, também, a descrição dos procedimentos adoptados quando C deu entrada no Recobro, quando aí foi chamada no decurso da permanência deste em tal unidade e quando lhe deu a alta.
Com efeito, a mesma de modo seguro e detalhado concretizou a sua actuação em cada um desses momentos identificando em cada um deles a avaliação que fez do estado de C.
A arguida M esclareceu, ainda, em que consistem as escalas de Aldrete e de Glasgow, quais as suas características e objectivos subjacentes à sua aplicação.
Confrontada com o fax constante de fls.216 dos autos assumiu a sua autoria e qualificou como erro de escrita a referência à escala de Glasgow, sendo que a mera análise de tal documento corrobora a versão da arguida porquanto os parâmetros indicados são os da escala de Aldrete.
Refira-se que as declarações da arguida foram valoradas positivamente quanto a estes factos, porquanto corroboradas, pela demais prova supra indicada.
De facto e no que se refere às funções exercidas nesse dia a sua comprovação resulta também da cópia da folha de ponto nº110 constante de fls.169 dos autos.
Por outro lado e relativamente às características da escalas de Glasgow e Aldrete e ao modo de funcionamento, características do Recobro, regras regulamentares que o regem, as suas afirmações foram confirmadas pelas testemunhas, L, M e M cujos depoimentos mereceram credibilidade pelo modo claro, conciso e descomprometido com que foram prestados bem como pelo conhecimento directo revelado e que não oferece dúvidas dado serem médicas anestesistas no Hospital Egas Moniz.
Cabe esclarecer que tais testemunhas peremptoriamente afirmaram que o único registo hospitalar à data em vigor no Recobro era a folha de enfermagem sendo que na mesma a única intervenção por parte do médico era a aposição da sua assinatura que tinha o significado de atribuição de alta.
No mesmo sentido depuseram as testemunhas E, J, enfermeiros de tal unidade e, por via disso, pessoas idóneas a ter conhecimento de tal facto.
Refira-se que a conjugação de tais depoimentos com o teor do Regulamento do Recobro de fls. de fls.177 a 183 dos autos e folha de enfermagem do Recobro de fls.140 a 142 do apenso I, permitiram dar resposta positiva aos factos 41 e 47.
Ainda com relação com as escalas de Aldrete e de Glasgow foram pertinentes os artigos técnicos de fls.931 a 932 dos autos que se referem à segunda e o teor do parecer técnico-científico de fls. 621 a 633 dos autos e esclarecimentos do perito J.
Tal parecer e esclarecimentos foram conjuntamente com os depoimentos das testemunhas L, M e M relevantes para o apuramento dos critérios que devem presidir à avaliação do doente em tal unidade, permanência ou atribuição de alta do Recobro, auxiliando, assim, a contextualizar a actuação da arguida, designadamente, aquando da alta.
Relativamente ao comportamento de C no Recobro a descrição do mesmo efectuado pela arguida foi sustentada e até exponenciada pelos depoimentos das testemunhas, E, J, enfermeiros do Recobro e ao serviço naquele dia e pelo teor da avaliação constante da folha de enfermagem já mencionada.
Com efeito, tais testemunhas que acompanharam C no período do Recobro de forma coincidente qualificaram o seu comportamento naquela unidade como sendo um comportamento apelativo, muito ansioso, queixoso relativamente à sonda naso-gástrica e à sua permanência naquele local sendo que é natural que a sua percepção seja mais acertada porquanto, a arguida M não estava em permanência no Recobro ao contrário de tais enfermeiros.
Acresce que na referida avaliação se refere que C estava consciente e orientado mas bastante ansioso.
Saliente-se que no decurso da audiência se confundiu muitas vezes o comportamento de C com as características da sua personalidade, sendo que tal confusão não pode sustentar qualquer ilação.
De facto, e como muito bem salientado pela testemunha E “o Recobro é uma zona ingrata, sem visitas, sem luz natural” sendo que a tal acresce a ligação do paciente a um monitor, submissão frequente a sonda naso-gástrica e após se ter sido sujeito a cirurgia e anestesia que, ainda que consentida, consubstancia uma agressão expressiva do organismo.
Impõem as mais elementares regras da experiência comum que o comportamento de qualquer ser humano nessas condições se altere.
Porém, tal alteração não pode nem deve ser confundida com as características da personalidade da pessoa em causa.
Assim, não é por revelar ansiedade que alguém é ansioso ou nervoso nem por ser calmo que não pode revelar ansiedade ou nervosismo.
À luz de tais depoimentos e das regras da experiência comum não subsistiram dúvidas no espírito do julgador quanto à resposta positiva ao facto 30.
Relativamente aos factos 32 a 35 a descrição dos mesmos efectuada pela arguida foi confirmada pelo teor dos depoimentos das testemunhas E, J, teor da folha de enfermagem do Recobro de fls. 140 a 142 do apenso I e exames hematológicos de fls. de fls.127 do apenso I, o que permitiu concluir pela sua demonstração.
No que se refere à ausência de qualquer dificuldade respiratória e existência de parâmetros que permitiam a atribuição da alta e efectiva avaliação de C por parte da arguida M previamente àquela, lançou-se mão, para além das declarações prestadas pela arguida, dos depoimentos das testemunhas E, J, do teor da cópia da folha de enfermagem do Recobro de fls. 140 a 142 do apenso I, teor do fax de fls.216 dos autos e das regras da experiência comum.
Com efeito, tais testemunhas de modo coincidente e unânime aludiram à inexistência de quaisquer sinais exteriores de falta de ar ou dificuldade respiratória de C, designadamente, tiragem, adejo nasal, cianose, sudorese sendo que até às 17H30 existem registos na folha de enfermagem de tal unidade, designadamente, de saturação de oxigénio que sustentam tal afirmação.
A partir dessa hora os registos são omissos por evidente falha dos referidos enfermeiros a quem cabia o preenchimento da folha de enfermagem.
Contudo, tal omissão não pode reverter contra a arguida a quem não incumbia proceder a tal registo e estando em causa uma unidade em que os pacientes estão monitorizados até à efectiva transferência e não apenas até à alta, conforme esclarecido, designadamente, pela testemunha e médica anestesista em tal Hospital, M.
Isto é, no momento em que foi lhe foi dada a alta C estava necessariamente monitorizado e a arguida M esclareceu que deu a alta em presença do doente e após o ter avaliado, descrevendo, de modo claro e seguro, o seu modus operandi e esclarecendo que não observou a folha de enfermagem, na qual apenas tinha intervenção mediante a aposição de uma assinatura que era sinónimo de alta.
Acresce que a arguida no fax de fls.216 dos autos indicou quais os valores da escala que C reunia no momento da alta e relativamente aos quais não apelou ao teor da folha de enfermagem que quanto aos mesmos era omissa.
A testemunha J confirmou que a arguida M deu alta em presença do doente, corroborando ainda, a concretização temporal indicada por aquela relativamente ao momento da atribuição da alta.
Saliente-se que na referida folha de enfermagem e relativamente aos sinais vitais o enfermeiro J apenas registou os valores no momento da admissão, sendo os demais registos da responsabilidade da sua colega E e que o mesmo declarou ter regressado ao Recobro após uma ausência para lanchar quando a arguida ia dar a alta, o que permite concluir que não era através do enfermeiro J que a arguida poderia ter qualquer conhecimento dos valores dos sinais vitais de C.
Ora, a conjugação de tais meios de prova com as regras da experiência comum permitem concluir pela efectiva presença da arguida aquando da alta e pela sua avaliação e verificação pessoal dos parâmetros vitais de C.
Relativamente ao facto 46 nas regras da experiência comum que impõem que inexistindo um registo do score de recuperação pós-anestésica aquando da alta e sendo tal score a tradução da escala de Aldrete, os profissionais seguintes tinham de forçosamente desconhecer os critérios adoptados para atribuir tal alta de acordo com tal escala.
No que se refere aos factos 48 a 52 valorou-se, pela sua isenção e fidedignidade, o depoimento da testemunha R e as informações prestadas pelo Hospital Egas Moniz e constantes de fls. 1648 a 1656 dos presentes autos.
Com efeito, tal testemunha, à data enfermeira chefe de tal serviço, esclareceu os critérios de atribuição de quartos na Enfermaria que atenta tal função se revelou idónea a ter conhecimento e as informações supra referidas elucidaram o Tribunal relativamente à localização geográfica, características e dotação de meios do serviço e, mais concretamente, à localização e dotação de meios do quarto ocupado por C, à localização do gabinete de enfermagem, às especialidades abrangidas por tal serviço e ao número de pacientes que naquele dia aí estiveram internados.
Quanto ao facto 53, a sua concretização temporal decorre do teor do depoimento da testemunha J, enfermeiro que procedeu a tal transferência e que se referiu a um hiato de cerca de vinte minutos entre a atribuição da alta e a efectiva transferência de C com o depoimento da testemunha H, auxiliar de acção médica presente em tal transferência e que referiu que o percurso até à Enfermaria durou dez minutos no máximo e, ainda, com as declarações prestadas pela arguida M e pela demandante C que referiram ter a entrada de C na Enfermaria ocorrido por volta das 19H00.
Ora, a conjugação de tais depoimentos e um simples cálculo matemático permitem concluir que a transferência se deu por volta das 18H50.
Acresce que no que se refere à transmissão verbal das intercorrências a sua confirmação resulta directamente do depoimento da testemunha J e é corroborada pelo depoimento da testemunha H que estava presente na mesma e identificou os enfermeiros que ali se encontravam embora não lograsse, atento o tempo decorrido, precisar o teor da conversa que viu estabelecer-se entre ambos e mais indirectamente pelas declarações prestadas pela arguida M que referiu ter sido a colega M a deslocar-se ao Recobro e ser prática que juntamente com o doente e seus elementos clínicos sejam transmitidas verbalmente entre enfermeiros as intercorrências.
No que se refere ao facto 54 aos depoimentos das testemunhas J e de H e E.
Com efeito, os dois primeiros confirmaram que C na fase de transferência propriamente dita apresentava agitação motora nos braços e em direcção à cabeça e ao pescoço sendo que H, ainda, aduziu que tal agitação se manteve durante todo o percurso até à Enfermaria.
Acresce que as testemunhas J e E esclareceram que a notícia da alta diminuiu um pouco a ansiedade de C mas não a eliminou.
Para além de M que, pelas razões já conhecidas, não foi ouvida nestes autos apenas tais testemunhas tiveram contacto com C após a alta, durante a sua transferência e percurso até à Enfermaria sendo que o modo coincidente mas insuspeito como depuseram sobre esta matéria permitiu ao Tribunal concluir sem margem para dúvidas pela prova de tal facto.
Relativamente aos factos 55 e 57 nas declarações prestadas pela segunda arguida M e pela demandante C, depoimento das testemunhas, T e L que de modo unânime e no essencial coincidente atestaram ser esse o estado de C à entrada da Enfermaria.
Saliente-se que a percepção quanto a tal estado por parte da referida arguida e das familiares de C é uma inferência lógica que se retira do teor das suas declarações atenta a descrição pelas mesmas efectuada relativamente ao momento de entrada daquele na Enfermaria e a circunstância de estarem todos presentes no local, o que foi reciprocamente confirmado em audiência de julgamento.
No que se refere ao facto 56 nas declarações prestadas pela segunda arguida M que confirmou tal facto conjugado, entre outros, com as declarações da demandante C, testemunha L e T que por estarem presentes se revelaram idóneas a corroborar.
Atendeu-se, quanto a este facto, ainda ao teor das cópias das folhas de ponto nº760 e 784 constantes de fls.173 e 174 dos autos que não só esclarecem que as enfermeiras em questão estavam ao serviço naquele dia e turno bem como indicam as suas categorias profissionais.
Quanto ao facto 58 ao depoimento da testemunha C que esclareceu a natureza da relação que tinha à data com C e concretizou temporalmente a sua chegada à Enfermaria, sendo que em tal concretização se atendeu, ainda, à circunstância de a mesma ter referido ter assistido à administração da injecção a C o que atentas as declarações prestadas pela arguida M ocorreu pouco depois das 19H30.
No que se refere aos factos 59 a 61 às declarações prestadas pela arguida M mereceram credibilidade pelo modo objectivo, claro e conciso com que esclareceu a sua actuação relativamente a C e revelou ter conhecimento das prescrições terapêuticas a observar relativamente ao mesmo.
Acresce que tais declarações foram em parte corroboradas pelo teor do depoimento da testemunha L que atenta a sua função auxiliou quer a referida arguida quer a enfermeira M a C.
Saliente-se que estas declarações se revelaram muito mais credíveis do que as declarações e depoimentos prestados pelas familiares de C sobre esta matéria porquanto, estes últimos, revelaram nítida parcialidade, animosidade e falta de isenção.
Com efeito e no caso da demandante, foi a título de exemplo, flagrante a confusão efectuada entre a enfermeira M e a enfermeira M com a consequente atribuição de condutas de uma à outra e vice-versa.
Ora, tal confusão não obstante o tempo decorrido e o seu efeito sobre a memória não é normal atenta a natureza especialmente trágica dos eventos que a mesma presenciou e a circunstância de na sua óptica serem as enfermeiras em questão responsáveis.
Assim e na óptica deste Tribunal tal confusão foi intencional e teve em mente reforçar a culpa e responsabilidade pelo ocorrido da arguida M dado que relativamente à enfermeira M o procedimento extinguiu-se por prescrição, o que era do conhecimento da demandante à data da prestação das suas declarações.
No caso da testemunha, T de igual modo foram notórias a sua falta de isenção e sua animosidade relativamente à arguida M sendo exemplos claros disso declarações como nunca vi as Enfermeiras a fazer nada, nunca as vi passar dos pés da cama do C, nunca vi nenhuma auxiliar de acção médica.
Os aspectos apontados são apenas alguns que caracterizam a falta de credibilidade de tais declarações e depoimentos sendo que a relação de proximidade entre tais pessoas e C e os sentimentos gerados pelo ocorrido não justificam nem explicam tamanha parcialidade.
No que tange aos factos 62 a 68 às declarações prestadas pela arguida M, declarações da demandante C, depoimentos das testemunhas T, C e L, revista Nova Gente nº1354 de 28 de Agosto a 3 de Setembro de 2002 constante de fls.11 a 60 do apenso I e Jornal Correio da Manhã de 27 de Agosto de 2002 constante de fls. 61 do mesmo apenso e que de modo no essencial unânime e coincidente confirmaram tais factos sendo que a demandante e as testemunhas, T e C em audiência e após exibição dos escritos afirmaram serem os mesmos da autoria de C.
Relativamente aos factos 69 a 74 às declarações das arguidas sendo que o Tribunal conferiu maior credibilidade à versão apresentada pela arguida M por ser mais consentânea com as regras da experiência comum, com o teor das declarações e depoimentos prestados por C, T, C e L e, ainda, com o teor dos escritos apostos por C nas mencionada revista e jornal.
Das declarações e depoimentos prestados pelas familiares e namorada de C e dos escritos pelo mesmo efectuados resultou claramente um quadro de queixas insistentes e reiteradas de falta de ar, de agitação, de ansiedade e de pressentimento pelo mesmo da sua morte.
Acresce que ambas as arguidas confirmaram a existência de tal telefonema àquela hora tendo apenas discordado relativamente ao conteúdo do mesmo tendo a primeira arguida pugnado sempre pela inexistência de qualquer informação referente a falta de ar ou queixas de falta de ar.
Tal afirmação não colhe na óptica do Tribunal sendo certo que o registo efectuado a este propósito nas Notas de Enfermagem cuja cópia consta de fls.131 do apenso I que foi sempre invocado em sua defesa, de igual modo, não merece crédito.
Senão vejamos:
Nos escritos que apôs na revista e jornal em questão C denunciou a sua falta de ar de modo insistente pelo que impõem as mais elementares regras da experiência comum que fossem essas as queixas, de igual modo, insistentemente transmitidas às enfermeiras e, por seu turno, transmitidas à primeira arguida.
O registo efectuado nas Notas de Enfermagem é da autoria da enfermeira M, (conforme resultou claramente do depoimento da testemunha, R, à data, enfermeira chefe e que reconheceu em audiência e nos mesmos a letra daquela) e, por isso, não tem a virtualidade de comprovar o teor de uma conversa mantida por pessoas distintas e em que de acordo com as declarações prestadas pela arguida M e depoimento da testemunha L aquela (M) não esteve presente.
Refira-se, aliás, que na interpretação feita pelo Tribunal a menção feita ao contacto à primeira arguida é apenas para justificar a terapêutica administrada e que nunca chegou a ser prescrita a não ser verbalmente.
Acresce que a testemunha, L confirmou ter assistido a tal telefonema e ter ouvido a arguida M dizer, além do mais, que o doente referia dificuldade em respirar.
Por outro lado, não faz qualquer sentido que uma enfermeira com a experiência da segunda arguida contacte um médico e depois não lhe transmita o mais relevante, quando impõem as mais elementares regras comuns bem como o mais elementar conhecimento técnico-científico de um profissional de saúde que uma queixa de falta de ar é sempre relevante, pois, sem respirar não se vive.
Não mereceu, pois, credibilidade a versão apresentada quanto a esta matéria pela primeira arguida, tendo-se, em consequência, valorado positivamente as declarações prestadas pela arguida M, não só quanto ao teor do telefonema mas também quanto à falta de actuação subsequente ao mesmo por parte da primeira arguida e que se encontram plasmados nos factos 73 e 74.
Saliente-se que a prescrição verbal de ½ fórmula de hidroxizina intra muscular foi assumida pela primeira arguida e que das declarações prestadas pela segunda arguida e pela namorada de C decorre que foi administrada de seguida, o que aliás é também consentâneo com as regras da experiência comum, atenta a expectativa depositada por tal arguida no efeito de tal terapêutica no estado de ansiedade e agitação daquele.
Quanto ao facto 75 ao teor da cópia da folha de ponto nº989 constante de fls. 162 dos autos conjugado com o depoimento da testemunha, A que esclareceu o modo como funcionava o serviço de urgência e confirmou a realização do telefonema para a Enfermaria, identificando a enfermeira M como sua interlocutora, concretizando a hora em que o mesmo teve lugar e indicando ser o estado de C o motivo subjacente a tal telefonema.
Relativamente aos factos 76 a 81 às declarações prestadas pela arguida M, ao depoimento da testemunha L, ao depoimento das testemunhas L, M e às regras da experiência comum.
Com efeito, também a testemunha A afirmou em audiência que não lhe foi relatado no telefonema que recebeu da arguida M qualquer queixa de falta de ar ou dificuldade respiratória de C. Ora, tal afirmação não é consentânea com as regras da experiência comum pelas mesmas razões já aduzidas relativamente ao conteúdo do telefonema ocorrido entre as arguidas.
De facto não é sequer compreensível que uma enfermeira com mais de vinte anos de serviço se dê ao trabalho de telefonar para um médico para o advertir relativamente ao eventual comportamento dos familiares de um paciente que se encontravam presente na Enfermaria por seu beneplácito, dado que o horário de visita já há muito terminara.
Saliente-se que de acordo com as informações obtidas junto do Hospital Egas Moniz e constantes de fls.1648 a 1656 dos autos, mais concretamente fls.1650, o horário de visita à data era das 16H30 às 19H30 e a autorização de permanência de familiares junto do doente para além de tal horário cabia ao responsável do turno e condicionado à vantagem de tal permanência para o doente.
Ora, sendo a segunda arguida enfermeira Graduada era ela a responsável do turno e não lhe seria difícil determinar a saída dos familiares. Assim, não faz sentido que se defenda que a mesma tenha efectuado um telefonema para prevenir quanto a um comportamento que poderia tão facilmente evitar.
Por outro lado, a testemunha L estava presente quando foi efectuado o telefonema e corroborou a versão da arguida M no que se refere ao seu teor, sendo que este é o mais plausível atento o contexto vivido naquela Enfermaria e a própria experiência profissional da mesma arguida não só quanto à necessidade de transmissão das queixas mas também quanto ao comportamento dos médicos quando convocados.
De igual modo é com base nas declarações da arguida M que surge assumida a sua falta de actuação subsequente a tal telefonema.
Refira-se que o conhecimento da ausência do efeito expectável da injecção de hidroxizina por parte da arguida resulta também da análise crítica das declarações pela mesma prestadas quanto ao tempo normal de reacção a tal injecção (meia hora depois da sua administração) sendo certo que nos seus depoimentos as testemunhas L e M confirmaram tal circunstância de que são idóneas a ter conhecimento por serem médicas anestesistas e habitualmente prescreverem a sua administração.
Assim, considerando que aquando de tal telefonema já decorrera meia hora sobre a administração de tal injecção por parte da segunda arguida a C e que persistiam as queixas facilmente se conclui que nesse momento tal arguida já sabia que a injecção não tivera o resultado esperado.
