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 - ACRL de 28-04-2010   Excepção do caso julgado – inexistência de identidade história dos factos.
Verificando-se que os factos imputados em anterior acusação à arguida (pelos quais esta veio a ser absolvida), embora integrando tipos de crime com o mesmo “nomen iuris”, são, na sua identidade histórica (aferida através de um ponto de vista naturalístico), completamente diferentes dos que constituem objecto do presente processo, importa concluir que inexiste identidade entre os factos que constituem o objecto dos dois processos, razão pela qual o princípio “ne bis in idem” não impede o julgamento e subsequente condenação nestes autos.
Proc. 976/08.0TAFUN 3ª Secção
Desembargadores:  Carlos Almeida - Telo Lucas - -
Sumário elaborado por Ivone Matoso
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Processo n.º 976/08.0TAFUN – 3.ª Secção
Relator: Carlos Rodrigues de Almeida

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa

I – RELATÓRIO
1 – No dia 17 de Março de 2010, o relator proferiu nestes autos a decisão sumária que, na parte para este efeito relevante, se transcreve:


I – RELATÓRIO
1 – A arguida X foi julgada na 1.ª Vara de Competência Mista do Funchal e aí condenada, por acórdão de 12 de Novembro de 2009, pela prática de:
– Um crime de peculato na forma continuada, conduta p. e p. pelos artigos 375.º, n.º 1, e 30.º, n.º 2, do Código Penal, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão;
– Um crime de falsificação de documento, conduta p. e p. pelo artigo 256.º, n.º 1, alínea a), e n.º 4, do Código Penal, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão;
Em cúmulo, a arguida foi condenada na pena única de 3 anos de prisão suspensa na sua execução pelo período de 2 anos.
A arguida foi ainda condenada a pagar ao Estado Português a quantia global de 1.354,95 €, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos contados desde a data da apropriação de cada uma das parcelas até à data do integral pagamento.
Nessa peça processual o tribunal considerou provado que:
1. No decurso dos anos de 1999 a 2006 a arguida exerceu inicialmente funções de técnica exactora (caixa), entre 1 de Fevereiro de 2003 e 31 de Dezembro 2003 de gerência da secção de cobrança e, desde então, funções de substituta legal do Chefe da Secção, sempre no Serviço de Finanças do Funchal.
2. No exercício dessas funções, competia-lhe, para além do mais, receber dos contribuintes valores em numerário e em cheque para pagamento de contribuições e impostos devidos à Fazenda Nacional (só com o Dec. Lei n.º 18/2005, de 18 de Janeiro, foram transferidos para a Região Autónoma da Madeira as atribuições e competências fiscais que vinham sendo exercidas pelo Governo Central. A DRAF - Direcção Regional dos Assuntos Fiscais - em cuja estrutura se integram os Serviços de Finanças, foi criada pelo Decreto Regulamentar Regional n.º 3/2005/M, de 11 de Fevereiro de 2005 e veio substituir a anterior Direcção de Finanças).
3. Ao longo desses anos, a arguida apoderou-se de várias quantias que recebeu de contribuintes para pagamento da contribuição autárquica/IMI e do Imposto sobre o rendimento das pessoas singulares, ocultando esse procedimento do modo que a seguir se indica.
4. A secção de cobrança, até 24 de Maio de 2004, utilizou, exclusivamente, selos de validação manual de cobrança, como forma de dar quitação aos pagamentos, iniciando a partir dessa data o modo de certificação automática associado ao Sistema Local de Cobrança.
5. Sempre que era apresentado qualquer documento relativo a imposto liquidado e em dívida aos balcões dos serviços, o contribuinte recebia como prova de quitação a aposição nesse próprio documento de uma vinheta/selo de validação com o respectivo número, carimbado com a data do dia e rubricado pelo funcionário.
6. Simultaneamente, era destacado desse documento o chamado 'talão de controlo', onde era colocado o selo com a palavra 'controlo' (com o mesmo número do selo de validação), carimbo com data e rubrica do funcionário, para efeitos de contabilização e arquivo dos Serviços.
7. A arguida contornava o controlo diário da utilização e conferência desses selos (que lhe eram entregues) e dissimulava as consequentes apropriações de diversas formas. Umas vezes não contabilizava os talões de controlo; outras entregava documentos de quitação aos contribuintes sem a respectiva vinheta/selo de quitação, apunha selos de 'controlo' em talões diferentes e de menor valor, retirava vinhetas de validação de documentos regularmente pagos e contabilizados que ficavam na secção por esquecimento dos contribuintes e colocava noutros documentos que entregava a outros contribuintes, sempre no intuito de fazer corresponder o consumo dos selos de validação/quitação entregues aos utentes com os talões e selos de controlo que ficavam nos Serviços.
8. Assim, ao longo dos anos de 1999 a 2004, a arguida reiterando o seu propósito criminoso em cada uma das suas actuações, recebeu de contribuintes para pagamento de Notas de Cobrança relativas a Imposto sobre o rendimento e à contribuição autárquica/IMI, diversas quantias que recebeu no exercício das suas funções, gastando-as em proveito próprio, designadamente:

N.º Nota de Cobrança Imposto Valor € Data de
Apropriação N.º Selo de
Validação Data de
Utilização
98/175041938/3450/41/5 CA 369,98 29.09.99 G 7156877 29.09.99
99/112734480/3450/11/7 CA 442,69 10.04.00 G 6103278 10.04.00
99/117456047/2810/11/2 CA 264,62 13.04.00 G 6104082 13.04.00
99/126539286/3450/11/3 CA 915,19 17.04.00 G 6104244 17.04.00
2000 5130078779 IRS 358,42 30.05.00 H 6014234 30.05.00
2001 243215803 CA 731,91 06.05.02 H 5879737 06.05.02
2001 241060103 CA 403,85 22.08.02 M 0133598 22.08.02
2002 224493803 CA 499,57 01.09.03 H 6044439 01.09.03
2003 065319503 IMI 234,23 25.03.04 N 2064721 25.03.04
2003183785803 IMI 321,39 05.04.04 N 2068233 03.04.04
2003 181694703 IMI 493,25 12.04.04 N 2069095 12.04.04
2003 185961603 IMI 321,23 30.04.04 N 2428645 30.04.04
Total €5.356,3

9. À excepção da quantia de € 403,85 (que repôs passados 5 meses) em toda as outras situações em que houve reposição, esta só ocorreu passados mais de dois anos (em 5 situações) e ao fim de seis/sete anos (em 3 situações).
10. Estas reposições ocorreram sempre no decurso de processos de execução fiscal instauradas contra os contribuintes aparentemente faltosos, cujas guias para pagamento a arguida levantava nos serviços, uma vez mais para evitar que se descobrissem os factos que vinha praticando.
11. Assim:
N.º Nota de Cobrança Deu origem ao Processo Executivo n.º

Data da Regularização pela arguida
98/175041938/3450/41/5 3450200001022660 23.10.06
99/112734480/3450/11/7 3450200201016881 22.11.06
99/117456047/2810/11/2 2810200201028723 Em dívida
99/126539286/3450/11/3 3450200201018183 28.08.06
2000 5130078779 3450-00/102717.4 Em dívida
2001 243215803 3450-031018221 Em dívida
2001 241060103 3450200201036742 13.12.02
2002 224493803 3450200401000985 18.10.05
2003 065319503 3450200501031597 24.10.06
2003 183785803 3450200501026798 27.09.06
2003 181694703 3450200501025104 22.11.06
2003 185961603 3450200501024060 28.08.06