Quanto aos factos 82 e 83 às declarações prestadas pela arguida M conjugadas com o teor do depoimento da testemunha T, da testemunha C e da demandante C sendo que estas últimas confirmaram unanimemente tais factos. Refira-se que as declarações da citada arguida foram valoradas para esclarecimento do modo como se processava a rotina de distribuição de fármacos pelos doentes.
Relativamente aos factos 83 a 86 às declarações prestadas pela arguida M que descreveu o estado de C quando entrou no seu quarto, o que fez e presenciou acontecer, sendo que tais declarações mereceram total credibilidade porque consentâneas não só com as declarações da arguida M no que se refere ao estado do mesmo quando aí compareceu poucos minutos depois mas também com depoimento de L que na qualidade de auxiliar de acção médica aí estava presente.
Refira-se que esta testemunha referiu ter bipado a arguida M a pedido da arguida M e esta ter comparecido logo a seguir a ter efectuado um telefonema à arguida M e a primeira arguida declarou ter recebido tal bip e se ter deslocado de imediato ao local, após por um telefonema muito rápido, lhe ter sido dito pela arguida M para o fazer.
No que tange aos factos 87 a 90 às declarações prestadas pela arguida M, ao depoimento da testemunha M e o teor da cópia do diário clínico do doente de fls. 124 a a 124 verso do apenso I e cópia das notas de enfermagem de fls. 131 a 131 verso do mesmo apenso.
Com efeito, a arguida Maria M de modo claro e conciso descreveu o estado em que encontrou C, as concretas manobras que se recorda ter efectuado, indicando quem convocou e quem se encontrava presente e esclarecendo, ainda, o tempo aproximado que as mesmas demoraram até ser declarado o óbito.
De igual modo, a testemunha, M, de modo lúcido e objectivo, assumiu ter sido chamada e ter efectuado a intubação e laringoscopia a C, descrevendo o que constatou, que demais manobras foram levadas a cabo e qual a sua duração.
Dos referidos elementos hospitalares consta a descrição das manobras de reanimação efectuadas, descrição, essa, no essencial coincidente com tais depoimentos e declarações sendo que as omissões ou discrepâncias constatadas não são relevantes porque facilmente explicáveis não só pelo tempo entretanto decorrido mas também pelo stress envolvido em tal actuação e que torna irrelevante para quem age a contagem do número de doses de atropina ou adrenalina aplicadas ou o tamanho do tubo utilizado na intubação.
Saliente-se que a hora do óbito bem como a sua verificação resulta, ainda, demonstrada pela certidão de assento de óbito nº1176 referente a C e emitida pela 4ª Conservatória do Registo Civil de Lisboa e que consta de fls.104 do apenso I.
Relativamente ao facto 91 ao teor da cópia certificada do diagnóstico anatomo-patológico referente à autópsia nº180/02 realizada a C e depoimento das testemunhas, L, médica que a levou a cabo e F que à data era a responsável daquele serviço e esteve presente na mesma, sendo que tais testemunhas, auxiliaram o tribunal a interpretar o significado das expressões e constatações aí relatadas.
Nessa tarefa foi também muito relevante o auxílio do perito João Pedro Luís Marcelino que de forma serena e paciente decifrou os conceitos aí referidos e o seu significado científico.
Quanto ao facto 92 às declarações prestadas pelas arguidas, ao teor do parecer técnico-científico de fls.621 a 633 dos autos, aos esclarecimentos prestados pelos peritos J e J e depoimentos das testemunhas, C, L e C que unanimemente não só afirmaram tal necessidade como forma de prevenir e constatar complicações possíveis num pós-operatório, mormente, de cirurgia maxilo-facial mas também como uma responsabilidade de toda a equipa e não apenas de um serviço.
Refira-se que as arguidas no decurso das suas declarações e na descrição dos cuidados de que revestiram as respectivas actuações demonstraram ter conhecimento das possíveis complicações num período pós-operatório deste tipo de cirurgia, sendo que conforme foi salientado pela testemunha C as complicações como edema da glote e hematomas são algo que se pensa serem do conhecimento geral da equipa médica e do pessoal de enfermagem deste tipo de serviço.
Com efeito e a título de mero exemplo a arguida M declarou ter tentado informar-se junto dos colegas cirurgiões da extensão da cirurgia por ter considerado que a descrição efectuada no protocolo operatório era insuficiente e deixava dúvidas.
Ora, tal demonstração de zelo é reveladora da consciência da mesma relativamente a complicações em pós-operatório e só se justifica à luz da mesma, porquanto, tal informação como já afirmado anteriormente não era indispensável para as finalidades do Recobro mas podia ser pertinente para a vigilância que se impunha nas horas seguintes e cuja responsabilidade era também desta arguida enquanto médica em serviço de urgência naquele Hospital.
Acresce que relativamente às arguidas sempre se pode aduzir que atentas as respectivas experiências profissionais seria inverosímil presumir que desconhecessem as complicações possíveis.
No que se refere aos facto 93 a 95 os mesmos traduzem a inferência efectuada por este Tribunal da demais matéria de facto considerada provada, nomeadamente, os factos aí especificamente indicados, conjugados com as regras da experiência comum quanto ao conhecimento da natureza proibida de tais condutas e, ainda, com as declarações prestadas pelas arguidas que foram particularmente reveladoras da sua atitude interior, porquanto, das mesmas resulta clara e inequivocamente que jamais representaram a morte de C como consequência possível da sua conduta.
Esclarece-se que para além dos fundamentos já invocados a propósito de cada um dos factos aí concretamente enunciados cabe, ainda, aduzir o seguinte:
A arguida M pugnou sempre em audiência pela sua impossibilidade de se deslocar à Enfermaria de C aquando do telefonema das 19H30 e depois do mesmo.
Nas suas declarações tal arguida referiu que estava na preparação de uma anestesia a uma criança para retirada de um corpo estranho de um ouvido.
Dos elementos clínicos juntos a fls.1659 a 1667 dos autos e referentes à pequena cirurgia em questão resulta, mormente de fls.1663, que a entrada no bloco operatório ocorreu às 19H45, a entrada da sala de operações às 19H50, o início da anestesia às 20H00, o início da cirurgia às 20H01, o fim da cirurgia às 20H05, o fim da anestesia às 20H08 e a saída da sala às 20H15.
Não se desconhece que a preparação da anestesia é algo prévio à entrada no bloco operatório, pois, há que indagar e neste caso junto dos pais, designadamente, da vacuidade e de alergias.
Todavia analisados tais elementos, mormente, a cópia do diário clínico de fls.1662 dos autos a única menção no mesmo aposta pela arguida M é a da alta.
Acresce que dos mesmos não consta qualquer cópia de ficha de avaliação pré-anestésica subscrita por tal arguida mas apenas uma cópia ficha de anestesia a fls.1665 dos autos.
Não obstante e ainda que a fazer fé nas declarações de tal arguida a mesma aquando do telefonema não estava propriamente impedida de se deslocar porquanto a interrupção de uma conversa com os pais de uma criança não inviabilizaria a retomada da mesma algum tempo depois.
De qualquer forma também as suas declarações relativamente à hora em que se libertou do acompanhamento de tal criança (às 20H45) e ao momento em que foi jantar, após tal hora foram contrariadas pelo depoimento da testemunha, M que referiu que foi jantar com a arguida e que estava com ela quando foi bipada e que tal jantar demorou cerca de meia hora.
Refira-se, por último, que ainda que a mesma tivesse ficado livre às 20H45, dificilmente se compreende que tenha ido jantar quando a prescrição que efectuara tinha sido pelo telefone.
Foi sempre ressaltado pelas arguidas que existiam grande confiança entre as mesmas mas numa prescrição pelo telefone é sempre de desconfiar porque a apreciação é feita com base em palavras transmitidas e não na directa observação do doente.
Prova disso é que os médicos e enfermeiros ouvidos em audiência sobre esta matéria quer na qualidade de testemunhas quer na de peritos, assumiram a prescrição pelo telefone como uma prática de confiança entre profissionais de saúde por não se ter o dom da ubiquidade mas sempre com a ressalva da deslocação posterior à mesma e logo que possível.
O perito J salientou que a prescrição pelo telefone é um risco sendo que a assunção de tal risco pressupõe a assunção das possíveis consequências de tal prescrição.
Relativamente aos factos 96 a 101 e 104 a 108 valoraram-se positivamente as declarações prestadas pelas arguidas que de modo claro, conciso e descomprometido esclareceram as suas circunstâncias de vida, designadamente, características do seu agregado familiar, respectivos rendimentos e encargos, habilitações literárias e o seu percurso profissional.
Quanto ao facto 102 o depoimento da testemunha, C que na qualidade de Director do Hospital Egas Moniz à data e conhecer a arguida desde 1974 se revelou idóneo a ter conhecimento do mesmo.
Refira-se que a circunstância de tal testemunha não ter sido indicada à matéria do artigo 128º nº2 do Código do Processo Penal em nada contende com a selecção deste facto com base no seu depoimento, porquanto em processo penal não há vinculação de testemunhas a factos como no processo civil.
No que tange ao facto 109 nos depoimentos das testemunhas, S, M, M, M, M, A e F, que na qualidade de colegas de trabalho da arguida M se revelaram idóneos a ter conhecimento do modo como esta exercia a sua profissão e como era vista profissionalmente.
Por último, no que se refere aos factos 103 e 110 valorou-se o teor dos Certificados de Registo Criminal de fls.1734 a 1735 dos autos que atestam a inexistência de quaisquer averbamentos em nome, respectivamente, da primeira e da segunda arguidas.
*
A convicção subjacente à selecção negativa fundou-se mais concretamente:
Quanto ao facto I no registo operatório de fls.138 do apenso I que não confirma tais indicações horárias. De facto e de acordo com o mesmo a cirurgia terá tido o seu início pelas 13H40 e o seu termo, por imprecisão do registo e como já salientado na motivação da matéria de facto provada, em momento anterior às 15H35, não sendo possível afirmar com segurança, embora seja possível, que o mesmo tenha ocorrido pelas 15H15 como afirmado na pronúncia.
Refira-se que embora os elementos clínicos referentes a C sejam lacunares e imprecisos, ainda assim, a sua valoração, designadamente, quanto a concretização de factos (como o caso) que não contendem com a responsabilidade das arguidas é preferível à valoração da prova oral produzida em audiência, porquanto, nesta se faz sentir mais o efeito do tempo entretanto decorrido com a consequente insegurança e hesitação e inconcludente concretização temporal.
Relativamente ao facto II nos esclarecimentos prestados pelo perito J que de modo claro assumiu que a opção pela colocação de um dreno aspirativo ou passivo é uma opção pessoal de cada cirurgião, sendo tecnicamente adequada qualquer uma e que a afirmação plasmada no parecer técnico-científico de fls.621 a 633 dos autos consagra a sua prática como cirurgião.
Também as testemunhas, A e L, pugnaram em audiência pela desnecessidade de um dreno aspirativo no caso da operação de Sistrunk esclarecendo que é o modo como decorre a cirurgia que impõe a natureza do dreno a ser colocado e que o mesmo é apenas uma precaução, sendo que o teor de tais afirmações foram confirmadas pelo referido perito.
Assim, à luz de tal prova afigura-se-me que não é possível afirmar que a operação em questão exija preferencialmente um dreno aspirativo.
Quanto ao facto III por não ter sido produzida prova bastante da sua verificação. Com efeito, a ênfase dos esclarecimentos do referido perito foi dado aos riscos no gesto cirúrgico sendo que relativamente ao pós-operatório foi afirmado que os riscos eram semelhantes aos de qualquer operação maxilo-facial.
No que tange ao facto IV nas declarações prestadas pela arguida M que de modo claro e objectivo assumiu ter conhecimento do que significava fisiologicamente a técnica de Sistrunk, desconhecendo, apenas a sua extensão por no seu entender existirem algumas variantes da mesma, infirmando assim tal facto.
Tais declarações foram, ainda, valoradas para a resposta negativa ao facto V, porquanto tal arguida afirmou que confrontada com o modo lacunar com que estava preenchido o protocolo operatório referente a C e por desconhecer a extensão da cirurgia tentou-se informar da mesma junto dos colegas cirurgiões que naquela tinham intervindo, o que não logrou por se terem ausentado do Hospital.
As declarações em apreço foram, ainda, que indirectamente corroboradas pelos depoimentos das testemunhas, A e L que em audiência afirmaram terem saído após a cirurgia do Hospital Egas Moniz uma vez que no caso do primeiro estava de urgência presencial no Hospital de S. Francisco Xavier e no caso da segunda o seu turno tinha terminado.
Cabe esclarecer que na óptica do Tribunal a obtenção de tal informação era apenas um acto de zelo profissional, pois, conforme já anteriormente afirmado o Recobro é uma unidade de recuperação de uma anestesia e não de uma cirurgia e tal informação não era relevante para tal.
Relativamente aos factos VI e VII, na ausência de prova oral ou documental quanto aos mesmos.
Com efeito, nem a arguida M nem as testemunhas, E e J confirmaram tais factos os quais também não surgem descritos na folha de enfermagem do Recobro constante de fls.140 a 141 do apenso I.
Refira-se que tais factos estão descritos na pronúncia como tendo ocorrido no Recobro sendo que apenas em tais elementos de prova se podia fundar a sua prova positiva uma vez que apenas as pessoas mencionadas tiveram contacto com C no interior dessa unidade e tal folha é o único documento conhecido aí elaborado.
Quanto ao facto VIII na resposta positiva ao facto 44 que assim o infirmou.
Relativamente ao facto IX, na resposta positiva ao facto 55 que assim o infirmou sendo certo que tratando-se de um doente proveniente de uma alta de um Recobro que é uma unidade vocacionada para a recuperação de uma anestesia e sendo a Enfermaria um serviço vocacionado para a recuperação da cirurgia, cabia a esta última vigiar, interpretar e aferir do estado do doente a partir do momento da sua entrada.
No que se refere ao facto X nas declarações prestadas pela demandante C que o infirmou ao relatar a conversa mantida à entrada da Enfermaria com o seu irmão C e na ausência de prova que sustente a efectiva falta de ar daquele no momento de entrada, porquanto, não existem registos da sua saturação de oxigénio durante a sua permanência naquele serviço.
Por seu turno e quanto ao facto XI da análise dos escritos apostos na Revista Nova Gente nº1354 de 28 de Agosto a 3 de Setembro de 2002 e no Jornal Correio da Manhã de 27 de Agosto de 2002, constantes, respectivamente, de fls.11 a 60 e 61 dos autos e que permitiu concluir que tais frases não foram escritas na referida revista mas sim no jornal mencionado.
No que se refere ao facto XII na ausência de prova quanto ao mesmo dado que nenhuma das arguidas nem a testemunha L, únicas pessoas com intervenção ou conhecimento directo do telefonema em questão aludiram a tal pormenor.
Quanto aos factos XIII a XIV na resposta positiva aos factos 69 a 72 e 77 a 79 que assim os infirmaram.
Relativamente ao facto XV na ausência de prova concludente quanto ao mesmo dado que nem a arguida M nem a auxiliar de acção médica L de acordo com as suas declarações presenciaram tal telefonema, o depoimento da testemunha A quanto a esta matéria não mereceu credibilidade e não se logrou ouvir M.
No que tange aos factos XVI e XX na resposta positiva aos factos 78 e 79 que assim os infirmaram.
Relativamente ao facto XXI, na ausência de prova quanto ao mesmo.
Quanto ao facto XXII na ausência de prova concludente atenta a natureza contraditória das declarações e depoimentos quanto ao mesmo prestadas quer pela segunda arguida e testemunha L e por outro pela demandante C e testemunhas, T e C.
No que se refere aos factos XVII a XIX na ausência de prova concludente quanto aos mesmos atentas a natureza contraditória das declarações prestadas pela arguida M e a testemunha T e a inexistência de qualquer outro meio de prova que ateste a hora de tal deslocação.
Quanto aos factos XXIII e XXVI na resposta positiva aos factos 85 e 90 que assim os infirmaram.
No que tange aos factos XXIV, XXV, XXXII e XXXIII na ausência de prova oral ou documental produzida quanto aos mesmos.
Relativamente aos factos XXVII, XXX e XXXI na resposta positiva aos factos 93 e 94 que assim os infirmaram.
No que se refere aos factos XXVIII e XXIX na resposta positiva aos factos 44, 46 e 47 que os infirmaram.
Cível
Tendo em consideração a decisão de reabertura da audiência determinada pelo Tribunal da Relação de Lisboa apenas relativamente à matéria civil apenas cabe nesta sede motivar os factos provados e não provados emergentes de tal reabertura, mantendo-se relativamente aos demais como válida a motivação constante da sentença proferida no que se tange à matéria crime.
Assim, e no que se refere aos factos 111 a 119 e porque a sua demonstração apenas podia resultar de documento atendeu-se ao teor das certidões de assento de nascimento de C e dos assistentes constantes de, respectivamente de fls.2551 a 2552 e fls.2463 a 2466 dos autos e ainda ao print de bilhete de identidade referente à demandante constante de fls.1073 dos autos.
No que se refere aos factos 120, 123 a 127 atendeu-se às declarações prestadas pela demandante C e aos depoimentos das testemunhas T, C, M e M e E conjugados com as fotografias de fls. 2386 a 2388 e as regras da experiência comum.
Refira-se que se deu relevo e credibilidade a tais testemunhas porque as mesmas são todas pessoas ligadas a C quer por relações familiares quer no caso de C por relação de namoro e, por isso, pessoas pela proximidade e contacto que com o mesmo tinham idóneas a atestar as características da sua personalidade e o modo como era estimado e considerado pela família e amigos.
Por outro lado as declarações da demandante C foram esclarecedoras de modo pungente e ainda emocionado das consequências mormente emocionais da morte de C para si e para os assistentes seus pais.
Tais declarações foram corroboradas nesse particular pelos depoimentos das mencionadas testemunhas sendo que as mesmas pelas já referidas relações são pessoas idóneas a ter conhecimento directo do estado psicológico, emocional e do comportamento da demandante e dos assistentes após a morte de C.
Saliente-se que a conjugação de tais declarações e depoimentos com as fotografias supra mencionadas e as regras da experiência comum permitem constatar que C era um jovem muito estimado e querido pelos seus familiares e que a sua morte causou (como habitualmente causa a morte de um ente querido) um grande sofrimento e profunda tristeza a seus pais e irmã com o consequente isolamento e perda de alegria e propósito de vida.
Impõem, também as mais elementares regras da experiência comum que a morte inesperada de um jovem (como é o caso de C) gera sempre grande revolta nos familiares, pelo que até por simples apelo as tais regras se demonstraria tal facto.
Ademais impõem também tais regras que no caso da demandante é inevitável o seu sentimento de impotência porquanto a mesma acompanhou o seu irmão até ele morrer e não obstante as diligências por si empreendidas o mesmo faleceu.
No que se refere aos factos 121 a 122 atendeu-se também às declarações prestadas pela demandante C e aos depoimentos das testemunhas, C e T porquanto as mesmas acompanharam C enquanto o mesmo permaneceu na enfermaria após a intervenção cirúrgica e por isso se revelaram idóneas a atestar o sofrimento daquele.
Tais declarações e depoimentos foram emocionados mas bastante credíveis e consentâneos com as regras da experiência comum no que se refere ao sofrimento (físico e psicológico) de C e mais concretamente à sua presciência de morte.
Saliente-se que tal sofrimento resulta também do teor dos escritos apostos por C na revista Nova Gente nº1354 de 28 de Agosto a 3 de Setembro de 2002 constante de fls.11 a 60 do apenso I e Jornal Correio da Manhã de 27 de Agosto de 2002 constante de fls. 61 do mesmo apenso e através dos quais o mesmo foi transmitindo o que sentia.
Tais escritos conjugados com tais declarações e depoimentos, com a natureza das lesões verificadas em C aquando das manobras de reanimação e da sua morte (no primeiro caso foi constatado extenso hematoma e sufusão hemorrágica de toda a região epiglótica e extensa sufusão da base da língua e na autópsia: embebição hemorrágica dos tecidos moles da região cirúrgica com extensão aos planos superiores; marcado edema de toda a região glótica com diminuição franca do diâmetro da glote e embebição hemorrágica das estruturas dos andares superiores da laringe. Edema cerebral. Encravamento das amígdalas cerebelosas com sulco muito marcado. Pulmões com edema e congestão (pulmões de choque). Mucosa gástrica com múltiplas erosões sangrantes (erosões de stress). Conteúdo hemático no estômago. Pequeno quisto urinifero no parênquima renal esquerdo) e ainda com as regras da experiência comum permitem concluir que C sentia-se sufocar, sentia falta de ar, sentia-se revoltado pela ausência de ajuda e teve consciência de que ia morrer.
Com efeito, C sabia como qualquer outra pessoa que sem ar não se vive e sentia-se sufocar progressivamente, pedia ajuda e a mesma não lhe era dada.
A sua revolta está patente nos escritos: será que não vêem que estou mal, eu é que sei o que estou a passar, acalmar-me como? Eu não vou dormir assim, as pessoas estão doidas.
A sua presciência de morte e sofrimento, além do mais, ilustrada nos escritos: Tenho medo, vou ficar sozinho a noite, eu amo-te e reza muito, estou mesmo mal, em pequeno não passei isto, levantem estou cada vez pior, não respiro bem, falta de ar, não consigo respirar bem, falta-me + Ar.
Sentir-se sufocar ou sentir falta de ar é sempre uma circunstância particularmente angustiante pelo que sentir durante duas horas que se está a sufocar e que se vai morrer e sem que ninguém nos ajude só pode causar profundo sofrimento e revolta.
Assim e sem necessidade de outras considerações ou outros elementos probatórios consideraram-se tais factos como provados.
*
No que se refere aos factos XXXIV, XXXV, XXXVI a sua não prova decorre da ausência de prova quanto aos mesmos.
Com efeito e desde logo não foi junto qualquer diploma ou certificado de habilitações que demonstrasse que o falecido C tinha formação na área de animação sócio-cultural sendo que apenas tais documentos poderiam demonstrar tal formação ou habilitação.
Ademais também não foi feita prova de que o mesmo exercesse tal profissão pois embora a demandante C e as testemunhas T, C, M e M o tenham afirmado em audiência e tenha sido inclusivamente referido pela demandante o valor aproximado da remuneração do mesmo resulta das informações obtidas junto da Direcção Geral dos Impostos, da Segurança Social e do Centro de Emprego de Seia constantes de fls. 2542 e 2560, 2564, 2566 a 2572 e 2578 a 2581 que C não apresentava qualquer declaração de IRS desde 1998, não estava inscrito na Segurança Social e não tinha emprego.
Acresce que o pré- projecto de atelier junto a fls.2394 a 2407 dos autos é apenas um pré-projecto que de acordo com a informação obtida do Centro de Emprego de Seia e constante de fls.2560 nunca foi apresentado e não tem valor para demonstrar que o falecido C tinha formação como animador sócio-cultural ou tinha tal profissão.
De igual modo não foi feita prova que C se fosse vivo auferiria atentas as suas qualificações e espírito de trabalho uma quantia mensal em média não inferior ao dobro do salário mínimo nacional e que os assistentes desde a data das respectivas reformas e até ao fim das suas vidas podiam contar com o apoio do seu filho C se fosse vivo à razão em média de metade do salário mínimo nacional.
De facto e desde logo não foi feita prova das qualificações ou do espírito de trabalho de C porquanto não foi junto qualquer certificado de habilitações ou diploma quanto às primeiras nem foi feita qualquer prova para além da testemunhal supra referida que o mesmo trabalhasse à data da sua morte e sendo que tal prova foi infirmada pelas informações obtidas junto da Segurança Social e Direcção Geral de Impostos.
Assim, não foi feita prova que o mesmo tivesse aos trinta anos hábitos de trabalho regulares e estáveis que permitissem concluir que caso fosse vivo poderia auferir um montante em média não inferior ao dobro do salário mínimo nacional.
De igual não foi feita também prova que o mesmo pudesse no futuro contribuir com pelo menos metade do valor do salário mínimo nacional para os assistentes.
De facto não se tendo demonstrado o que poderia auferir dificilmente se pode concluir pelo que poderia contribuir sendo que também não foi alegado nem provado que tivesse necessidade de efectuar tal contribuição aos assistentes.
Com efeito, tal contribuição seria a título de alimentos (legalmente tutelados 2004º e segs do Código Civil) e não no âmbito de uma obrigação natural, pois, existindo obrigação legalmente consagrada excluiu-se a segunda e a sua necessidade teria de ser alegada e demonstrada, porquanto não só C não é o único filho como para atribuição de alimentos é indispensável que o credor dos mesmos necessite.
Pelo exposto considera-se não ter sido feita prova dos factos em causa pelo que os mesmos apenas se podiam considerar como não provados.
O Tribunal a quo procedeu ao enquadramento jurídico-penal nos seguintes termos:
Do crime de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos em violação das leges artis:
Nos termos do disposto no artigo 150º nº1 do Código Penal as intervenções e os tratamentos que segundo o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina, se mostrarem indicados e forem levados a cabo, de acordo com as leges artis, por um médico ou por outra pessoa legalmente autorizada, com intenção de prevenir, diagnosticar, debelar ou minorar doença, sofrimento, lesão ou fadiga corporal ou perturbação mental não se consideram ofensa à integridade física.
Aduz o nº2 do mesmo normativo que as pessoas indicadas no número anterior que, em vista das finalidades nele apontadas, realizarem intervenções ou tratamentos violando as leges artis e criarem desse modo um perigo para a vida ou perigo de grave ofensa para o corpo ou para a saúde são punidas com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias, se pena mais grave lhes não couber por força de outra disposição legal.
Em primeiro lugar, convém salientar que o n.º 1 do preceito contém uma norma fundamental, erigida em nome da relevância social da ciência médica e que permite excluir do âmbito da tutela típica das ofensas corporais as intervenções médico cirúrgicas (independentemente da existência de consentimento do paciente) bem como definir o seu conceito jurídico-penal.
Tal normativo opera uma exclusão da tipicidade de intervenções e tratamentos médicos desde que observados determinados requisitos subjectivos e objectivos, sendo os primeiros relativos à qualidade do agente e à intenção terapêutica e os segundos atinentes à indicação segundo o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina e observância das leges artis.(vide, Sinde Monteiro e Figueiredo Dias, Responsabilidade Médica em Portugal, BMJ nº332, Janeiro de 1984, p.67-69)
Assim, e quanto ao agente o mesmo tem de ter a qualidade de médico ou outra pessoa legalmente autorizada (v.g. enfermeiro).
Acresce que a intenção tem de ser terapêutica embora não estritamente curativa, abrangendo a profilaxia e o diagnóstico (vide, Augusto Silva Dias, Apontamentos de Direito Penal II).
Por último, a intervenção e o tratamento tem de ser indicadas segundo o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina e realizados de acordo com a leges artis.
As leges artis são um complexo de regras e princípios profissionais acatados genericamente pela ciência médica num determinado momento histórico, para casos semelhantes ajustáveis, todavia, às concretas situações individuais, designadamente, características do autor, da profissão, da complexidade do acto, do estado do doente e da própria estrutura de saúde em que em que o acto é praticado (vide, Álvaro da Cunha Gomes Rodrigues, Responsabilidade Médica em Direito Penal, Estudos dos Pressupostos Sistemáticos, Almedina, 2007, p.54 e também Luís Martinez/Calcerrada Y Gomez, La Responsabilidad Civil Medico-Sanitaria, Tecnos, Madrid, 1992, p.10)
Tratam-se, em suma, de regras de know-how sobre o tratamento médico regras essas não só de natureza técnico-científica mas também deontológicas e de ética profissional.
Por sua vez no nº2 do normativo em questão encontra-se a norma penal incriminadora cujos principais elementos se enunciarão de seguida.
Existia, no Código Penal, na sua redacção introduzida Decreto-lei nº400/82 de 23 de Setembro, uma norma semelhante à vigente que veio a ser suprimida pela alteração a tal diploma levada a cabo pelo Decreto-lei nº48/95 de 15 de Março. Todavia, o preceito original veio a ser repristinado pela revisão efectuada ao diploma em questão pela Lei nº65/98 de 2 de Setembro (a propósito do acerto da solução legislativa encontrada num e noutro sentido vide, Costa Andrade, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, anotação ao artigo 150º p. 304 e 305, Maria de Fátima Galhardas, Negligência Médica no Código Penal revisto, Sub Judice, nº11, p. 164 e 166 e Maia Gonçalves “Código Penal Anotado e Comentado”, 17ª Edição, Almedina, p.537).
No preceito em análise incriminam-se as intervenções e tratamentos médicos levadas a cabo por médico ou pessoas legalmente habilitadas para o efeito, que, violando as leges artis, criem um perigo para a vida ou gerem um risco de lesão grave na integridade física de outrem.
Refira-se que a observância das leges artis deve estar presente em todas as fases da intervenção médica, desde os actos necessários ao estabelecimento do diagnóstico até à cura, irreversibilidade da doença ou morte do doente.
Trata-se de um ilícito que, fundamentalmente, tutela os bens jurídicos referidos, inserindo-se nas classificações clássicas de crime específico próprio, de perigo concreto, possuindo, pois, um cariz subsidiário relativamente aos crimes de resultado (vide, Teresa Quintela de Brito, Responsabilidade Penal dos Médicos: Análise dos Principais Tipos Incriminadores”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 12, n.º 3, Julho – Setembro 2002, pág. 377 Teresa Quintela de Brito, Paulo Saragoça da Mata, João Curado Neves e Helena Morão, Direito Penal, Parte Especial: Lições, Estudos e Casos, Coimbra Editora, p.505 a 507).
Daí que não se possa concordar com a existência de uma coincidência parcial com a área de tutela típica do crime de ofensa à integridade física grave, previsto e punido pela alínea d) do n.º 1 do artigo 144º do Código Penal, não se podendo, outrossim, afirmar que esta norma é privilegiadora relativamente desse crime, atenta a qualidade do agente (neste sentido, vide Costa Andrade ob. cit., pág. 313).
Não se considerando as intervenções médico-cirúrgicas, com indicação médica e levadas a cabo com finalidade terapêutica por pessoa legalmente habilitada como integrantes do crime de ofensa à integridade física (nº1 do preceito), afigura-se-nos que a violação das leges artis, só por si, não reverte este quadro, isto é, não transforma tais intervenções em ofensas à integridade física.
Por conseguinte e para que o médico não incorra na prática daquele crime agravado, basta que a sua conduta, ainda que violadora das leges artis, seja medicamente indicada e seja levada a cabo com fito terapêutico.
Além da adopção de uma conduta desconforme às leges artis na realização da intervenção ou tratamento, o tipo de crime demanda que o perigo – a potencialidade de dano – para os citados bens jurídicos possa ser imputado àquela.
No domínio do Código Penal de 1982, a ligação entre tais realidades poder-se-ia estribar nos conceitos de “(...) agravamento do prognóstico de doença (...)” e de “(...) perda de hipóteses de cura (...)”, sendo que nada obsta que dele nos socorramos na actual versão do preceito (vide, Maria de Fátima Galhardas ob. cit., pág. 164.)
Por fim, resta salientar que, ao nível da tipicidade, o crime em análise é um crime doloso - por apelo ao princípio da tipicidade da conduta negligente (artigo 13º do Código Penal) sendo que, como é normal, o dolo deve abarcar todos os elementos do tipo, ou seja, a intervenção com violação de leges artis e a criação de um perigo (para a vida, para o corpo ou para a saúde).
Tecidas que estão estas considerações de ordem jurídica cabe apreciar em face das mesmas a conduta da primeira arguida a quem é imputada a prática deste ilícito.
Na tese vertida no despacho de pronúncia, em síntese, a primeira arguida de modo voluntário livre e consciente e ciente que tal não lhe era permitido em violação das leges artis aplicáveis à sua profissão de médica anestesista não efectuou a avaliação do estado de C ou não a registou no momento da alta do Recobro, causando com tal atitude perigo para a vida do mesmo, dado que os profissionais que de seguida contactaram com aquele não sabiam os critérios que presidiram a tal alta e não conheciam a sua real situação.
Compulsadas as matérias de facto provada e não provada as mesmas permitem concluir pela não cometimento deste tipo de ilícito por parte da primeira arguida.
De facto, os supra referidos elencos factuais permitem, por um lado e, desde logo, excluir a própria violação das leges artis por parte da arguida no que se refere a inexistência de avaliação de C no momento da alta do Recobro, porquanto, da matéria de facto provada decorre expressamente que tal avaliação foi feita por tal arguida e de acordo, além do mais, com a escala de Aldrete, sendo os valores no momento da alta os susceptíveis de preencher o score máximo de tal escala.
Ora, a meu ver, a inexistência de tal avaliação a ter-se comprovado é que poderia criar perigo para a vida de C e não a inexistência do registo que efectivamente se demonstrou e cuja responsabilidade era dos enfermeiros do Recobro.
Com efeito, a responsabilidade da arguida relativamente ao Recobro no dia em apreço era uma responsabilidade médica, uma responsabilidade de avaliação dos doentes e observação dos critérios de permanência e alta em tal unidade e não uma responsabilidade de fiscalizar o preenchimento de uma folha de enfermagem.
A avaliação dos doentes e observação dos critérios de permanência e alta são actos médicos, sendo que para tal o médico não se deve basear no registo da folha de enfermagem mas proceder a uma efectiva avaliação presencial do estado do doente e à apreciação, igualmente, presencial dos valores que resultam da monitorização a que o paciente está sujeito em tal unidade.
Em tal avaliação o médico utilizará não só os parâmetros da escala de Aldrete, apreciará os sinais vitais do doente mas também lançará mão de outros critérios que de acordo com o seu know-how, sua preparação e experiência pessoais reputar de relevantes e indispensáveis à tomada de decisão de permanência do doente no Recobro ou atribuição ao mesmo de alta.
Na folha de enfermagem em questão não é efectuado um registo susceptível de contemplar a amplitude e o detalhe de uma tal avaliação, sendo que as próprias características da mesma o não permitem.
Assim, para além de outros referentes, designadamente, ao balanço hídrico do doente ou à terapêutica em tal folha é efectuado o registo da escala de Aldrete sob a denominação de score de recuperação pós-anestésica e dos sinais vitais do paciente, valores esses com relevo para aferir da recuperação do doente de uma anestesia e da frequência cardíaca e saturação de oxigénio do mesmo durante a sua permanência no recobro.
Refira-se que na tese vertida da pronúncia a ausência de registo relevante se refere ao score de recuperação pós-anestésica sendo que este apenas permite aferir do grau de recuperação de um paciente de uma anestesia.
Deste modo a inexistência de tal registo, por si só, é insusceptível de causar perigo para a vida de uma pessoa, designadamente, a vida de C, porquanto, apenas a não avaliação do doente nos termos expostos e consequente alta poderia criar perigo para a vida do mesmo.
Com efeito, o perigo para a vida só pode advir da atribuição acrítica de uma alta, isto é, da atribuição de uma alta sem ponderação e avaliação prévia, dado que esta é que conduz ao desconhecimento do estado de saúde do doente e à presunção por outros que de seguida com o mesmo têm contacto que o seu estado é equivalente à alta concedida, incrementando-se, assim, o perigo já anteriormente criado para a vida do doente.
Assim, os profissionais seguintes não precisam de ter conhecimento dos critérios que presidiram à alta mas do estado do doente, estado esse que embora possam presumir ser equivalente à alta concedida devem igualmente criticamente analisar e apreciar, pois, tendo sido concedida alta tal avaliação passa a estar sob a alçada do serviço onde o doente ingressa, no pressuposto de ser uma alta entre serviços, como o caso em apreço.
Refira-se que neste caso concreto, tal alta era de uma Unidade de Recuperação Pós-Anestésica cuja função é precisamente acompanhar e vigiar o doente enquanto o mesmo recupera da anestesia a que foi sujeito e não velar pela sua recuperação da cirurgia que aconteceria na Enfermaria.
Isto é, no caso vertente o acompanhamento e recuperação pós-cirúrgica de C teria lugar na Enfermaria sendo que a alta concedida pelo Recobro não poderia ter outro significado para os profissionais que aí trabalham que não que aquele doente tinha recuperado da anestesia a que fora sujeito.
Por último mas não com menos relevo, cabe salientar que o tipo de ilícito em questão se circunscreve a específicos comportamentos activos, mormente, tratamentos e intervenções médico-cirúrgicos.
Ora, a inexistência de um registo numa folha de enfermagem não é um tratamento ou uma intervenção e configura uma conduta omissiva que, embora possa ser violadora de leges artis, não é punível pelas razões já invocadas pela incriminação em apreço.
Não resultando demonstrados outros factos praticados pela primeira arguida subsumíveis a esta incriminação impõe-se a sua absolvição quanto a este ilícito.
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Do Crime de Homicídio Por Negligência:
A Constituição da República Portuguesa consagra a inviolabilidade do direito à vida humana e na esteira de tal consagração, por regra, todo e qualquer atentado àquele bem é penalmente punido.
O crime de homicídio é, pela sua própria natureza, um crime de resultado (a morte de outrem) que pode ser cometido de forma dolosa ou de forma negligente.
O art. 137º nº1 do Código Penal preceitua quem matar outra pessoa por negligência é punido…
São elementos constitutivos deste ilícito criminal:
a) a morte de um ser humano vivo e distinto do agente – matar outra pessoa
b) a violação, por intermédio de uma acção ou de uma omissão, de um dever objectivo de cuidado;
c) a ligação da violação desse dever à morte verificada por um nexo de imputação objectiva;
d) a previsibilidade da ocorrência de um facto que preenche um tipo de crime;
No que toca ao primeiro elemento, é hoje uniformemente aceite que o termo da vida humana ocorre com a cessação da actividade cerebral, isto é com a morte cerebral (vide, Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, pág. 10 e Parecer da PGR de 1 de Setembro de 1994 , D.R. Série I-B de 11 de Outubro).
A concretização do conceito jurídico de negligência, a que alude, expressamente, o preceito em questão, faz-se por apelo ao art. 15º do mesmo diploma legal, traduzindo-se aquela na inobservância dos deveres de cuidado e diligência a que, segundo as circunstâncias, o agente está obrigado e é capaz.
A negligência pressupõe, assim, a violação, por acção ou por omissão, de um dever objectivo de cuidado posto em conexão com certos resultados proibidos que, em virtude da sua gravidade ou da sua frequência a lei quer muito particularmente evitar (vide, Eduardo Correia, Direito Criminal, Vol. I, p. 438).
O que significa que o dever de cuidado pressuposto da negligência é o dever adequado a evitar a produção do resultado, a produção do evento lesivo.
O dever de adoptar a conduta adequada a evitar o resultado pode fundar-se na lei, em regulamentos, em regras profissionais ou mesmo na experiência (Sobre este aspecto vide, Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal”, Coimbra, págs. 359 a 361)
O resultado anti-jurídico tem de estar relacionado com a conduta violadora do dever de cuidado e diligência, para que se possa afirmar que foi por ela causado.
Assim, entre a conduta do agente e a lesão do bem jurídico tutelado tem de existir um nexo que permita concluir que não só tal conduta é causa da lesão mas também que o responsável por tal lesão é o agente.
Os critérios de imputação objectiva comummente aceites apelam à adequação da causa ao resultado ou ao risco permitido, sendo que, à luz do n.º 1 do artigo 10º do Código Penal, ambos os modelos de imputação são utilizáveis, porquanto aí não se plasma a adesão legislativa ao primeiro mas tão só à delimitação do âmbito da imputação objectiva do resultado à conduta (Em sentido diverso, vide Teresa Beleza, Direito Penal, 2º Vol., Tomo II, Ed. AAFDL, pág. 292.)
A teoria da adequação esclarece que apenas pode ser relevado como causa do resultado o evento que, em concreto, se revelar adequado a produzir esse mesmo resultado, sendo que a sua ocorrência seria previsível para uma pessoa média colocada nas exactas circunstâncias em que o agente actua, segundo um juízo de prognose formulado posteriormente mas reportado a um momento anterior aos factos (vide, Teresa Beleza, ob. cit., págs. 246 a 253. e o Acórdão da Relação de Évora, citado por Simas Santos e Leal Henriques Código Penal Anotado, 2º Vol., 10ª Edição, Rei dos Livros, pág. 191).
A idoneidade determina-se segundo as regras da experiência normais e as circunstâncias concretas em geral conhecidas e, ainda, as regras ou circunstâncias que o agente, efectivamente, conhecia (vide, Eduardo Correia, ob. citada, p. 258).
Por seu turno, a denominada teoria do risco defende que a imputação objectiva apenas se verifica quando, tendo o agente criado um risco proibido, aumentado um risco permitido ou não diminuído o risco a que estava obrigado, tal risco se concretiza no resultado típico (vide, Teresa Beleza, ob. cit., págs. 262 a 273).
Claus Roxin defende, designadamente, como solução adequada para situações de violação do dever, o princípio do incremento do risco sendo que de acordo com a sua solução o procedimento a seguir para averiguar se a violação do dever de cuidado fundamenta ou não um homicídio negligente é: “examinar-se a conduta que não se poderia imputar ao agente como violação do dever de acordo com os princípios do risco permitido, depois, fazer-se uma comparação entre ela e a forma de actuar do agente e de seguida comprovar se na configuração dos factos submetidos a julgamento a conduta incorrecta ou não do autor fez aumentar a probabilidade do resultado em comparação ao risco permitido. Se assim for, existe uma violação do dever que se integra na tipicidade e dever-se-á punir o agente a título de crime negligente. Se não houver aumentado o risco, o agente não poderá ser responsabilizado pelo resultado e, consequentemente, deve ser absolvido” (Claus Roxin, Problemas Fundamentais de Direito Penal, p. 235 e ss).