12. Como já se referiu a secção de cobrança passou a utilizar, a partir de 24 de Maio de 2004, a certificação automática dos pagamentos através de aplicação informática, o que permitia em determinadas circunstâncias e mediante autorização do responsável da gerência, anular ou eliminar do sistema documentos previamente cobrados.
13. Em 28.08.06 foi paga por X a nota de cobrança de IRS n.º 2006 00001089233, no montante de € 2.934,94, através do cheque n.º 0, da CGD, ao qual foi atribuído no sistema de validação automática o n.º 145970.
14. Ao receber este cheque a arguida anulou-o no sistema com o fundamento de 'cheque rasurado'. Seguidamente registou-o no sistema como 'cheque visado' e usou-o para pagamento de dois documentos de cobrança, um deles o documento n.º 99/126539286/3450/1I/3, referente a CA, no valor de € 915,19, de que se apoderou em 17.04.00, conforme se extrai do quadro supra.
15. Ao não imputar o cheque em causa ao pagamento daquele imposto de IRS devido por X (relativo à nota de cobrança n.º 2006 00001089233, no montante de € 2.934,94), determinou a instauração de processo de execução contra o mesmo, tendo a arguida liquidado o montante de € 3.001,70 (€ 2. 934,94 acrescidos de € 37,41 de juros de mora), nesse processo executivo, em 22.11.06, através de guia de pagamento que extraiu do sistema informático, via Internet.
16. No processo de execução fiscal n.º 345020020/036742, instaurado contra A, pelo não pagamento da nota de cobrança n.º 2001 241060103 (CA no valor de € 403,85), a arguida fez juntar aos autos um comprovativo de pagamento da quantia exequenda e, em 12 de Dezembro de 2002, um Termo de Adesão ao regime legal de regularização excepcional de dívidas, previsto no Dec. Lei n.º 248-A/2002, de 14.11, onde forjou a assinatura do contribuinte, para assim não efectuar o pagamento de acréscimos legais.
17. No decurso do ano de 2003, mais concretamente entre 1 de Fevereiro e 31 de Dezembro, a arguida A exerceu as funções de 'caixa' na secção cobrança na Repartição de Finanças do Funchal, cabendo-lhe, no âmbito dessas funções, para além do mais, receber dos contribuintes valores em numerário para pagamento de contribuições e impostos devidos à Fazenda Nacional.
18. Os serviços de cobrança da Repartição de Finanças do Funchal funcionavam do seguinte modo:
– Eram utilizados exclusivamente selos de validação manual de cobrança, como forma de dar quitação aos pagamentos, iniciando a partir dessa data o modo de certificação automática associado ao Sistema Local de Cobrança;
– Sempre que era apresentado qualquer documento relativo imposto liquidado e em dívida aos balcões dos serviços, o contribuinte recebia como prova de quitação a aposição nesse próprio documento de uma vinheta/selo de validação com o respectivo número, carimbado com a data do dia e rubricado pelo funcionário.
– Simultaneamente, era destacado desse documento o chamado 'talão de controlo' onde era colocado o selo com a palavra 'controlo' (com o mesmo número do selo de validação), carimbo com a data e rubrica do funcionário, para efeitos de contabilização e arquivo dos Serviços.
19. Apresentado o documento a pagamento, a arguida procedia à validação formal do pagamento através da aposição da parte do selo de validação com a inscrição 'Validação' no recibo destinado ao contribuinte/pagador, procedendo ainda à autenticação com o respectivo carimbo/datador a tinta de óleo e rubricando-o;
– No talão de controlo que ficava na sua posse para efeitos de registo, contabilização e posterior arquivo, não era aposta a parte do selo de validação que tem a inscrição 'Controlo', sendo que o mesmo também não era contabilizado como receita entrada na sua caixa;
– A fim de completar a utilização integral do selo de validação e evitar que fosse detectada, colocava, em momento posterior, a parte do selo de validação com a inscrição 'controlo' num outro talão de controlo, cujo montante era, em regra, muito inferior àquele em que havia sido aposta a parte do selo com a menção de 'validação', utilizando para o efeito documentos de familiares seus, cujo pagamento seria feito por si.
20. Assim, no dia 24 de Abril de 2003, a arguida recebeu da contribuinte fiscal M, com o NIF 000, a quantia de € 237,72 referente ao pagamento da primeira prestação de Contribuição Autárquica relativa ao ano de 2002.
21. Acto contínuo, procedeu à validação formal do pagamento através da aposição da parte do selo de validação com a inscrição 'Validação', com o número N.º 0231902, na nota de cobrança n.º 2002 225151103 enviada àquela para pagamento da referida quantia, apôs a data de 24.04.2003 com o auxílio de um carimbo/datador e rubricou a nota de cobrança com o seu nome.
22. Seguidamente, ao invés de arquivar o talão de controlo dessa nota de cobrança na capa de lote do dia 24 de Abril de 2003, a arguida colocou a parte do selo de validação que tem inscrita a palavra 'controlo', com o número N0231902, numa outra nota de cobrança respeitante a Contribuição Autárquica com o número 20002 22 34 50103, da importância de € 37,28, relativa ao contribuinte M (contribuinte n.º 0000 – seu cônjuge, cujo nome consta como contribuinte B na última declaração de rendimentos apresentada em 2007) e rubricou-o com o seu nome.
23. Após e para que o mesmo ficasse devidamente contabilizado, procedeu ao pagamento do referido valor.
24. Na posse daquela quantia de 237,72 €, a arguida apropriou-se dela, gastando-a em proveito próprio.
25. Ao não imputar tal quantia ao pagamento da primeira prestação de Contribuição Autárquica relativa ao ano de 2002 devido pela contribuinte M, determinou a instauração de processo de execução fiscal, com o n.º 3450200301037730, contra a mesma, tendo a quantia em questão sido liquidada em 25.05.2008 por pessoa que não foi possível identificar.