O artigo 15º do Código Penal refere-se, expressamente, a capacidade do agente. Esta capacidade de cumprimento do dever objectivo de cuidado é o mais autêntico elemento configurador da censurabilidade da negligência e, assim, do seu conteúdo da culpa; o elemento revelador de que no facto se exprimiu uma personalidade leviana ou descuidada perante o dever-ser jurídico-penal (Figueiredo Dias, Pressupostos da Punição, Jornadas de Direito Penal do CEJ, p. 70).
Tal capacidade do agente afere-se “ por um critério subjectivo, concreto ou individualizante, que deve partir do que seria razoavelmente de esperar de um homem com as qualidades e capacidades do agente. Se for de esperar dele que respondesse às exigências de cuidado objectivamente imposto e devido - mas só nessas condições - é que, em concreto, se deverá afirmar o conteúdo da culpa próprio da negligência e fundamentar, assim, a respectiva punição” (Figueiredo Dias, Pressupostos da Punição, Jornadas de Direito Penal do CEJ, p. 71).
Ciente que pode haver agentes com capacidades quer inferiores quer superiores à média, o mesmo autor tem defendido (vide, Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo I, p. 111) que em relação aos primeiros vale um critério generalizador e em relação aos segundos um critério individualizador.
O integral preenchimento do ilícito não se basta com a violação do dever de cuidado, impondo também a previsão das consequências da sua conduta ou, pelo menos, a sua previsibilidade.
A possibilidade objectiva de prever o preenchimento do tipo tem sido decomposta, na esteira da posição defendida por Binding, nos conceitos de cuidado interno e cuidado externo. (vide neste sentido, JESCHECK, “Lehrbuch des Strfrechts: All. Tei”l, tradução castelhana de José Luís Manzanares Samaniego, Editorial Comares, Granada, 1993, pág. 525.).
O cuidado externo, que Binding caracterizou como dever de exame prévio, refere-se ao dever de representar ou prever o perigo para o bem jurídico tutelado pela norma e de o valorar correctamente, reconduzindo-se então à previsibilidade objectiva do perigo da acção praticada.
Deste aspecto externo decorre o dever de um comportamento interno adequado a evitar a realização do tipo - o cuidado interno - o qual, por sua vez, se desdobra em três deveres ou comandos gerais de cuidado, a saber, o dever de omitir acções perigosas, o dever de actuar prudentemente em situações de perigo e o dever de preparação ou informação prévia.
A delimitação do dever objectivo de cuidado - na dupla vertente referida - é feita com recurso a um juízo ex ante, no qual se atende ao cuidado de um homem medianamente consciencioso e diligente, do tipo social e profissional do agente, colocado na situação concreta deste, e ainda aos especiais conhecimentos de que o agente seja detentor (neste sentido, vide Acórdão da Relação de Évora de 4 de Fevereiro de 1992, C.J., 1992, T. I, pág. 291).
Em suma, o elemento interior do tipo de crime negligente reconduz-se à representação, pelo agente, da ocorrência de um facto que preenche um determinado tipo de crime como possível e à confiança daquele de que o mesmo não se irá verificar ou à falta absoluta da representação da possibilidade da ocorrência do mencionado facto, ainda que o mesmo fosse previsível.
Assim, para que se possa concluir pela negligência, é necessário que o agente, em concreto, seja capaz de cumprir o dever de cuidado idóneo a evitar o resultado anti-jurídico e, apesar de ser, não o cumpra, seja porque prevendo a realização de um facto correspondente a um tipo de crime, confiou, sem razão, que o mesmo não viria a ocorrer (negligência consciente - art. 15º al. a) do Código Penal), seja, porque nem chegou a prever, como devia e podia, a realização de tal facto (negligência inconsciente - art. 15º al. b) do mesmo diploma).
Tais conceitos de aplicação genérica devem ser adaptados à especificidade da situação em causa, dado que os factos desenrolam-se no meio hospitalar sendo agentes dos mesmos profissionais de saúde.
Se é certo que o ser humano é um ser para a morte na célebre expressão Sein zum Tode de Heidegger, o direito à saúde assume-se cada vez mais como uma conquista civilizacional indissociável da dignidade da pessoa humana.
Com efeito, dignidade pertence ao Homem, pelo simples facto de que é um Homem e é inerente à sua qualidade de membro da família humana.
E o seu corpo não é qualquer coisa, como qualquer coisa do mundo, mas faz parte integrante da sua própria pessoa. Por isso se reveste da maior importância o respeito pelo corpo humano que é também o respeito devido à própria pessoa. Somos iguais, mas simultaneamente únicos e insubstituíveis (Paula Martinho da Silva, Introdução à Convenção dos Direitos do Homem e da Biomedicina, Anotada, Cosmos, 1997, p.27).
Ao direito à saúde de cada pessoa que tem hoje consagração constitucional no artigo 64º nº1 da Constituição da República Portuguesa contrapõe-se o dever de assistência dos profissionais de saúde.
Trata-se de um dever que no caso dos médicos engloba o dever de tratamento mas não se circunscreve ao mesmo.
Com efeito, abrange também o dever de preparação do próprio médico, o dever de elaboração do diagnóstico (sendo este na expressão de Alberto Crespi, o momento central da actividade típica do profissional médico, enquanto este, para poder estabelecer um tratamento deve verificar se efectivamente existem sinais morbosos objectivos e a existirem qual a natureza da enfermidade e a sua gravidade - La Responsabilitá Penale del Trattamento Medico-Chirurgico com Esito Infausto, G.Priulla Editore, Palermo, Itália, p.74)), o dever de tratamento stricto sensu e o dever de vigilância ou de acompanhamento susceptível de se protrair à fase de convalescença ou pós-operatória consoante os casos.
Tal dever de assistência começa para o médico com a própria aceitação do doente ou afectação daquele nos serviços clínicos ou hospitais onde o aquele exerce funções e só cessa com a cura do doente, a irreversibilidade do seu estado ou a sua morte.
O citado dever de assistência ainda que de conteúdo mais limitado, porquanto centrado sobretudo no dever de vigilância e acompanhamento é também um dever dos enfermeiros e com limites temporais idênticos aos referidos.
O dever de assistência nos termos propugnados é indissociável da observância das leges artis, porquanto, toda a actividade de um profissional de saúde, é orientada não só pela observância de regras de índole técnico científica ou de know-how mas também por regras deontológicas e de ética profissional.
Assim, o dever de observância de tais regras tem a mesma duração do dever de assistência.
De um profissional de saúde, mormente, médico apenas se exige e espera-se a melhor aplicação da sua arte curativa não se lhe impondo o sucesso curativo, porquanto, o mesmo depende de factores endógenos e exógenos estranhos ao próprio médico e muitas vezes pelo mesmo inultrapassáveis, v.g. a natureza maligna da doença, o avanço do processo patológico, a idade do doente, a falta de colaboração deste, reacções de hipersensibilidade inesperadas…
Em conformidade a diligência de um médico, a observância das leges artis e o dever geral de cuidado ganham relevo à luz da obrigação de meios e não de resultados.
Deste modo a acção esperada de evitar o resultado por parte do médico garante nos termos do artigo 10º nº2 do Código Penal, centra-se no seu dever de actuação, pois, o resultado morte pode sobrevir não obstante toda a diligência empreendida.
Em suma, se a omissão do médico foi causal da morte ou se ela criou ou incrementou um risco proibido que se concretizou no resultado infausto e esse risco se encontra no âmbito da tutela da norma que impõe o dever de cuidado objectivo médico tal não pode significar que mediante a sua actuação o paciente necessariamente sobreviveria ou curar-se-ia mas apenas de que a omissão do médico garante é equiparada a um comportamento activo desencadeador daqueles resultados embora noutras circunstâncias, isto é, mediante a actuação daquele agente, possivelmente tais resultados não seriam de excluir (vide, Álvaro da Cunha Gomes Rodrigues, Responsabilidade Médica em Direito Penal, Estudo dos Pressupostos Sistemáticos, Almedina, 2007)
Todavia, tal não constituiu qualquer responsabilidade diminuída, pois, que os meios utilizados devem sempre representar um esforço para conseguir a cura ou melhoria da saúde do paciente (o fim em vista que a obrigação de meios impõe) e que só não será obtida se não estiver ao alcance da intervenção médica curativa.
Como já supra aflorado nos termos do artigo 10º nº2 do Código Penal a comissão de um resultado por omissão só é punível quando sobre o omitente recaia um dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar esse resultado.
Tal dever de garante não se funda apenas na lei, no contrato ou na ingerência, mas também em situações de proximidade existencial, comunidade de vida e solidarismo (vide neste sentido Figueiredo Dias, Pressupostos de Punição, p.55).
De igual modo a chamada assunção voluntária da posição de protecção tem sido considerada como fonte de dever de garante (vide neste sentido Hans-Heinrich Jescheck, Tratado de Derecho Penal, Parte General, Cuarta Edición, Editorial Comares, Granada, p.567).
Afigura-se, pois, que o dever de garante pode emanar de qualquer fonte jurídica que compreenda a relação entre o agente e o bem jurídico tutelado e que, destarte, vise evitar o resultado proibido prefigurado na norma incriminadora, o que, por força do princípio de congruência ou da analogia substancial entre a ordem constitucional e a ordem jurídico-penal, se traduz, afinal, num resultado proibido pela própria lei fundamental, cuja produção se visa evitar (Álvaro da Cunha Gomes Rodrigues, ob. citada, p.128).
Relativamente aos profissionais de saúde, designadamente, médicos e enfermeiros, existe um dever genérico de auxílio ou de assistência que a própria natureza das suas profissões impõe.
Por outro lado, quando haja uma efectiva assunção de assistência a um doente tal dever de garante emerge e é irrelevante se foi celebrado ou existe um contrato de prestação de serviços válido ou um vínculo a determinado serviço de saúde ou a determinadas funções ou se terminou o turno ou o horário de trabalho.
Em suma, o profissional de saúde assume a posição de garante pela evitação do resultado típico ao assumir o tratamento ou a assistência a um doente, independentemente da configuração, validade ou eficácia de qualquer negócio jurídico.
A doutrina portuguesa está há muito de acordo em que a aceitação pelo médico de um doente cria para aquele um dever jurídico (posição de garante) de evitar a verificação de um evento danoso para a saúde e vida deste. Aceitação que, em nossa opinião, é bastante que se traduza numa relação fáctica de cuidado assumido pelo médico perante o doente, capaz de fundamentar a proximidade sócio-existencial de um e de outro. Tanto basta para que daqui derive a exigência de solidarismo que verdadeiramente está na base da relevância jurídico-penal da comissão por omissão, sem que interesse e, em último termo, a validade ou subsistência do vínculo jurídico (Figueiredo Dias e Sinde Monteiro, Responsabilidade Médica em Portugal, BMJ, 332, p.64) .
Assim, à luz do ordenamento penal português a proximidade sócio-existencial do profissional de saúde e do doente decorrente de aceitação expressa ou tácita, desde que inequívoca do paciente, pelo primeiro é suficiente para face ao disposto do artigo 10º nº2 do Código Penal o vincular ao dever pessoal e jurídico de evitar o resultado típico que a omissão da acção susceptível de paralisar o curso patológico causal irá desencadear, ou seja, para o investir na posição de garante, sem que tal signifique como supra explanado que seja garante da cura ou da evitação da morte.
Com, efeito, o Direito não pode proibir resultados mas apenas comportamentos humanos susceptíveis de os provocar dado que o Homem não tem o poder de impedir determinados acontecimentos mas apenas o dever de tentar evitá-los.
Por isso os deveres não visam impedir resultados visam exactamente diminuir a probabilidade de ocorrência do resultado (Damião da Cunha, Algumas Reflexões Críticas sobre a Omissão Imprópria no Direito Português, Liber Discipulorum Figueiredo Dias, p.499 e segs.).
A violação do dever de cuidado por parte do profissional de saúde consubstanciador da negligência é a omissão da acção esperada pelo paciente e pela comunidade em que este se insere, ou seja, da assistência ou de auxílio, acção essa que teria diminuído o risco de verificação do resultado típico.
Neste contexto, a culpa negligente censura o não recurso ao manancial de conhecimentos e de esforços técnicos que se pode esperar de qualquer profissional de saúde numa certa época e lugar, ponderando-se, em concreto, vários critérios como as condições pessoais do profissional em questão (v.g. capacidade profissional, preparação e experiência…) as circunstâncias do caso, quer atinentes às características do paciente quer à patologia e a fase em que se desenvolve a sua actuação.
Assim, pelo menos em tese geral pode dizer-se, com Ebermeyer (citado por Cuello Calón, “Derecho Penal”, Tomo II (Parte Especial), volume 2º, Bosch, 14ª edição, pág. 491, nota 1) que age com negligência punível o profissional de saúde que prescinde da cautela a que está obrigado pelas circunstâncias e pelas suas condições pessoais e não prevê a produção do facto danoso ou, prevendo-o, confia na sua não realização.
Refira-se que na negligência é admissível um conceito extensivo de autor, sob a forma de autoria paralela, secundária ou acessória, em que o resultado é produzido imediatamente por um mas só porque anteriormente outro violou o cuidado objectivamente devido e criou assim um risco não permitido.
Assim, relativamente aos factos negligentes é autor todo aquele que por violação do cuidado objectivamente devido contribui para a criação de um risco não permitido que se concretiza no resultado (vide, Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral Tomo I, Coimbra Editora, 2004, p.650 e 651)
Tal entendimento consagra o princípio da confiança segundo o qual ninguém tem de responder pela falta de cuidado de outrem por se confiar que cada um observará os cuidados que pessoalmente lhe incumbem.
É, pois, à luz do enquadramento jurídico exposto que cabe apreciar concretamente a actuação das arguidas a quem é imputada nestes autos a autoria de um crime de homicídio negligente na pessoa de C.
Desde logo cabe salientar que a omissão do dever de cuidado que em audiência se apurou relativamente a cada uma das arguidas não tem correspondência na descrição factual contida na pronúncia mas sim no elenco factual apurado em audiência de julgamento e que conduziu à comunicação de alterações não substanciais de facto.
Acresce que a descrição de factos contida na pronúncia relativamente à arguida M na óptica deste Tribunal não seria reveladora de uma actuação negligente, porquanto, é uma tese que revela desconhecimento das finalidades do Recobro.
Com efeito, sendo esta uma unidade de recuperação de uma anestesia a permanência de um doente pelo período de vinte e quatro horas e ressalvadas outras indicações que resultem do Regulamento da mesma, só pode ser determinada por critérios que não aconselhem a alta na perspectiva anestésica.
Acresce que a vigilância de um doente no pós-operatório e pelo período de vinte quatro horas é a vigilância devida por todo um Hospital e não por uma só unidade ou serviço.
Por outro lado, não era o conhecimento da extensão da cirurgia que iria determinar a prestação de cuidados anestésicos distintos sendo certo que não resultou sequer demonstrado que implicasse a prestação de cuidados pós-operatórios a nível de Enfermaria diferenciados.
Assim entende-se que a omissão do dever de cuidado descrita na pronúncia nunca conduziria à afirmação da responsabilidade penal da arguida M.
Todavia, a matéria apurada e comunicada em audiência é consubstanciadora da omissão por parte desta arguida de um dever de cuidado, concretamente um dever de assistência médica que podia e era capaz de ter observado.
Com efeito, da matéria de facto provada resulta que cerca das 19h30, a segunda arguida contactou a primeira arguida a qual tinha assistido C no Recobro, sendo tal contacto efectuado telefonicamente e transmitiu-lhe que o doente continuava bastante ansioso, com tossícula, agitado, referindo falta de ar e a afirmar que ia morrer.
Mais resulta que perante tal informação, por telefone, a primeira arguida, deu indicação à segunda arguida para administrarem a C ½ formula de Hidroxizina IM (injecção intra muscular), ou seja, 50 mg de Atarax IM, e não se deslocou à Enfermaria para observar C, não deu instruções para o fazer regressar ao Recobro a fim de o aí observar e serem avaliados os seus parâmetros vitais, designadamente, com recurso ao monitor nem deu instruções para que fosse solicitada a presença na Enfermaria de outro médico de serviço a fim de observar aquele.
Acresce depois de ter dado tal indicação e até ao momento em que a sua presença na Enfermaria foi solicitada através de bip não se deslocou à mesma para observar C nem contactou a segunda arguida ou a enfermeira M a fim de saber o efeito naquele da terapêutica por si indicada pelo telefone.
Retira-se, ainda, da matéria de facto provada que no período pós-operatório e pelo menos pelo período de vinte e quatro horas é necessária uma vigilância apertada da ventilação e sinais vitais, pois pode ocorrer obstrução das vias aéreas superiores por edema/hemorragia, situação o que era do conhecimento das arguidas.
É este elenco factual que sustenta a não observância de uma dever de assistência médica que lhe incumbia porque o assumiu voluntariamente ao decidir prescrever pelo telefone, colocando-se assim numa posição de garante.
Saliente-se que não interessa saber se a morte de C ocorreria caso a mesma não tivesse inobservado tais deveres, porquanto, tal resultado não estava nas mãos desta arguida evitar mas sim tentar evitar.
A sua obrigação era uma obrigação de meios e não de resultados a conduta que lhe era exigível era de ser consentânea com a prescrição efectuada e não confiar no resultado de tal prescrição.
O princípio da confiança não exclui a nossa responsabilidade ao conferir responsabilidade aos outros mas antes determina que independentemente de outras responsabilidades cada agente responda pela sua.
Perante a transmissão de queixas de falta de ar, ansiedade e agitação cabia à arguida observar o doente presencialmente ou fazer com que algum colega o observasse ou fazê-lo regressar ao Recobro para despistar, designadamente, com recurso ao monitor a causa das queixas.
Não se pode assumir que determinado comportamento só porque se prolonga no tempo é uma característica da personalidade da pessoa, sendo certo que neste caso concreto não só o contacto da arguida com C fora breve como e era recente a admissão do mesmo naquele Hospital.
Acresce que tal assunção não pode ter lugar no meio hospitalar em que as pessoas são despojadas da sua vaidade, do seu pudor, da sua autonomia e liberdade e confiam no seu despojamento que as tratem e assistam e se possível as curem.
Não era legítimo à arguida confiar que se tratava de ansiedade como estado nervoso, prescrever e descansar sobre essa prescrição.
Por outro lado se horas antes avaliara C no Recobro e o mesmo estava bem embora ansioso a simples existência de um telefonema acerca do doente quando o mesmo já se encontrava rodeado dos seus familiares e numa zona menos ingrata do que o Recobro deveria tê-la alertado para a necessidade de averiguar melhor o que se passava e aferir do seu estado.
A arguida sabia que C fora intervencionado a uma zona de especial melindre e sabia quais eram os meios humanos e materiais existentes na Enfermaria daquele Hospital porquanto trabalha no mesmo desde 1974.
De igual modo a arguida sabia que os Enfermeiros não fazem diagnósticos e que a correcta avaliação de um estado de um doente pressupõe uma intervenção médica, pelo que deveria ter providenciado pela mesma.
A arguida é médica e estava de serviço de urgência naquele dia e naquele Hospital.
Não restam, pois, dúvidas que a arguida M omitiu um dever de cuidado e de diligência de que era capaz e a que estava obrigada e que conduziu à morte de C.
Relativamente à arguida M resulta da matéria de facto provada que C, quando deu entrada na Enfermaria, estava ansioso e agitado, queixava-se de falta de ar e a sua respiração era acelerada, o que foi desde logo percepcionado por aquela.
Durante o período compreendido entre as 19H00 e as 21H00 a segunda arguida deslocou-se ao quarto de C por três vezes, duas delas juntamente com a enfermeira M.
Da primeira vez foi no momento da entrada de C na Enfermaria e juntamente com a enfermeira M, outra para lhe administrar uma injecção e a terceira vez juntamente com a enfermeira M e pelas 21H00.
Durante todo este período de tempo de duas horas, em que esteve sempre acompanhado ou pelas referidas familiares ou por estas e sua namorada, C queixou-se sempre e constantemente de sentir bastante dificuldade em respirar.
Por lhe ter sido recomendado pelas referidas enfermeiras que não falasse para não se esforçar, C passou a comunicar o que estava a sentir através de escritos em jornais e revistas.
As queixas foram transmitidas pelas familiares do doente às enfermeiras de serviço, onde se incluía a arguida.
Atentas as queixas e agitação de C, cerca das 19h30, a segunda arguida contactou a primeira arguida a qual o tinha assistido no Recobro, sendo tal contacto efectuado telefonicamente e transmitiu-lhe que o doente continuava bastante ansioso, agitado, com tossícula, referindo falta de ar e a afirmar que ia morrer.
Foi-lhe dada indicação para administrar a C ½ formula de Hidroxizina IM (injecção intra muscular), ou seja, 50 mg de Atarax IM, o que fez.
Pelas 20H00, o Dr. A que estava nesse dia de serviço de urgência e de acordo com o sistema instituído presencialmente no Hospital de S. Francisco Xavier contactou a Enfermaria para saber o estado de C tendo falado com M.
Após tal contacto telefónico M informou a referida arguida que o Dr. A ia jantar e que depois se deslocaria à enfermaria para observar C.
Assim, cerca das 20H10 a arguida em questão, ciente que a injecção de hidroxizina intra muscular por si administrada a C não tinha provocado alteração do estado do mesmo atentas as queixas relatadas pelos seus familiares deu conhecimento ao Dr. A que C estava muito agitado, muito ansioso e se queixava de falta de ar e de que ia morrer.
O referido médico informou-a que depois passaria na Enfermaria.
Após ter contactado o Dr. A e até às 21H00 a segunda arguida não voltou a contactar a primeira arguida, o Dr. A ou qualquer outro médico de serviço naquele hospital solicitando a presença destes junto de C ou informando-os do estado deste último.
Pouco tempo depois, a tia de C dirigiu-se ao gabinete de enfermagem e solicitou à segunda arguida e à enfermeira M que fossem ao quarto assistir àquele dadas as queixas que ele apresentava.
Poucos minutos depois, a segunda arguida e enfermeira M, iniciam a distribuição dos fármacos aos restantes doentes do Serviço, iniciando a rotina pelo início do corredor, ou seja, pelos quartos mais afastados daquele onde se encontrava o doente C.
Cerca das 21H00, a mencionada arguida e M chegam ao quarto de C e quando se preparavam para lhe administrar a terapêutica prescrita o mesmo ficou pálido com cianose nas mãos e nos lábios e sudorese.
Durante cerca de 45 minutos a equipa de médicos presentes efectuou manobras de reanimação as quais não obtiveram resultado positivo, pelo que findas as mesmas foi declarado o óbito do doente C, o que ocorreu pelas 21H45.
À luz de tal factualidade não restam dúvidas que, de igual modo, a arguida M omitiu um dever de cuidado e de diligência que consubstancia a sua negligência.
Por força quer da sua qualidade de enfermeira quer das funções concretamente exercidas naquele dia e naquele Hospital sobre tal arguida impendia um dever de assistência a C.
Com efeito, o mesmo estava internado numa Enfermaria sob os seus cuidados sendo que tal situação colocava a referida arguida em posição de garante.
A arguida M percepcionou o estado de C desde que o mesmo deu entrada na Enfermaria e desconfiou de imediato, porquanto, embora tal doente estivesse distribuído, por razões internas de serviço, à enfermeira M a arguida M assumiu a sua vigilância, não só o acompanhou ao quarto como telefonou a dois médicos alertando-os para as queixas relatadas e o estado do doente.
Não obstante tal diligência inicial a arguida quando efectua o telefonema ao médico cirurgião A sabe que a hidroxizina prescrita verbalmente pela primeira arguida e por si administrada não fez o efeito esperado de tranquilizar o doente, porquanto já passara meia hora e é por isso que telefona a insistir.
Todavia, e apesar de ser alertada uma vez mais pela tia de C não volta a contactar nenhum médico, sendo que inicia a distribuição dos fármacos do serviço de acordo com a rotina habitual.
Não se olvida que C estava ao cuidado também da enfermeira M nem que existiam outros pacientes naquele dia e hora naquele serviço, embora apenas se tenha logrado confirmar que ao longo daquele dia passaram por aquela Enfermaria dez pacientes.
Contudo, nenhum deles estava em risco de vida como C, nenhum se queixava de falta de ar reiterada e insistentemente.
Saliente-se que os escritos de C são muito expressivos e pungentes mas que apenas um foi visualizado pela arguida M e de acordo com a sua declaração não se tratava de nenhum dos apostos na Revista Nova Gente e Jornal Correio da Manhã.
No entanto tal visualização não era sequer necessária, pois, a mera verbalização da falta de ar pelo paciente e seus familiares era mais do que suficiente para justificar o accionar e desde o início dos mecanismos de urgência.
É óbvio que nenhum enfermeiro pode diagnosticar ou obrigar um médico a se deslocar a uma Enfermaria mas é também óbvio que até às 21H00 nenhum deles foi convocado de urgência.
A situação de C, embora urgente, não foi pela arguida M configurada como tal e o perigo criado para a vida do mesmo com a não observância do dever de assistência quer por parte da arguida M quer por parte de A foi incrementado subsequentemente pela não observância de tal dever por parte da arguida M (e também M).
Pouco releva se C não evidenciava tiragem ou adejo nasal, se suava pouco ou muito se o dreno estava funcionante e não havia perdas hemáticas significativas, porquanto, o mesmo se queixava de falta de ar e isso bastava.
Saliente-se que não cabia a ele chamar a atenção dos profissionais de saúde e mostrar sinais do seu mal-estar. Não lhe era exigível apresentar e de forma evidente os sintomas clássicos de edema da glote, pois, cabia às arguidas detectá-los e providenciar pela sua não verificação.
A arguida M ao não voltar a contactar os médicos ou não equacionar a situação como situação de urgência omitiu um dever de cuidado e de diligência de que era capaz e estava obrigada e que conduziu à morte de C.
Também neste caso pouco releva que não obstante ser despoletada a situação de emergência C viesse efectivamente a falecer, pois, a esta arguida como a todos os profissionais envolvidos não impendia o dever de evitar o resultado mas de tudo fazer para o evitar.
Assim, não restam dúvidas que as actuações concomitantes e subsequentes das arguidas (mas não só destas) foram causais da morte de C sendo que a obstrução das vias aéreas pelo mesmo apresentada por hemorragia lhes era previsível embora jamais tivessem representado a sua morte.
Pelo exposto impõe-se a condenação das arguidas quanto a este crime.
Para a determinação da medida das penas a sentença recorrida ponderou:
Feito o enquadramento jurídico-penal da matéria de facto provada, cumpre agora determinar qual a natureza da pena a aplicar e fixar a respectiva medida concreta dentro da moldura abstractamente prevista para o crime de homicídio negligente: pena de prisão cujos limites mínimo e máximo são, respectivamente, um mês e três anos ou pena de multa de dez a trezentos e sessenta dias (artigo 41º nº1, 47º e 137º nº1, todos do Código Penal)
A aplicação de qualquer pena visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, sendo certo que em caso algum a pena poderá ultrapassar a medida da culpa, devendo o juiz na operação de determinação da medida da pena conduzir-se por duas ideias fundamentais: a culpa e a prevenção, quer geral quer especial (art. 40º e 71º do Código Penal).
São várias as orientações que procuram fornecer critérios para o juiz determinar concretamente a pena a aplicar ao agente, destacando-se, por um lado, a corrente que atribui à culpa o papel preponderante na determinação da medida concreta da pena (vide, entre outros, Eduardo Correia, Direito Criminal, Vol. I, p. 62 e ss, Cavaleiro Ferreira, Lições de Direito Penal, II, p. 103 e ss, Maia Gonçalves, Código Penal Anotado, nota ao art. 72º, Jorge de Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, p. 224 e ss, Ac. da RC de 17.1.96, CJ, Tomo I, p. 38, Ac. do STJ de 24.5.95, CJ, Tomo II, p. 210) e por outro lado, a orientação expendida por Figueiredo Dias (ob. citada, p. 227 a 231) que, em síntese, confere às finalidades preventivas o papel determinante, sendo as exigências de ressocialização do delinquente os factores decisivos, em último termo, da medida concreta da pena a aplicar.
São os critérios definidos por esta segunda tese que aplicaremos no caso sub judice, considerando, designadamente, o papel relevante que a prevenção especial de ressocialização assume no nosso ordenamento jurídico.
Nos termos do disposto no art. 70.º do Código Penal sempre que um crime seja punido com pena de multa e pena de prisão o tribunal deve dar prevalência à multa desde que a mesma realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Tendo o direito penal uma função exclusiva de preservação de bens jurídicos, as finalidades das penas serão sempre de carácter preventivo.
Assim, a opção por uma pena de multa em detrimento de uma pena de prisão deve ser feita em função das exigências de prevenção geral e especial que a situação concreta oferece, quando estas se bastam com a aplicação de uma pena de multa.
No caso vertente as razões de prevenção geral mostram-se elevadas, atendendo, por um lado, ao incremento de ilícitos desta natureza na área desta comarca e o sentimento de insegurança que a ocorrência e conhecimentos dos mesmos causa na comunidade e, por outro lado, a natureza do bem jurídico e a intensidade da violação ao mesmo perpetrada.
As exigências de prevenção especial revelam-se pouco expressivas dado que as arguidas têm bom comportamento anterior os factos, sendo que tal factor é especialmente relevante se atendermos quer à idade das arguidas quer à circunstância de nosso ordenamento jurídico ser-se imputável penal desde os dezasseis anos de idade.
Deste modo mostra-se adequada à opção pela aplicação às mesmas de uma pena de multa e em harmonia, aliás, com o princípio consagrado no art. 70º do Código Penal.
Com efeito, atenta a factualidade apurada é de concluir que tal pena de natureza não detentiva é suficiente para que as arguidas interiorizem o carácter ilícito e censurável das suas condutas e passem no futuro a não adoptar comportamentos desconformes com a ordem jurídica.
Nos termos do disposto no art. 71º do Código Penal, na determinação da pena o tribunal atenderá a todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo, deponham a favor ou contra o agente, considerando, designadamente, as enunciadas do nº2 do mencionado preceito.
Assim e quanto a ambas as arguidas cabe salientar a intensidade da violação dos respectivos deveres de cuidado e de diligência, sendo que se considera que tal intensidade é mais expressiva relativamente à arguida M por ser médica e lhe caber a ela diagnosticar.
Saliente-se que embora seja indiscutível o desvalor do resultado o mesmo jamais foi representado pelas arguidas sendo a sua negligência inconsciente.
A favor das arguidas milita a sua postura colaborante em audiência de julgamento que foi muito relevante para a descoberta da verdade material, designadamente, a da arguida M.
Ainda a seu favor a circunstância de se mostrarem decorridos mais de cinco anos desde os factos e não haver notícia da prática pelas mesmas de qualquer outro ilícito criminal ou não.
Também no sentido da atenuação, a inserção social das mesmas e a consideração de que são portadoras.
Sopesados todos estes factores considera-se como proporcionada à culpa da arguida M e às exigências de prevenção que o caso reclama a pena de 240 (duzentos e quarenta) dias de multa e à culpa da arguida M e às exigências de prevenção que o caso reclama a pena de 220 (duzentos e vinte) dias de multa.
Em relação ao quantitativo diário das mencionadas pena de multa, dispõe o artigo 47º nº2 do Código Penal que o mesmo deve ser fixado em função da situação económica e financeira do arguido e dos seus encargos pessoais.
Saliente-se, porém, que tal quantitativo diário deve ser fixado em termos de consubstanciar um sacrifício real para o arguido, sob pena de se retirar a eficácia da pena e desacreditar-se a justiça (vide, neste sentido Ac. da RC de 3.10.96, BMJ nº460, p. 822 e Ac. do STJ de 2.10.97, CJ, III, p. 183)
No caso vertente e relativamente à arguida M há a considerar que a mesma aufere no conjunto do seu agregado cerca de €6700,00 por mês e tem despesas mais avultadas na ordem dos €1500,00 mensais, sendo que a estas acrescem as despesas correntes com alimentação, higiene, vestuário e lazer e que muito provavelmente lhe consomem pelo menos ¼ do seu rendimento disponível.
A referida arguida não tem ninguém a seu cargo pelo que se considera adequado o quantitativo diário de €22,00 (vinte e dois euros).
Relativamente à arguida M a mesma aufere cerca de €2000,00 mensais, é viúva e tem dois filhos que vivem consigo sendo que uma é estudante universitária e está ainda totalmente a seu cargo.
Tal arguida tem despesas com renda de casa na ordem dos €90,00 mensais e despende pelo menos um 1/3 do seu rendimento disponível nas despesas correntes com alimentação, higiene, vestuário, lazer e educação da sua filha.
Assim, considera-se adequado o quantitativo diário de €8,00 (oito euros).
Por último refira-se que não cabe indagar da adequação da condenação das penas acessórias previstas nos artigos 66º e 67º do Código Penal porquanto as mesmas não são susceptíveis de serem aplicadas em virtude da moldura penal abstracta e da modalidade da pena concretamente em causa.
O tribunal efectuou o seguinte enquadramento jurídico-civil:
Atenta a desistência de instância relativamente à demandada M cabe nesta sede apenas apreciar quer do direito à indemnização por parte dos assistentes e demandante quer da obrigação de indemnização por parte das demandadas M e M e qual a extensão de tal direito e obrigação.
Determina o artigo 129º do Código Penal que a indemnização por perdas e danos, de qualquer natureza, que emergem da prática de um crime é regulada quantitativamente e nos seus pressupostos pela lei civil.
Conforme resulta do teor deste preceito a responsabilidade civil emerge directa e imediatamente do crime objecto do processo penal.
Assim, o pedido de indemnização civil só se pode fundar em danos decorrentes do crime.
O direito que os assistentes e demandante pretendem fazer valer neste processo inscreve-se no domínio da responsabilidade civil extra-contratual em que a imposição da obrigação de indemnização depende da verificação dos pressupostos enunciados no art. 483º do Código Civil e que são os seguintes: facto voluntário do agente, ilicitude, culpa, dano e nexo de causalidade entre esse dano e a conduta do lesante.
Facto voluntário significa facto objectivamente controlável ou dominável pela vontade humana, isto é, que o agente pudesse de alguma forma evitar.
No que tange ao pressuposto da ilicitude, há que referir que o mesmo se reporta ao facto do lesante, à sua actuação e não ao efeito (danoso) que dele emerge.
Relativamente ao dano este é a supressão ou diminuição de uma vantagem protegida pelo direito (Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações Vol. II), todo o prejuízo ou desvantagem ou perda que é causado nos bens jurídicos, de carácter patrimonial ou não (Vaz Serra, BMJ nº84, p. 8), a perda in natura que o lesado sofreu em consequência de certo facto, nos interesses (materiais, espirituais ou morais) que o direito violado ou a norma infringida visam tutelar (Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Almedina, p. 568).
Os danos patrimoniais são os susceptíveis de uma avaliação pecuniária, os que incidem sobre interesses de natureza material ou económica e se reflectem sobre o património do lesado (Almeida Costa, Direito das Obrigações, p. 389 e 390) e os danos não patrimoniais são os que incidem sobre bens de carácter imaterial, desprovidos de conteúdo económico, insusceptíveis verdadeiramente de avaliação em dinheiro, v.g. integridade física, saúde, correcção estética, a liberdade, a honra, a reputação (Inocêncio Galvão Telles, Direito das Obrigações, p. 375).
Não são todos os danos que são indemnizáveis mas, tão-somente, os que o lesado não teria sofrido se não fosse a lesão (art. 563º do Código Civil), ou seja, os resultantes do facto.
Assim, o facto tem de ser causa adequada à produção dos danos, afastando-se, a indemnização de danos em relação aos quais não seja possível estabelecer um nexo de causalidade adequada com o facto, v.g. os fortuitos e anómalos.
Compulsada a matéria de facto provada mormente factos 1 a 95, 115 e 120 a 127 não restam dúvidas que a mesma permite concluir pela reunião dos pressupostos de responsabilidade civil supra enunciados.
Com efeito de tal matéria de facto resulta que as demandadas de modo voluntário omitiram deveres de cuidado que sobre as mesmas impendiam, sabiam lhes ser devidos e de que eram capazes de observar sendo que tal omissão conduziu à produção de danos, mormente e com maior relevo o dano morte e presciência de morte de C e subsequentes danos não patrimoniais e patrimoniais dos seus legais herdeiros.
Refira-se que são aqui inteiramente válidas as considerações expendidas na sentença proferida relativamente à matéria crime no que se refere à omissão e dever de garante das demandadas e que se entende ser de reiterar nesta sede.
De facto vigorando o princípio da causalidade adequada a comissão de um resultado por omissão só é punível quando sobre o omitente recaia um dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar esse resultado.
Tal dever de garante não se funda apenas na lei, no contrato ou na ingerência, mas também em situações de proximidade existencial, comunidade de vida e solidarismo (vide neste sentido Figueiredo Dias, Pressupostos de Punição, p.55).
De igual modo a chamada assunção voluntária da posição de protecção tem sido considerada como fonte de dever de garante (vide neste sentido Hans-Heinrich Jescheck, Tratado de Derecho Penal, Parte General, Cuarta Edición, Editorial Comares, Granada, p.567).
Afigura-se, pois, que o dever de garante pode emanar de qualquer fonte jurídica que compreenda a relação entre o agente e o bem jurídico tutelado e que, destarte, vise evitar o resultado proibido prefigurado na norma incriminadora, o que, por força do princípio de congruência ou da analogia substancial entre a ordem constitucional e a ordem jurídico-penal, se traduz, afinal, num resultado proibido pela própria lei fundamental, cuja produção se visa evitar (Álvaro da Cunha Gomes Rodrigues, ob. citada, p.128).
Relativamente aos profissionais de saúde, designadamente, médicos e enfermeiros, existe um dever genérico de auxílio ou de assistência que a própria natureza das suas profissões impõe.
Por outro lado, quando haja uma efectiva assunção de assistência a um doente tal dever de garante emerge e é irrelevante se foi celebrado ou existe um contrato de prestação de serviços válido ou um vínculo a determinado serviço de saúde ou a determinadas funções ou se terminou o turno ou o horário de trabalho.
Em suma, o profissional de saúde assume a posição de garante pela evitação do resultado típico ao assumir o tratamento ou a assistência a um doente, independentemente da configuração, validade ou eficácia de qualquer negócio jurídico.
A doutrina portuguesa está há muito de acordo em que a aceitação pelo médico de um doente cria para aquele um dever jurídico (posição de garante) de evitar a verificação de um evento danoso para a saúde e vida deste. Aceitação que, em nossa opinião, é bastante que se traduza numa relação fáctica de cuidado assumido pelo médico perante o doente, capaz de fundamentar a proximidade sócio-existencial de um e de outro. Tanto basta para que daqui derive a exigência de solidarismo que verdadeiramente está na base da relevância jurídico-penal da comissão por omissão, sem que interesse e, em último termo, a validade ou subsistência do vínculo jurídico (Figueiredo Dias e Sinde Monteiro, Responsabilidade Médica em Portugal, BMJ, 332, p.64) .
Assim, à luz do ordenamento penal português a proximidade sócio-existencial do profissional de saúde e do doente decorrente de aceitação expressa ou tácita, desde que inequívoca do paciente, pelo primeiro é suficiente para face ao disposto do artigo 10º nº2 do Código Penal o vincular ao dever pessoal e jurídico de evitar o resultado típico que a omissão da acção susceptível de paralisar o curso patológico causal irá desencadear, ou seja, para o investir na posição de garante, sem que tal signifique como supra explanado que seja garante da cura ou da evitação da morte.
Com, efeito, o Direito não pode proibir resultados mas apenas comportamentos humanos susceptíveis de os provocar dado que o Homem não tem o poder de impedir determinados acontecimentos mas apenas o dever de tentar evitá-los.
Por isso os deveres não visam impedir resultados visam exactamente diminuir a probabilidade de ocorrência do resultado (Damião da Cunha, Algumas Reflexões Críticas sobre a Omissão Imprópria no Direito Português, Liber Discipulorum Figueiredo Dias, p.499 e segs.).
A violação do dever de cuidado por parte do profissional de saúde consubstanciador da negligência é a omissão da acção esperada pelo paciente e pela comunidade em que este se insere, ou seja, da assistência ou de auxílio, acção essa que teria diminuído o risco de verificação do resultado típico.
Neste contexto, a culpa negligente censura o não recurso ao manancial de conhecimentos e de esforços técnicos que se pode esperar de qualquer profissional de saúde numa certa época e lugar, ponderando-se, em concreto, vários critérios como as condições pessoais do profissional em questão (v.g. capacidade profissional, preparação e experiência…) as circunstâncias do caso, quer atinentes às características do paciente quer à patologia e a fase em que se desenvolve a sua actuação.
Assim, pelo menos em tese geral pode dizer-se, com Ebermeyer (citado por Cuello Calón, “Derecho Penal”, Tomo II (Parte Especial), volume 2º, Bosch, 14ª edição, pág. 491, nota 1) que age com negligência punível o profissional de saúde que prescinde da cautela a que está obrigado pelas circunstâncias e pelas suas condições pessoais e não prevê a produção do facto danoso ou, prevendo-o, confia na sua não realização.
Refira-se que na negligência é admissível um conceito extensivo de autor, sob a forma de autoria paralela, secundária ou acessória, em que o resultado é produzido imediatamente por um mas só porque anteriormente outro violou o cuidado objectivamente devido e criou assim um risco não permitido.
Assim, relativamente aos factos negligentes é autor todo aquele que por violação do cuidado objectivamente devido contribui para a criação de um risco não permitido que se concretiza no resultado (vide, Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral Tomo I, Coimbra Editora, 2004, p.650 e 651)
Tal entendimento consagra o princípio da confiança segundo o qual ninguém tem de responder pela falta de cuidado de outrem por se confiar que cada um observará os cuidados que pessoalmente lhe incumbem.
No caso vertente e como ressalta da matéria de facto provada cerca das 19h30, a segunda arguida e demandada contactou a primeira arguida e demandada a qual tinha assistido C no Recobro, sendo tal contacto efectuado telefonicamente e transmitiu-lhe que o doente continuava bastante ansioso, com tossícula, agitado, referindo falta de ar e a afirmar que ia morrer.
Mais resulta que perante tal informação, por telefone, a primeira arguida e demandada, deu indicação à segunda arguida e demandada para administrarem a C ½ formula de Hidroxizina IM (injecção intra muscular), ou seja, 50 mg de Atarax IM, e não se deslocou à Enfermaria para observar C, não deu instruções para o fazer regressar ao Recobro a fim de o aí observar e serem avaliados os seus parâmetros vitais, designadamente, com recurso ao monitor nem deu instruções para que fosse solicitada a presença na Enfermaria de outro médico de serviço a fim de observar aquele.
Acresce depois de ter dado tal indicação e até ao momento em que a sua presença na Enfermaria foi solicitada através de bip não se deslocou à mesma para observar Cs nem contactou a segunda arguida e demandada ou a enfermeira M a fim de saber o efeito naquele da terapêutica por si indicada pelo telefone.
Retira-se, ainda, da matéria de facto provada que no período pós-operatório e pelo menos pelo período de vinte e quatro horas é necessária uma vigilância apertada da ventilação e sinais vitais, pois pode ocorrer obstrução das vias aéreas superiores por edema/hemorragia, situação o que era do conhecimento das arguidas.
É este elenco factual que sustenta a não observância de uma dever de assistência médica que lhe incumbia porque o assumiu voluntariamente ao decidir prescrever pelo telefone, colocando-se assim numa posição de garante.
Saliente-se que não interessa saber se a morte de C ocorreria caso a mesma não tivesse inobservado tais deveres, porquanto, tal resultado não estava nas mãos desta arguida e demandada evitar mas sim tentar evitar.
A sua obrigação era uma obrigação de meios e não de resultados a conduta que lhe era exigível era de ser consentânea com a prescrição efectuada e não confiar no resultado de tal prescrição.
O princípio da confiança não exclui a nossa responsabilidade ao conferir responsabilidade aos outros mas antes determina que independentemente de outras responsabilidades cada agente responda pela sua.
Perante a transmissão de queixas de falta de ar, ansiedade e agitação cabia à arguida e demandada observar o doente presencialmente ou fazer com que algum colega o observasse ou fazê-lo regressar ao Recobro para despistar, designadamente, com recurso ao monitor a causa das queixas.
Não se pode assumir que determinado comportamento só porque se prolonga no tempo é uma característica da personalidade da pessoa, sendo certo que neste caso concreto não só o contacto da arguida e demandada com C fora breve como era recente a admissão do mesmo naquele Hospital.
Acresce que tal assunção não pode ter lugar no meio hospitalar em que as pessoas são despojadas da sua vaidade, do seu pudor, da sua autonomia e liberdade e confiam no seu despojamento que as tratem e assistam e se possível as curem.
Não era legítimo à arguida e demandada M confiar que se tratava de ansiedade como estado nervoso, prescrever e descansar sobre essa prescrição.
Por outro lado se horas antes avaliara C no Recobro e o mesmo estava bem embora ansioso a simples existência de um telefonema acerca do doente quando o mesmo já se encontrava rodeado dos seus familiares e numa zona menos ingrata do que o Recobro deveria tê-la alertado para a necessidade de averiguar melhor o que se passava e aferir do seu estado.
A arguida e demandada sabia que C fora intervencionado a uma zona de especial melindre e sabia quais eram os meios humanos e materiais existentes na Enfermaria daquele Hospital porquanto trabalha no mesmo desde 1974.
De igual modo a arguida e demandada M sabia que os Enfermeiros não fazem diagnósticos e que a correcta avaliação de um estado de um doente pressupõe uma intervenção médica, pelo que deveria ter providenciado pela mesma.
A arguida e demandada M é médica e estava de serviço de urgência naquele dia e naquele Hospital.
Não restam, pois, dúvidas que a mesma omitiu um dever de cuidado e de diligência de que era capaz e a que estava obrigada e que conduziu à morte de C.
Relativamente à arguida e demandada M resulta da matéria de facto provada supra mencionada que C, quando deu entrada na Enfermaria, estava ansioso e agitado, queixava-se de falta de ar e a sua respiração era acelerada, o que foi desde logo percepcionado por aquela.
Durante o período compreendido entre as 19H00 e as 21H00 a segunda arguida e demandada deslocou-se ao quarto de C por três vezes, duas delas juntamente com a enfermeira M.
Da primeira vez foi no momento da entrada de C na Enfermaria e juntamente com a enfermeira M, outra para lhe administrar uma injecção e a terceira vez juntamente com a enfermeira M e pelas 21H00.
Durante todo este período de tempo de duas horas, em que esteve sempre acompanhado ou pelas referidas familiares ou por estas e sua namorada, C queixou-se sempre e constantemente de sentir bastante dificuldade em respirar.
Por lhe ter sido recomendado pelas referidas enfermeiras onde se inclui a própria demandada que não falasse para não se esforçar, C passou a comunicar o que estava a sentir através de escritos em jornais e revistas.
As queixas foram transmitidas pelas familiares do doente às enfermeiras de serviço, onde se incluía a ora demandada.
Atentas as queixas e agitação de C, cerca das 19h30, a segunda arguida e demandada contactou a primeira arguida e demandada a qual o tinha assistido no Recobro, sendo tal contacto efectuado telefonicamente e transmitiu-lhe que o doente continuava bastante ansioso, agitado, com tossícula, referindo falta de ar e a afirmar que ia morrer.
Foi-lhe dada indicação para administrar a C ½ formula de Hidroxizina IM (injecção intra muscular), ou seja, 50 mg de Atarax IM, o que fez.
Pelas 20H00, o Dr. A que estava nesse dia de serviço de urgência e de acordo com o sistema instituído presencialmente no Hospital de S. Francisco Xavier contactou a Enfermaria para saber o estado de C tendo falado com M.
Após tal contacto telefónico M informou a referida arguida e demandada que o Dr. A ia jantar e que depois se deslocaria à enfermaria para observar C.
Assim, cerca das 20H10 a arguida em questão, ciente que a injecção de hidroxizina intra muscular por si administrada a C não tinha provocado alteração do estado do mesmo atentas as queixas relatadas pelos seus familiares deu conhecimento ao Dr. A que C estava muito agitado, muito ansioso e se queixava de falta de ar e de que ia morrer.
O referido médico informou-a que depois passaria na Enfermaria.
Após ter contactado o Dr. A e até às 21H00 a segunda arguida e demandada não voltou a contactar a primeira arguida e demandada, o Dr. A ou qualquer outro médico de serviço naquele hospital solicitando a presença destes junto de C ou informando-os do estado deste último.
Pouco tempo depois, a tia de C dirigiu-se ao gabinete de enfermagem e solicitou à segunda arguida e demandada e à enfermeira M que fossem ao quarto assistir àquele dadas as queixas que ele apresentava.
Poucos minutos depois, a segunda arguida e demandada e enfermeira M, iniciam a distribuição dos fármacos aos restantes doentes do Serviço, iniciando a rotina pelo início do corredor, ou seja, pelos quartos mais afastados daquele onde se encontrava o doente C.
Cerca das 21H00, a mencionada arguida e demandada e M chegam ao quarto de C e quando se preparavam para lhe administrar a terapêutica prescrita o mesmo ficou pálido com cianose nas mãos e nos lábios e sudorese.
Durante cerca de 45 minutos a equipa de médicos presentes efectuou manobras de reanimação as quais não obtiveram resultado positivo, pelo que findas as mesmas foi declarado o óbito do doente C, o que ocorreu pelas 21H45.
À luz de tal factualidade não restam dúvidas que, de igual modo, a arguida e demandada M omitiu um dever de cuidado e de diligência que consubstancia a sua negligência.
Por força quer da sua qualidade de enfermeira quer das funções concretamente exercidas naquele dia e naquele Hospital sobre tal arguida e demandada impendia um dever de assistência a C.
Com efeito, o mesmo estava internado numa Enfermaria sob os seus cuidados sendo que tal situação colocava a referida arguida e demandada em posição de garante.
A arguida e demandada M percepcionou o estado de C desde que o mesmo deu entrada na Enfermaria e desconfiou de imediato, porquanto, embora tal doente estivesse distribuído, por razões internas de serviço, à enfermeira M a arguida e demandada M assumiu a sua vigilância, não só o acompanhou ao quarto como telefonou a dois médicos alertando-os para as queixas relatadas e o estado do doente.
Não obstante tal diligência inicial a arguida e demandada quando efectua o telefonema ao médico cirurgião A sabe que a hidroxizina prescrita verbalmente pela primeira arguida e demandada e por si administrada não fez o efeito esperado de tranquilizar o doente, porquanto já passara meia hora e é por isso que telefona a insistir.
Todavia, e apesar de ser alertada uma vez mais pela tia de C não volta a contactar nenhum médico, sendo que inicia a distribuição dos fármacos do serviço de acordo com a rotina habitual.
Não se olvida que C estava ao cuidado também da enfermeira M nem que existiam outros pacientes naquele dia e hora naquele serviço, embora apenas se tenha logrado confirmar que ao longo daquele dia passaram por aquela Enfermaria dez pacientes.
Contudo, nenhum deles estava em risco de vida como C, nenhum se queixava de falta de ar reiterada e insistentemente.
Saliente-se que os escritos de C são muito expressivos e pungentes mas que apenas um foi visualizado pela arguida e demandada M e de acordo com a sua declaração não se tratava de nenhum dos apostos na Revista Nova Gente e Jornal Correio da Manhã.
No entanto tal visualização não era sequer necessária, pois, a mera verbalização da falta de ar pelo paciente e seus familiares era mais do que suficiente para justificar o accionar e desde o início dos mecanismos de urgência.
É óbvio que nenhum enfermeiro pode diagnosticar ou obrigar um médico a se deslocar a uma Enfermaria mas é também óbvio que até às 21H00 nenhum deles foi convocado de urgência.
A situação de C, embora urgente, não foi pela arguida e demandada M configurada como tal e o perigo criado para a vida do mesmo com a não observância do dever de assistência quer por parte da arguida e demandada M quer por parte de A foi incrementado subsequentemente pela não observância de tal dever por parte da arguida e demandada M (e também M).
Pouco releva se C não evidenciava tiragem ou adejo nasal, se suava pouco ou muito se o dreno estava funcionante e não havia perdas hemáticas significativas, porquanto, o mesmo se queixava de falta de ar e isso bastava.
Saliente-se que não cabia a ele chamar a atenção dos profissionais de saúde e mostrar sinais do seu mal-estar. Não lhe era exigível apresentar e de forma evidente os sintomas clássicos de edema da glote, pois, cabia às arguidas e demandadas detectá-los e providenciar pela sua não verificação.
A arguida e demandada M ao não voltar a contactar os médicos ou não equacionar a situação como situação de urgência omitiu um dever de cuidado e de diligência de que era capaz e estava obrigada e que conduziu à morte de C.
Também neste caso pouco releva que não obstante ser despoletada a situação de emergência C viesse efectivamente a falecer, pois, a esta arguida e demandada como a todos os profissionais envolvidos não impendia o dever de evitar o resultado mas de tudo fazer para o evitar.
Assim, não restam dúvidas que as actuações concomitantes e subsequentes das arguidas e demandadas (mas não só destas) foram causais da morte de C sendo que a obstrução das vias aéreas pelo mesmo apresentada por hemorragia lhes era previsível embora jamais tivessem representado a sua morte.
Pelo exposto não restam dúvidas que estão reunidos os pressupostos da responsabilidade civil e que impende sobre as demandadas uma obrigação de indemnização dos danos não patrimoniais e patrimoniais gerados pela sua omissão e reclamados nos autos.
O princípio geral que preside à obrigação de indemnização está consagrado no artigo 562º do Código Civil e estabelece que quem está obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação.
Preceitua o artigo 566º nº1 do mesmo diploma legal que a indemnização é fixada em dinheiro sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor.
Afirmada que está a obrigação de indemnizar por parte das demandadas cabe ainda apurar do direito à indemnização por parte dos assistentes e demandante e ainda fixar o alcance de tal obrigação de indemnização.
No caso vertente os assistentes na qualidade de ascendentes do falecido C e a demandante na qualidade de irmã do mesmo reclamam o ressarcimento dos danos não patrimoniais na sua tese causados pela conduta voluntária, ilícita e culposa das demandadas e que se traduzem essencialmente: no dano pela perda do direito à vida (dano morte) do lesado de que são herdeiros, no dano sofrido pelo lesado antes de morrer e no dano sofrido pelos próprios com a morte de seu filho e irmão.
Nos termos do disposto no art. 496º nº2 do Código Civil por morte da vítima o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe em conjunto ao cônjuge separado judicialmente de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes e na falta destes aos pais ou outros ascendentes e por último aos irmãos ou sobrinhos que os representem.
O referido artigo prescreve a distribuição por três grupos com direito à indemnização: o cônjuge e o seus descendentes na falta deles os pais ou outros ascendentes e por fim os irmãos ou sobrinhos com direito de representação.
A lei estabelece uma ordem de precedência porquanto só na falta do primeiro grupo têm direito à compensação o 2º grupo e só na falta dos dois anteriores têm direito os que se integrarem no terceiro grupo.
Do exposto, decorre que o direito de indemnização referido não cabe simultaneamente a todas as pessoas nele referidas mas a grupos hierarquizados de pessoas, outorgando-se tal direito sucessivamente a cada um desses grupos e por ordem decrescente de proximidade comunitária e afectiva.
Resulta da matéria de facto provada mormente dos factos 112 e 117 que o falecido C e a demandante C são irmãos pois têm os mesmos progenitores em comum.
Assim, a demandante está integrada no terceiro e último grupo que só tem direito a indemnização nos termos do referido artigo 496º em caso de inexistência de outros elementos que integrem os grupos anteriores.
Ora, no caso vertente existem os assistentes que conforme resulta do facto 112 são os progenitores de C pelo que são estes os únicos titulares do direito de indemnização conferido pelo mencionado artigo e reclamado nos autos.
Pelo exposto e relativamente à demandante e pese embora se tenha indiscutivelmente demonstrado a existência de danos não patrimoniais os mesmos não têm neste particular qualquer tutela legal.
Em consequência é irrelevante proceder relativamente ao pedido concretamente deduzido pela mesma à apreciação da verificação dos demais pressupostos de responsabilidade civil uma vez que a mesma não tem legalmente direito a indemnização e nessa medida não tem legitimidade substantiva para demandar.
Assim, o pedido concretamente deduzido pela demandante C tem de improceder.
Em consequência cabe apenas apreciar do pedido concretamente deduzido pelos assistentes relativamente às demandadas.
Reclamam os assistentes o pagamento da indemnização de danos não patrimoniais traduzidos na perda do direito à vida (dano morte) do lesado de que são herdeiros, no dano sofrido pelo lesado antes de morrer (sofrimento (físico e psicológico) e presciência de morte) e no dano sofrido pelos próprios com a morte de seu filho e ainda danos patrimoniais traduzidos na perda de apoio económico futuro por parte do falecido.
Nos termos do artigo 496º nº3 do Código Civil o montante da indemnização por danos não patrimoniais será fixado equitativamente pelo Tribunal tendo em atenção em qualquer caso as circunstâncias referidas no artigo 494º do mesmo diploma. Estas são a culpabilidade do agente, a situação económica deste e as demais circunstâncias do caso. Nestas últimas se deve incluir o reflexo económico-social que o facto tem na vida dos familiares da vítima.
Assim o montante da indemnização correspondente aos danos não patrimoniais deve ser calculado segundo critérios de equidade, atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica, à do lesado e do titular da indemnização e deve ser proporcional à gravidade do dano (vide Pires de Lima e Antunes Varela Código Civil Anotado Vol.II, Coimbra, pág.501).
Com base em tais critérios legais e tendo ainda em mente a jurisprudência proferida sobre a matéria apreciemos pois cada um dos pedidos formulados:
No que se refere à perda da vida reclamam os assistentes o pagamento da importância de €100.000,00 (cem mil euros).
O direito à vida constitui um direito constitucionalmente consagrado (artigo 24º nº1 da Constituição da República Portuguesa) e pilar fundamental dos demais direitos protegidos.
O direito à vida é um direito privilegiado e intangível na sua essência porque a vida é única e irrepetível para cada ser humano e porque envolve matéria e espírito e está além de qualquer valor monetário.
Assim, quando o direito à vida é ofendido o que releva é encontrar a solução compensatória que se configure como mais justa para o caso concreto em apreciação por recursos a juízos de equidade e ponderação das demais circunstâncias em que a vida que se finou desenvolvia o seu existir: a sua idade, sua condição física e psíquica, a sua integração na família e na sociedade, desempenho de actividade profissional, de lazer, vontade e alegria de viver e até estima e consideração alheias.
No caso vertente resulta da matéria de facto provada que C tinha 30 anos de idade quando faleceu, era pessoa saudável, activa, comunicativa, alegre e estimada por amigos e familiares de quem era solidário.
Tal factualidade permite concluir que era pessoa com larga esperança de vida pela sua frente, pessoa que gostava de viver, que vivia em solidariedade com os seus amigos e familiares e que era pelos mesmos estimado.
Recorrendo a um juízo de equidade e considerando as condições económicas das demandadas e a culpa das mesmas na produção deste dano, mormente que não são as únicas responsáveis e que a sua negligência é inconsciente e ainda os valores que têm vindo a ser atribuídos pelo Supremo Tribunal de Justiça como compensação da perda do direito à vida (que oscilam entre os €50.000,00 e os €70.000,00) considera-se adequado fixar a indemnização por tal dano em €65.000,00 (sessenta e cinco mil euros).
No que se refere ao dano traduzido no próprio sofrimento do falecido antes de morrer e na sua presciência de morte.
É pacífico que o sofrimento que por regra antecede a morte da vítima decorrente de acto ilícito de terceiro gera um direito a uma indemnização que se radica na própria vítima e que com o seu decesso se transfere para os legais herdeiros.
No caso vertente resulta da matéria de facto provada que C durante duas horas sentiu que estava a sufocar e teve consciência de que ia morrer e sentiu um profundo sofrimento e revolta.
A dimensão do seu sofrimento, revolta e presciência de morte resulta claramente dos seus escritos: será que não vêem que estou mal, e se me engasgo, acalmar-me como? Eu não vou dormir assim, não é melhor a ventilação, estou mesmo mal, tenho medo, falta-me ar cada vez +, eu é que sei o que estou a passar, em pequeno não passei isto, levantem estou cada vez pior, não respiro bem, como vou dormir, falta de ar. As pessoas estão doidas, não consigo respirar bem, vou ficar sozinho a noite, falta-me + Ar, eu amo-te e reza muito.
Não restam dúvidas que C sofreu muito no período que antecedeu a sua morte e também não restam dúvidas que teve consciência que a mesma ia ocorrer, pois, a sua sensação de sufocar e de falta de ar era cada vez maior e sem ar não se vive.
Atenta a dimensão e duração do seu sofrimento e recorrendo a um juízo de equidade e considerando as condições económicas das demandadas e a culpa das mesmas na produção deste dano, mormente que não são as únicas responsáveis e que a sua negligência é inconsciente reputa-se de adequada uma indemnização de €25.000,00 (vinte e cinco mil euros).
No que se refere ao sofrimento dos assistentes causado pela morte de seu filho resulta da matéria de facto provada que em consequência da morte de C os assistentes seus pais perderam a alegria e o propósito de vida. Os assistentes tornaram-se pessoas tristes, revoltadas e que evitam o convívio com os demais e que perderam com a morte de seu filho uma fonte de amparo na velhice e na doença.
Os assistentes reclamam nesta sede uma indemnização de €75.000,00 para cada um.
A perda de um filho é devastadora, porquanto gera sofrimento profundo e persistente. O que se visa com a indemnização de tal dano não patrimonial é apenas neutralizar na medida do possível a intensidade da dor pessoal sofrida.
C tinha trinta anos quando faleceu e por isso uma larga esperança de vida que lhe permitiria acompanhar e amparar os seus pais na velhice. Era estimado e era solidário para com os seus pais e estes como todos os pais viam nele o seu propósito de vida e a expectativa de netos, ou seja, a perpetuação da sua família.
Sopesadas as referidas circunstâncias e ainda com recurso a um juízo de equidade e considerando as condições económicas das demandadas e a culpa das mesmas na produção deste dano, mormente que não são as únicas responsáveis e que a sua negligência é inconsciente entende-se adequada nesta situação uma indemnização de €30.000,00 (trinta mil euros) para cada um dos assistentes.
Os assistentes reclamam ainda o pagamento de uma indemnização no valor de €34.731 (trinta e quatro mil setecentos e trinta e um) para ressarcimento da perda de apoio económico no futuro por parte do seu filho falecido.
Os assistentes não esclarecem se o seu pedido é feito com base no disposto no artigo 495º nº3 do Código Civil.
Todavia afigura-se-nos tendo em conta a factualidade alegada é com base em tal preceito que a indemnização é pedida.
Excepcionalmente a lei em caso de morte ou de lesão corporal de uma pessoa concede uma indemnização aos que podiam exigir alimentos ao lesado que faleceu e àqueles a quem ele os prestava no cumprimento de uma obrigação natural (artigo 495º nº3 do Código Civil).
Por alimentos, deve entender-se como “tudo o que é indispensável ao sustento, habitação e vestuário” (art. 2003º nº 1 do Código Civil), sendo que estão vinculados à obrigação de prestarem alimentos, não estando em causa o cônjuge ou ex-cônjuge, os descendentes (a favor dos ascendentes) nos termos do art. 2009º al.b) do Código Civil .
Por obrigação natural deve entender-se a obrigação que se funda num mero dever de ordem moral ou social, cujo cumprimento não é judicialmente exigível, mas corresponde a um dever de justiça (art. 402º do Código Civil).
Como refere o Prof. Almeida Costa (in Obrigações, 4ª edição, pág. 143) “as obrigações naturais constituem casos intermédios entre os puros deveres de ordem moral ou social e os deveres jurídicos. Os primeiros fundamentam liberalidades, os últimos consubstanciam obrigações civis munidas de acção”.
Existindo dever jurídico de os descendentes contribuírem com alimentos para os ascendentes, a respectiva prestação não será devida a uma qualquer obrigação natural, mas sim a essa obrigação jurídica, que seria o caso do falecido C relativamente aos assistentes seus pais.
Assim teoricamente a pretensão dos assistentes tem sustentáculo legal no artigo 495º nº3 do Código Civil.
Mas será que a indemnização com este fundamento se justifica no caso dos autos?
Temos para nós que o nº 3 do art. 495º do Código Civil não concede às pessoas que podem exigir alimentos ao lesado, o direito de indemnização de todos os danos patrimoniais que lhes haja sido causados, mas apenas o direito de indemnização do dano da perda de alimentos que o lesado se fosse vivo teria que lhes prestar.
Isto é, a indemnização com este fundamento, está dependente da alegação e prova da necessidade de alimentos, presente ou futura, por banda daquele que invoca esse direito. A indemnização neste âmbito visa, precisamente, ressarcir o interessado pela perda dos proventos que a fonte de rendimentos que cessou (pela morte do obrigado) lhe proporcionaria. A medida da indemnização será determinada (tendencialmente) pelo cômputo da perda do montante global de alimentos que o interessado poderia receber do lesado. Está igualmente dependente a atribuição da indemnização, da alegação e prova da possibilidade do obrigado/lesado em contribuir com alimentos para com o interessado.
Ora, no caso vertente não se alegou nem provou que os assistentes tivessem qualquer necessidade previsível e futura de alimentos do falecido seu filho.
Também não se provou que o falecido tivesse possibilidade de os prestar no futuro. Não se desconhece que, em termos teóricos, têm direito à indemnização a que se refere a disposição, não só as pessoas que no momento da lesão podiam exigir alimentos ao falecido, mas também os que só mais tarde poderiam vir a ter esse direito (neste sentido Ac. do STJ de 29-2-96, in Col. Jur. Acs. STJ, 1996, Tomo I, pág. 104). Porém esta possibilidade deve relacionar-se com uma necessidade previsível de alimentos no futuro.
Neste sentido sustenta o Prof. Antunes Varela (ob. citada, págs. 501 e 502) “se a necessidade de alimentos, embora futura, for previsível …, nenhuma razão há para que o tribunal não aplique a doutrina geral do nº 2 do artigo 564º. Mas ainda que a necessidade não seja previsível, nenhuma razão há para isentar o lesante da obrigação de indemnizar a pessoa carecida de alimentos do prejuízo que para ela advém da falta da pessoa lesada contanto que não haja prescrição nos termos gerais da parte final do nº 1 do art. 498º”. Esta última parte, deve, a nosso ver, ser interpretada em termos teóricos. Evidentemente que no futuro, mesmo que a necessidade de alimentos do interessado surja para além de qualquer previsibilidade, nem por isso se poderá negar ao carecido de alimentos, o direito de pedir uma indemnização neste âmbito, desde que, claro, não tenha surgido entretanto a prescrição a que alude a dita disposição legal.
Disto tudo resulta que, para se poder (agora) atribuir uma indemnização aos assistentes com o fundamento em análise, no nosso entender, era preciso ter-se alegado e provado que ocorreria uma necessidade previsível de alimentos no futuro.
Por outro lado é necessário relacionar-se (sempre) a disposição em análise com o disposto no art. 2004º do Código Civil, isto é, que os alimentos devem ser proporcionados aos meios daquele que houver de prestá-los e à necessidade daquele que houver de recebê-los.
Assim, no caso vertente deviam ter sido alegados e demonstrados todos os factos que permitissem concluir pela previsível necessidade de alimentos dos assistentes e pela previsível possibilidade de o falecido os prestar no futuro, porquanto a própria medida dos alimentos (e consequente montante da indemnização), dependeriam da verificação desses elementos factuais.
Refira-se que o falecido não era o único filho dos assistentes e por isso não era também o único legalmente obrigado a alimentos futuros, pelo que também teria de ter sido alegado e demonstrado que a sua irmã não os poderia prestar ou em que termos seria a contribuição por parte de ambos caso existisse necessidade dos assistentes.
Pelo exposto, não sido provada de um lado a carência de alimentos dos assistentes e de outro, factos de onde pudesse concluir-se, com razoabilidade ou verosimilhança de o falecido filho lhes pudesse a vir prestar alimentos entende-se que não se mostram preenchidos os pressupostos de indemnização com este fundamento, pelo que o pedido improcede neste particular.
Cabe ainda salientar que nos termos do artigo 497º nº1 do Código Civil a responsabilidade das demandadas é solidária.
Por último e relativamente a juros por estar em causa apenas danos não patrimoniais os mesmos são devidos desde a data da presente decisão até integral pagamento e à taxa civil supletiva e anual de 4%.
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Recurso penal interposto pelos assistentes
Nulidade por omissão de pronúncia sobre o pedido de indemnização civil
Os assistentes baseiam o seu propósito recursivo da parte criminal da sentença na nulidade nos termos do disposto na alínea c) do n.º1 do art. 379º do Código de Processo Penal por o tribunal a quo não ter tomado as necessárias providências para vir a conhecer o pedido de indemnização civil.
A cisão entre o conhecimento da matéria criminal e do pedido de indemnização civil deveu-se ao facto de, por despacho de fls.1185 a 1187, ter sido declarada a incompetência do Tribunal para a apreciação do pedido de indemnização civil deduzido.
Iniciado e terminado o julgamento sobre a parte criminal e tendo sido interposto recurso sobre aquele despacho, veio a ser proferido Acórdão pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 15 de Maio de 2008 que decidiu ser o Tribunal Criminal o competente para o julgamento. Os autos foram devolvidos à 1ª instância em 23.6.08 e conclusos à MMª Juiz a quo em 26.6, conforme se vê do apenso respectivo, enquanto a sentença foi lida anteriormente a essa data, em 20.6.
Estas vicissitudes da tramitação processual levaram a que, posteriormente à interposição do recurso em análise, ocorresse uma reabertura da audiência para julgamento do pedido de indemnização civil pendente, ordenada por decisão sumária proferida em 27 de Maio de 2009 por este Tribunal da Relação de Lisboa.
Tal decisão notou a omissão de pronúncia sobre a questão cível e, ordenou a reabertura da audiência para ser julgado o pedido de indemnização cível, assim suprindo a omissão notada.
Consequentemente, este Tribunal, naquela decisão sumária, pronunciou-se sobre a aludida omissão de pronúncia.
O tribunal a quo reabriu a audiência e proferiu decisão que conheceu dos pedidos de indemnização deduzidos. O procedimento adoptado pelo tribunal a quo, reabrindo a audiência e conhecendo do pedido de indemnização cível, supriu a aludida omissão nos exactos termos determinados por este Tribunal, naquela decisão.
Consequentemente, não pode este Tribunal voltar a pronunciar-se sobre a questão.

Ilegitimidade ou falta de interesse em agir.
Suscitam o Ministério Público e a arguida M nas suas respostas, a questão da ilegitimidade e falta de interesse de agir dos assistentes no recurso interposto sobre a medida das penas aplicadas às arguidas.
Nos termos do art. 401º nº 1 al. b) do Código de Processo Penal, os assistentes têm legitimidade para recorrer “de decisões contra eles proferidas” e, nos termos do seu nº 2, “não pode recorrer quem não tiver interesse em agir”.
Perante a querela sobre se os assistentes tinham legitimidade para, desacompanhados do Ministério Público, recorrer da medida das penas aplicadas aos arguidos foi proferido o Assento nº 8/99, de 30.10.1997 que fixou a seguinte jurisprudência:
“O assistente não tem legitimidade para recorrer, desacompanhado do Ministério Público, relativamente à espécie e medida da pena aplicada, salvo quando demonstrar um concreto e próprio interesse em agir” .
Parte-se do princípio de que a titularidade exclusiva da acção penal pertence ao Ministério Público (art. 221º nº 1 da Constituição da República Portuguesa e 48º do Código de Processo Penal), ocupando o assistente a posição de colaborador, com a sua actividade subordinada à daquele (art. 69º do Código de Processo Penal). Por isso, é preciso reconhecer-lhe um interesse em agir próprio para lhe conferir legitimidade para reconhecer.
O interesse em agir deve ponderar a natureza do crime e a posição que o assistente tomou ao longo do processo, mormente se acompanhou a acusação deduzida pelo Ministério Público. Também importa averiguar se a medida da culpa, subjacente à pena aplicada afecta o seu interesse indemnizatório ou se o caso julgado sobre essa matéria pode ter reflexos em processos não penais.
“Esse interesse em agir tem de ser concreto e do próprio, pelo que é insuficiente se o Tribunal, concluindo que se não está face a um mero desejo de vindicta privada, nada mais encontrar”. Por isso, o assistente tem de demonstrar um real e verdadeiro interesse próprio, sob pena de o pedido de agravamento não poder ser atendido.
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Conclui-se das alegações de recurso que os assistentes pretendem que as arguidas sejam condenadas em pena detentiva, próxima do máximo legal, embora admitindo a suspensão da sua execução por razões de prevenção geral e especial, ponderando que um dos fins das penas é a protecção doa bens jurídicos e face à gravidade da culpa.
Está em causa um crime público e como bem acentua o Ministério Público na sua resposta, os assistentes não deduziram acusação particular. Não estabelecem nenhuma relação entre a gravidade da culpa, a escolha e medida da pena e a pretensão indemnizatória, nem invocam qualquer efeito do caso julgado da decisão sobre a medida da pena que se venha a formar, em processos não penais.
Em suma, embora não seja absolutamente evidente na sua postura processual um mero desejo de vindicta privada, os assistentes não demonstram a existência de um real e verdadeiro interesse no agravamento da pena.
Consequentemente, analisadas as circunstâncias concretas do caso, conclui-se que os assistentes não têm legitimidade para recorrer relativamente à espécie e medida da pena aplicada, porquanto não demonstraram um concreto e próprio interesse em agir.
A ausência de legitimidade para recorrer, é causa de rejeição do recurso, nos termos do art. 420º nº 1 al. b) do Código de Processo Penal, na parte relativa à questão da escolha e medida da pena.

Recurso da parte cível interposto pelas arguidas/demandadas M e M.
Ilegitimidade passiva das arguidas/demandadas.
Suscitam ambas as arguidas/demandadas nos recursos que interpuseram a questão da sua ilegitimidade passiva.
Como resulta da parte supra transcrita da sentença a propósito da questão, o tribunal a quo, centrando a sua apreciação no disposto no art. 26º do Código de Processo Civil, decidiu julgar improcedentes as excepções de ilegitimidade deduzidas, declarando que as demandadas são parte legítima.
Não ponderou as consequências do facto estarem ao serviço do Hospital Egas Moniz, pessoa colectiva de Direito Público e de, por consequência, a responsabilidade civil pelos actos materiais de prestação de cuidados de saúde, estar regulada na data da prática dos factos , no Decreto-Lei 48051 de 21.11.1967 que, no seu art. 2º estatui que é o Estado e demais pessoas colectivas públicas que respondem civilmente perante terceiros pelas ofensas dos direitos destes ou das disposições legais destinadas a proteger os seus interesses, resultantes de actos ilícitos culposamente praticados pelos respectivos órgãos ou agentes administrativos no exercício das suas funções e por causa desse exercício e que no seu art. 3º esclarece que os agentes administrativos só respondem civilmente perante terceiros pela prática de actos ilícitos que ofendam os direitos destes ou as disposições legais destinadas a proteger os seus interesses, se tiverem excedido os limites das suas funções ou se, no desempenho destas e por sua causa, tiverem procedido dolosamente, sendo, todavia, em caso de dolo, a pessoa colectiva sempre solidariamente responsável.
A questão é pacífica na jurisprudência :
1. São de classificar como actos de gestão pública os actos materiais de prestação de cuidados de saúde prestados por um médico pertencente ao quadro de um hospital público, ou seja, uma pessoa colectiva pública, dotada de autonomia administrativa e financeira, sujeita à superintendência e tutela do Ministério da Saúde.
2. No âmbito de vigência do Decreto–Lei n.º 48051, de 21/11/67, só o Hospital é exclusivamente responsável, nas relações externas, pelos danos causados pela prática de um facto ilícito decorrente de acto médico praticado, a título de negligência, no exercício das funções pelo funcionário da unidade hospitalar.
3. No âmbito das relações internas, o Estado e as demais pessoas colectivas públicas que tiverem satisfeito qualquer indemnização gozam de direito de regresso contra os lesantes, nos casos em que estes agiram “com diligência e zelo manifestamente inferiores àqueles a que se achavam obrigados em razão do cargo (art. 2.º, n.º 2).
4. O pedido cível destinado a obter a indemnização pelos danos causados a terceiros, em que a causa de pedir consiste na ocorrência de facto ilícito praticado com negligência, no exercício das funções, pelo funcionário médico, só contra o Hospital pode ser dirigido.
5. Tal pedido cível apenas poderia ser dirigido contra o funcionário médico no caso de haver responsabilidade solidária da Administração (actos praticados com dolo) ou no caso de prática de acto que excedesse os limites da função, caso em que a lei estipula a responsabilidade exclusiva dos titulares de órgão, funcionários ou agentes.
6. Na hipótese de responsabilidade exclusiva da Administração com direito de regresso (factos ilícitos praticados com negligência grave), há ilegitimidade inicial do funcionário médico, caso este seja demandado, mas a Administração pode provocar a intervenção do funcionário nos termos e para os efeitos do art. 330.º do Código de Processo Civil (litisconsórcio passivo sucessivo).
Nem se diga, como pretendem os assistentes na sua resposta, que a questão não se pode colocar porque este Tribunal da Relação decidiu que o tribunal a quo é o competente para decidir sobre o pedido de indemnização cível.
Como é óbvio, uma questão é a da competência material – da jurisdição comum ou da jurisdição administrativa – e outra é a apreciação da excepção dilatória da legitimidade cujo conhecimento é posterior, na ordem lógico-jurídica de conhecimento das questões.
Aliás, requerida a aclaração da decisão sumária de 27.5.2009, ficou absolutamente claro que o Tribunal a quo deveria pronunciar-se sobre a questão da ilegitimidade passiva quando afirma :
Será pois o Tribunal “a quo” que irá decidir sobre a questão da indemnização cível, naturalmente avaliando o que sobre tal questão se encontra no processo – pedido, contestações, etc”.
Não será certamente este Tribunal, em primeira instância, a julgar se “o caso é da responsabilidade exclusiva do Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental, E.P.E, face aos AA.” e que a “demandada a aqui Recorrida Jurisdicional quanto ao pedido de indemnização civil ela é, pois, parte ilegítima na acção cível enxertada”.
Ao contrário dos Assistentes, na sua resposta, a jurisprudência e a doutrina dominantes qualificam os actos materiais de prestação de cuidados de saúde em hospital público como de gestão pública . Aliás, da citação que fazem do Prof. Marcello Caetano (conclusão 13ª da Resposta) não se colhe nenhum argumento a favor da tese que sustentam pois não ficou demonstrado qualquer “abuso de autoridade com excesso do que no caso exigia para cumprimento das funções”.
Muito se estranha que os assistentes ponham em causa nestas alegações que se trata de um acto de gestão pública quando se encontra junta aos autos a petição inicial de uma acção administrativa comum com forma ordinária para efectivação de responsabilidade civil extracontratual contra o Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental, EPE – Hospital Egas Moniz, pela factualidade também aqui em apreço. Efectivamente, a responsabilização do Centro Hospitalar naquela acção pressupõe que as aqui arguidas praticaram actos de gestão pública.
Bem assim, também é dominante o entendimento que sustenta a constitucionalidade da exclusão de legitimidade judiciária passiva de funcionários ou agentes do Estado e demais entidades públicas, nos casos em que se procure determinar a responsabilidade por uma conduta que é imputada a tais funcionários ou agentes a título de mera culpa, e não de dolo (cfr. acórdãos do Tribunal Constitucional referidos).
Do exposto resulta que, verificada que está a ilegitimidade passiva das arguidas/demandadas, importa absolver estas da instância.
A presente decisão tem repercussões a nível de custas do pedido cível que ficam, assim, integralmente a cargo dos assistentes/Demandantes.

Recurso penal interposto pela arguida M.
Intempestividade da discordância do recorrente relativamente à nulidade da sentença por violação do disposto nos art.s 358º e 359º do Código de Processo Penal.
Sustenta o Ministério Público que a arguida, ora Recorrente, não podia já exprimir a sua discordância em relação à qualificação da alteração dos factos como não substancial porque não recorreu tempestivamente do despacho que assim qualificou a alteração.
Sem razão.
Esse despacho não tem natureza decisória – daí nem sequer necessitar de ser fundamentado – e constitui uma mera comunicação de que o tribunal pondera proceder a uma alteração de factos, para que com respeito do princípio do contraditório, o tribunal, a final possa decidir em consciência . Trata-se, assim, de um juízo provisório e dependente do exercício do contraditório e, por isso, a questão da verdadeira natureza substancial ou não substancial da alteração dos factos, só se coloca no momento do assentamento da factualidade na sentença e não no da comunicação .

Nulidade da sentença por violação do disposto nos art.s 358º, 359º e 379º do Código de Processo Penal
A arguida M sustenta que a alteração de factos operada é substancial.
Vejamos:
Decorre da factualidade constante da pronúncia que a conduta considerada negligente, violadora das legis artis e concausal do decesso ocorreu no recobro. Basicamente, o que a pronúncia critica é exclusivamente o facto de a arguida ter dado alta a C antes do tempo devido, sem verificar ou registar o seu estado à saída e sabendo que no caso daquela cirurgia podiam ocorrer complicações. Pelo contrário, a pronúncia afirma que a conduta da arguida posteriormente, quando C é colocado na enfermaria é isenta de reparos, ao invés da actuação da co-arguida, M.
Efectivamente, a factualidade relevante constante da pronúncia demonstrativa do que se afirma, é a seguinte (sublinhados nossos):
O doente deverá permanecer na Unidade de Recobro até ter critérios objectivos (definidos através das referidas escalas) que permitam a sua transferência para a Enfermaria.
Ora, no caso do doente C o mesmo foi avaliado à entrada na Sala de 'Recobro' de acordo com a Escala de Aldrete, tendo sido registada a avaliação de acordo com tal escala na folha de Registo da Unidade de Recuperação Anestésica com o nome 'Score de Recuperação Pós-Anestésica', registando-se dessa forma a situação do doente no momento da admissão.
No entanto, não foi efectuada a avaliação do doente ou não ficou registada a sua situação à saída da Unidade de Recobro, na altura em que lhe foi dada alta pela 1.ª arguida, Dr.ª M, cerca das 18H30.
Assim, os profissionais de saúde seguintes que contactaram com o C não sabiam quais os critérios que tinham sido utilizados na alta do referido doente do 'Recobro', desconhecendo o seu estado.
(…)
Aqui (na enfermaria) ficou aos cuidados de vigilância de duas enfermeiras de turno neste Serviço, a segunda e terceira arguidas Enf.ª Grad.ª M e Enf. Grad.ª (contratada) M.
Pouco depois de ali ter chegado, mostrando-se ansioso, o doente começou a manifestar às familiares presentes e também às enfermeiras, primeiro por fala, depois já só escrevendo (depois de lhe ter sido recomendado para não se esforçar), a sensação de 'falta de ar', ou seja, de dificuldade respiratória.
No espaço de duas horas, aproximadamente, o doente foi-se sentindo cada vez pior, com maiores dificuldades respiratórias, que sempre foi transmitindo, e, apesar da observação de enfermagem e contacto telefónico de uma das enfermeiras com a Medica Anestesista em serviço no REM, e aqui arguida, referindo tais dificuldades respiratórias de que o doente se queixava, mas que não viam sinais objectivos que as fundamentassem, e lhe ter sido administrada uma injecção calmante, o doente acabou por vir a falecer, pouco depois das 2IHOO.
Durante o período de duas horas seguintes, entre as 19HOO e as 21HOO, as enfermeiras, aqui segunda e terceira arguidas, apenas foram junto do doente duas vezes: uma, logo no principio, para lhe trazerem compressas, um saco para o lixo e o urinol, e uma outra, passado cerca de uma hora, para lhe administrarem uma injecção.
Nesse período foi-lhe também dado gelo para colocar 10 minutos, de meia em meia hora, no local da operação.
Durante todo este período de tempo de duas horas, em que esteve sempre acompanhado das supra referidas familiares, o doente queixou-se sempre e constantemente de sentir bastantes dificuldades em respirar e em falar, a tal ponto, como já referimos, de, para não se esforçar, passar a comunicar o que estava a sentir através de escritos em jornais e revistas.
Tais queixas foram transmitidas pelas familiares do doente às enfermeiras de serviço e aqui segunda e terceira arguidas, sendo que chegaram inclusive a ver alguns dos escritos na referida revista, não lhe dando relevância.
No entanto, e porque o estado de queixas e agitação do doente era tal, cerca das 19H30, a segunda arguida contactou a primeira arguida, Dr.ª M, a qual o tinha assistido no Recobro, sendo tal contacto efectuado telefonicamente.
A segunda arguida transmitiu então à primeira arguida que o doente continuava bastante ansioso, sentado na cama, com tossícula, referindo falta de ar e a afirmar que ia morrer.
A primeira arguida perguntou quais eram os sinais e parâmetros vitais, se respirava bem e se era necessário ir ao pé do doente, tendo sido informada de que as queixas de falta de ar não correspondiam à observação dos parâmetros vitais (não notava cianose, estridor, tiragem, nem adejo nasal ou sudorese),
Perante tal informação, por telefone, a primeira arguida, deu indicação à segunda arguida para administrarem ao doente ½ , fórmula de Hidroxizina 1M, ou seja, 50 mg de Atarax 1M, o que foi feito.
Pelas 20H00 o cirurgião de urgência (de acordo com o sistema instituído, com presença no Hospital S. Francisco Xavier, onde na altura se encontrava), Dr. A, que tinha sido igualmente o cirurgião que efectuara a cirurgia ao doente, contactou a enfermaria para saber o estado do doente C, tendo falado com a terceira arguida enf.ª M, a qual lhe transmitiu que o doente se encontrava bem, mas muito agitado, e que já tinha vindo assim do recobro.
Entretanto, enquanto as segunda e terceira arguidas aguardavam que o fármaco administrado por ordem da 1ª arguida contribuísse para acalmar o paciente, cerca das 20H40, a tia do doente, vendo-o cada vez mais aflito, dirigiu-se ao gabinete de enfermagem onde se encontravam a segunda e terceira arguidas e solicita às mesmas que fossem ao quarto assistir ao doente, dadas as queixas que ele vinha apresentando, já que além da falta de ar, suava bastante.
É-lhe respondido que iriam de seguida.
Nessa altura a primeira arguida M contacta novamente o Dr. A, cirurgião de urgência, dando-lhe conta de que o doente se encontrava muito ansioso e a família também.
O referido médico informou-as que depois passaria na enfermaria para falar com o doente e família.
Poucos minutos depois, a segunda e terceira arguidas, iniciam a distribuição dos fármacos aos restantes doente do Serviço, iniciando a rotina pelo início do corredor, ou seja, pelos quartos mais afastados daquele onde se encontrava o doente C.
Cerca das 21H00, a segunda e terceira arguidas chegam finalmente ao quarto do doente C, solicitando a saída dos familiares presentes e quando se preparavam para lhe administrar o antibiótico prescrito, o doente começou a ficar pálido, com cianose nas mãos e lábios e sudorese,
Colocaram-lhe a tubuladora de Oxigénio e nesse momento o doente fez uma contracção com rotação da cabeça para a direita.
De imediato a segunda e terceira arguidas solicitam a presença da primeira arguida através de BIP, comparecendo de imediato a primeira arguida que encontra o doente em paragem respiratória e midríase fixa à esquerda e passados alguns momentos à direita, pulso filiforme, incontável sudorese intensa e palidez acentuada sem cianose, tensão arterial 50/30 mm Hg e mantinha acesso venoso permeável.
Retirou então o penso cirúrgico e verificou que não havia sinais de edema, efisema subcutâneo ou hematoma do local da ferida operatória, tendo iniciado as manobras de reanimação.
A primeira arguida Dr.ª M em obediência ao dever de cuidado e diligência a que estava obrigada e de que era capaz, deveria e poderia ter-se informado da extensão da cirurgia a que o doente tinha sido sujeito, e de acordo com tal informação, manter o doente em observação no recobro durante, pelo menos, 24 horas com vista a despistar possíveis situações de edema da glote ou embebição hemorrágica da região epiglótica, as quais como era do seu conhecimento são raras, mas possíveis, no tipo de cirurgia a que foi sujeito o doente C.
A morte de C foi causada pela falta de cuidado e diligência da 1ª arguida Dr.ª M que não respeitou as mais elementares regras de 'cuidado e prudência que regem a sua profissão - e que tinha obrigação de conhecer e respeitar - colocando assim em perigo, como colocou, a vida do doente que se encontrava ao seu cuidado.
A arguida tinha consciência de que lhe era exigida conduta conforme com essas normas, sendo-lhe previsível, como possível as consequência descritas nos autos, caso não agisse em conformidade, tendo confiado, no entanto, que tal desfecho não se daria.
Ao actuar do modo descrito bem sabia que a sua conduta era proibida por lei.
De acordo com as legis artis a duração da permanência do doente na unidade de recobro é determinada pela observação de critérios objectivos que permitem a alta e estabelecidos pela utilização da escala de Aldrete ou score de recuperação pósanestésica, os quais são observados à entrada e à saída do doente do recobro, o que era do conhecimento da primeira arguida. No entanto, e em violação das legis artis aplicáveis à sua profissão a mesma deu alta ao doente sem fazer utilização da referida escala ou, pelo menos, sem realizar o registo da mesma nos registos de saída do doente, causando com tal atitude perigo para vida do mesmo.
Ao actuar da forma descrita a primeira arguida actuou com violação das regras básicas pelas quais se pauta o exercício da sua profissão de médica anestesista, saindo o doente do recobro sem estarem observados os critérios objectivos que permitiriam a alta do C, e consequentemente não sendo conhecida a sua real situação, o que causou perigo para a sua vida, tanto mais que o mesmo veio a falecer.
Por isso, a contestação apresentada pela arguida (fls. 1083 a 1094) centra-se na sua actuação no recobro, procurando demonstrar que actuou de acordo com as legis artis, e que a sua conduta no recobro não foi causal da morte.
Porém, o tribunal a quo vem a comunicar a seguinte “alteração não substancial dos factos”:
Por força da prova produzida em audiência de julgamento e da valoração da mesma efectuada por este Tribunal resultaram algumas alterações não substanciais dos factos descritos na pronúncia relevantes para a decisão da causa.
Assim, os factos que consubstanciam as referidas alterações não substanciais são os seguintes:
1) No que respeita ao momento da transferência de C do recobro para a enfermaria em audiência de julgamento resultou que durante a transferência de C do recobro para enfermaria este se apresentava ansioso e agitado, fazendo gestos com a mão em direcção ao seu pescoço.
2) Ainda relacionado com o momento da transferência de C mas já aquando da entrada deste na enfermaria em audiência de julgamento resultou que C, quando deu entrada na enfermaria, continuava ansioso e agitado, queixava-se de falta de ar e a sua respiração era acelerada, o que foi desde logo percepcionado pela segunda arguida.
3) No que respeita ao telefonema descrito na pronúncia como tendo ocorrido entre as arguidas M e M cerca das 19h30 em audiência de julgamento resultou que a segunda arguida transmitiu ainda à primeira arguida que o doente estava agitado.
4) Ainda relacionado com tal telefonema em audiência resultou que perante a informação prestada pela segunda arguida à primeira esta não se deslocou à enfermaria para observar C, não deu instruções para o fazer regressar ao recobro a fim de aí o observar e serem avaliados os seus parâmetros vitais, designadamente, com recurso ao monitor nem deu instruções para que fosse solicitada a presença na enfermaria de outro médico de serviço a fim de observar aquele.
5) Relacionado com a indicação, pelo telefone, de administração de ½ fórmula de hidroxizina intra muscular em audiência de julgamento resultou que a primeira arguida depois de ter dado tal indicação e até ao momento em que a sua presença na enfermaria foi solicitada através de bip não se deslocou à mesma para observar C nem contactou a segunda arguida ou a enfermeira M a fim de saber o efeito naquele da terapêutica por si indicada pelo telefone.
6) Relacionado com o telefonema descrito na pronúncia como tendo sido efectuado por A para a enfermaria tendo falado com M em audiência de julgamento resultou que após tal contacto telefónico M informou a segunda arguida que o Dr. A ia jantar e que depois se deslocaria à enfermaria para observar C.
7) Relacionado com o telefonema descrito na pronúncia como tendo sido efectuado pela arguida M ao Dr. A em audiência de julgamento resultou que cerca das 20H10 a segunda arguida, ciente que a injecção de hidroxizina intra muscular por si administrada a C não tinha provocado alteração do estado do mesmo atentas as queixas relatadas pelos seus familiares deu conhecimento ao Dr. A que C estava muito agitado, se queixava de falta de ar e de que ia morrer.
8) Da audiência de julgamento resultou, ainda, que após ter contactado o Dr. A e até às 21H00 a segunda arguida não voltou a contactar a primeira arguida, o Dr. A ou qualquer outro médico de serviço naquele hospital solicitando a presença destes junto de C ou informando-os do estado deste último.
9) Da audiência de julgamento resultou também que com toda a actuação descrita a primeira arguida omitiu um dever de cuidado e de diligência de que era capaz e a que estava obrigada em virtude da sua qualidade de médica e funções exercidas naquele dia naquele Hospital, actuação esta que conduziu à morte de C resultado que não representou como consequência possível da sua conduta.
10) Da audiência de julgamento resultou, por último, que com toda a actuação descrita a segunda arguida omitiu um dever de cuidado e de diligência de que era capaz e a que estava obrigada em virtude da sua qualidade de enfermeira e funções exercidas naquele dia naquele Hospital, actuação esta que conduziu à morte de C resultado que não representou como consequência possível da sua conduta.
As alterações ante enunciadas não importam imputação de crimes diversos nem o aumento do máximo da pena aplicável, respeitando à concretização de algumas referências conclusivas, variações e concretização na descrição dos factos em toda a sua sequência, sem contender todavia com a realidade da vida que os factos descritos na pronúncia retratam.
Assim, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 1° alínea f) a contrario sensu e 358º nº 1 ambos do Código do Processo Penal comunicam-se as referidas alterações às arguidas.
Em consequência a sentença centrou toda a conduta reputada negligente da arguida na sua conduta omissiva no período em que C esteve na Enfermaria.
E, apesar de no despacho em que é comunicada a alteração dos factos se dizer (repete-se) que “as alterações ante enunciadas não importam imputação de crimes diversos nem o aumento do máximo da pena aplicável, respeitando à concretização de algumas referências conclusivas, variações e concretização na descrição dos factos em toda a sua sequência, sem contender todavia com a realidade da vida que os factos descritos na pronúncia retratam”, na sentença, ao invés, afirma-se:
Desde logo cabe salientar que a omissão do dever de cuidado que em audiência se apurou relativamente a cada uma das arguidas não tem correspondência na descrição factual contida na pronúncia mas sim no elenco factual apurado em audiência de julgamento e que conduziu à comunicação de alterações não substanciais de facto.
Acresce que a descrição de factos contida na pronúncia relativamente à arguida M na óptica deste Tribunal não seria reveladora de uma actuação negligente, porquanto, é uma tese que revela desconhecimento das finalidades do Recobro.
Com efeito, sendo esta uma unidade de recuperação de uma anestesia a permanência de um doente pelo período de vinte e quatro horas e ressalvadas outras indicações que resultem do Regulamento da mesma, só pode ser determinada por critérios que não aconselhem a alta na perspectiva anestésica.
Acresce que a vigilância de um doente no pós-operatório e pelo período de vinte quatro horas é a vigilância devida por todo um Hospital e não por uma só unidade ou serviço.
Por outro lado, não era o conhecimento da extensão da cirurgia que iria determinar a prestação de cuidados anestésicos distintos sendo certo que não resultou sequer demonstrado que implicasse a prestação de cuidados pós-operatórios a nível de Enfermaria diferenciados.
Assim entende-se que a omissão do dever de cuidado descrita na pronúncia nunca conduziria à afirmação da responsabilidade penal da arguida M.
Todavia, a matéria apurada e comunicada em audiência é consubstanciadora da omissão por parte desta arguida de um dever de cuidado, concretamente um dever de assistência médica que podia e era capaz de ter observado.
E, compulsados os factos provados e não provados – nestes passando a constar todos aqueles que, de acordo com a estrutura da pronúncia, eram demonstrativos de uma actuação diligente da arguida M (mormente os factos não provados XII a XVI) e que concomitantemente também enquadravam a actuação negligente da arguida M – constata-se que a conduta que permite a responsabilização criminal pelo crime de homicídio negligente da arguida M deixa de ser activa – dar alta do recobro antes de tempo e sem estarem observados os critérios objectivos que permitiriam a alta e sem ser conhecida a sua real situação para passar a ser omissiva e temporalmente posterior – omissão do dever de vigilância enquanto C se encontrava na enfermaria (não se tendo deslocado, não tendo chamado outro médico, nem dando instruções para C regressar ao recobro), após prescrição telefónica, conforme factos 69 a 74 e 92.
*
Nos termos do art. 1º al. f) do Código de Processo Penal, considera-se alteração substancial de factos, aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.
Não suscita dúvida que a alteração operada não teve por efeito a agravação da pena máxima aplicável.
Resta apurar se foi imputada à arguida a prática de crime diverso.
Crime diverso é aquele em que ocorre um desvio significativo em relação ao objecto do processo, com uma modificação estrutural dos factos descritos na acusação, traduzindo uma diferença de identidade , de grau, de tempo ou espaço, que transforme o quadro factual descrito na acusação em outro diverso, ou manifestamente diferente no que se refira aos seus elementos essenciais, ou materialmente relevantes de construção e identificação factual, com elementos essenciais de divergência que agravem a posição processual do arguido, ou a tornem não sustentável, fazendo integrar consequências que se não continham na descrição da acusação, constituindo uma surpresa com a qual o arguido não poderia contar, e relativamente às quais não pode preparar a sua defesa .
Aceitando-se que na alteração substancial dos factos se adopta uma noção de 'facto' que não é exclusivamente normativa nem exclusivamente naturalística – antes, pedaço da vida social, cultural e jurídica de um sujeito , o crime é diverso quando o bem jurídico agora protegido é distinto do primitivo; está em causa um facto naturalístico diferente, objecto de um diferente e distinto juízo de valoração social; ocorre a perda da “imagem social” do facto primitivo, ou seja, houve uma perda sua identidade; ou quando o arguido não tenha tido oportunidade de se defender dos “novos factos”, não sendo estes meramente concretizadores ou esclarecedores dos primitivos .
O crime diverso pode ser o mesmo tipo legal, desde que existam um ou mais dos elementos diferenciadores essenciais em relação aos factos descritos na acusação ou na pronúncia e, mormente, se ocorrer uma diminuição das garantias de defesa .
Por isso, para prevenir prejuízos graves para a preparação da defesa, também a hipótese de a alteração factual consistir no acrescentamento aos factos descritos na acusação de um facto (novo), sem o qual o arguido não poderia ser condenado criminalmente equivale à imputação ao arguido de um 'crime diverso' .
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Na situação em apreço, não restam dúvidas de que a alteração de factos efectuada foi substancial.
Os factos pelos quais a arguida M foi condenada são naturalisticamente diferentes, os actos de execução em que se manifestam também são diversos, com uma imagem social autonomizável, antes correspondendo a uma acção contrária às legis artis, agora a uma omissão de um dever de vigilância, praticados num período temporal que apesar de próximo é significativamente distinto, acarretando uma impossibilidade da arguida se defender destes novos factos, como aliás resulta da sua contestação.
A propósito das garantias de defesa, importa salientar que o inquérito investigou e apreciou a existência de indícios da prática do crime de homicídio negligente durante a intervenção cirúrgica a que C foi sujeito, no período do recobro e no período em que esteve na enfermaria. Concluiu pela inexistência de indícios relativamente aos médicos que participaram na intervenção cirúrgica e proferiu despacho de arquivamento relativamente a eles (fls. 637 e 638). Encontrou indícios da prática de ilícitos criminais durante o período em que C esteve no recobro e deduziu acusação contra a arguida M. Encontrou indícios da prática de crime de homicídio negligente pela conduta das co-arguidas, enquanto C esteve na enfermaria e acusou-as. Embora não tenha proferido expressamente despacho de arquivamento relativamente à conduta da arguida M pela sua conduta enquanto C esteve na enfermaria, os factos indiciados, constantes da acusação e da pronúncia inculcam claramente a convicção fundamentada da inexistência de indícios da prática de qualquer ilícito por esta relativamente a esse período. Pelo contrário, os factos constantes da acusação e da pronúncia apontam para a existência de uma conduta isenta de reparos durante este período. É certo que não foi proferido expressa e indiscutivelmente despacho de arquivamento relativamente à conduta da arguida ora Recorrente, no que respeita a este último período, pelo que não será de questionar a existência de um caso julgado formal ou a legalidade formal da possibilidade de condenar por essa factualidade nestes autos. Porém, inevitavelmente, a alteração dos factos e a conjugação destes com os factos não provados e a consequente condenação, não pode deixar de ser considerado como uma decisão surpresa que afecta as garantias de defesa e põe em causa as garantias de um processo justo e leal, assim como a imprescindível tutela da confiança, como elementos de um processo equitativo, tanto mais que, como a sentença reconhece, não fosse a alteração de factos, a arguida seria absolvida.
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Relativamente à co-arguida M, a alteração de factos comunicada é não substancial, limitando-se a acrescentar certas circunstâncias explicativas, que nada de novo trazem à estrutura do crime pelo qual vinha pronunciada .
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Face ao supra exposto verifica-se que ao considerar a alteração de factos comunicada como não substancial relativamente à arguida M e deixando de observar o disposto no art. 359º do Código de Processo Penal, a sentença padece da nulidade do art. 379º nº 1 al. b) do Código de Processo Penal.
Consequentemente, importa declarar nula a sentença, nos termos do art. 379º nº 1 al. b) do Código de Processo Penal, na parte que respeita à responsabilidade criminal da arguida M, devendo a MMª juiz do tribunal a quo, dar cumprimento ao disposto no art. 359ºdo Código de Processo Penal, para os efeitos ali previstos e decidir em conformidade.
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O conhecimento das demais questões fica prejudicado, face à ausência de legitimidade para os assistentes recorrerem da escolha e medida da pena, no caso concreto, à ilegitimidade passiva das arguidas/demandadas na demanda cível e face à nulidade verificada por não cumprimento do disposto no art. 359º do Código de Processo Penal, relativamente à arguida M.



III – Dispositivo
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam em conferência os Juízes da 3ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:
 Não conhecer da questão da omissão de pronúncia sobre o pedido de indemnização civil;
 Por carecerem de legitimidade, rejeitar o recurso interposto pelos assistentes relativamente à escolha e medida das penas;
 Conceder provimento aos recursos relativos à condenação em indemnização cível interpostos pelas Demandadas M e M, julgando-as partes ilegítimas e absolvendo-as da instância, com a consequente condenação dos Assistentes/Demandantes nas custas cíveis;
 Conceder provimento ao recurso interposto por M da parte criminal e, consequentemente, declarar nula a sentença, nos termos do art. 379º nº 1 al. b) do Código de Processo Penal, na parte respeitante à responsabilidade criminal da arguida M, devendo a MMª juiz do tribunal a quo, dar cumprimento ao disposto no art. 359ºdo Código de Processo Penal, para os efeitos ali previstos e decidir em conformidade.
No mais – condenação penal da arguida M - mantém-se a sentença recorrida.
Custas pelos Recorrentes assistentes, fixando-se a taxa de justiça devida em 5 UC.
Lisboa, 2 de Novembro de 2011
(elaborado, revisto e rubricado pelo relator
e assinado por este e pelo Ex.mo Adjunto)

(Jorge Raposo)

(Fernando Ventura)
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