26. Com a sua conduta a arguida apropriou-se do valor global de € 8.528,99 (oito mil quinhentos e vinte e oito euros e noventa e nove cêntimos), repartido pelas quantias de € 369,98, € 442,69, € 264,62, € 915,19, € 358,42, € 731,91, € 403,85, € 499,57, € 234,23, € 321,39, € 493,25, € 321,23, € 2.934,94 e € 237,72.
27. Fê-lo em detrimento do Estado Português e da Região Autónoma da Madeira (no caso do IRS do ano de 2006 – € 2.934,94), a quem pertenciam as importâncias que cobrou dos contribuintes.
28. A arguida actuou deliberada, livre, conscientemente e aproveitando o facto de ter na sua esfera de disponibilidade as verbas entregues pelos utentes daqueles serviços para, nos dias 29.09.99, 10.04.00, 13.04.00, 17.04.00, 30.05.00, 06.05.02, 22.08.02, 24.04.03, 01.09.03, 25.03.04, 05.04.04, 12.04.04, 30.04.04 e 28.08.06, subtrair as mencionadas quantias em dinheiro e cheques.
29. Renovou o seu desígnio criminoso em cada uma dessas datas, no exercício das citadas [funções] no Serviço de Finanças do Funchal e como tal sujeita ao Estatuto dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local, que lhe impunham o dever de zelo e lealdade.
30. Ao fazer suas aquelas quantias sabia que lesava patrimonialmente o Estado Português e a RAM, para além de pôr em causa o interesse do Estado na honestidade dos seus funcionários e agentes, condição indispensável ao exercício de funções de natureza pública.
31. Sabia ainda que forjava a assinatura do A, no termo de Adesão ao benefício de regularização das dívidas fiscais, com o objectivo de não efectuar o pagamento dos acréscimos legais devidos à Administração Fiscal, benefício que pretendia alcançar para si (nos termos do citado diploma legal).
32. Também não desconhecia que as suas condutas lhe eram vedadas por lei.
33. A arguida não tem antecedentes criminais.
34. A arguida é oriunda de um meio sócio-económico e cultural de nível médio.
É a mais nova de uma fratria de três elementos, tendo sido educada no seio de um sistema familiar tradicional, organizado, estável e em que ambos os progenitores são descritos como possuindo competências educativas para a transmissão de regras e valores pró-sociais.
Socialmente parece ter-se desenvolvido num contexto convencional, quer em termos de ambiente quer em termos de pares.
A nível académico teve um percurso regular, tendo completado o Curso Complementar do Liceu no final da adolescência. Posteriormente esteve cerca de quatro anos inactiva, tendo começado a trabalhar no Serviço de Finanças do Estado Português em 1979.
Há cerca de 15 anos encetou um relacionamento marital, relação da qual não teve descendência. Contudo nos últimos anos assumiu a guarda de um sobrinho, após falecimento de um irmão.
A arguida reside com o cônjuge, de 0 anos de idade, reformado por invalidez, e um sobrinho de 0 anos de idade, estudante, o qual reside consigo desde o falecimento do irmão, tendo o poder paternal sido atribuído à arguida.
O agregado habita em casa própria, tratando-se de uma moradia de três pisos, de construção na última década, que espelha exteriormente condições de conforto.
A nível profissional, X desenvolve actividade na Direcção de Finanças onde está há cerca de 30 anos, tendo neste momento a categoria de Técnica Tributária Adjunta.
Ao longo do seu percurso passou por várias secções da entidade profissional, estando actualmente a desempenhar funções administrativas. Após a instauração do presente processo, transitou da secção da tesouraria para outras secções e funções, tendo vindo a alternar de tarefas em função de alegadas práticas profissionais desadequadas, que conduziram à perda de confiança profissional por parte dos seus superiores hierárquicos. Assim no momento apenas lhe são atribuídas tarefas administrativas, estando impedida de aceder ao sistema informático.
Nos últimos três meses encontra-se de baixa médica, uma vez que sofre de doença oncológica, tendo sido sujeita a cirurgia e estando em fase de tratamentos de quimioterapia.
Economicamente, a arguida manifestou ter uma situação estável, reconduzindo-se os rendimentos mensais do agregado a € 1.500,00 por si auferidos e a € 1.400,00 correspondentes à reforma recebida pelo seu marido, os quais permitirão uma adequada satisfação das necessidades básicas e outras do agregado. Contudo verbalizou ter tido no passado algumas dificuldades, especialmente na fase em que o seu irmão se encontrava doente e com os filhos a cargo, tendo alegadamente assumido nessa época diversas despesas, entre as quais supostas dívidas do irmão e sustento dos sobrinhos. De resto, esta será a justificação que em diversas ocasiões assume para problemas económicos, nomeadamente perante a sua entidade profissional, no âmbito de algumas averiguações a que foi sujeita. Apesar do relato destas dificuldades económicas, ao longo da última década adquiriu com o cônjuge duas moradias, aquela em que reside e uma de férias.
Nos tempos livres, parece dedicar-se sobretudo às tarefas domésticas, e à leitura, permanecendo alguns períodos na casa de féria a norte da ilha, juntamente com o cônjuge e alguns amigos em comum.
Aparentemente mantém em segredo da sua situação jurídica para a maior parte das pessoas das suas relações sociais. No contexto de trabalho, embora a situação seja do conhecimento geral entre os colegas, não é um assunto comentado ou que tenha afectado as relações com eles, observando-se o facto de, aparentemente, não manter relações privilegiadas com pessoas da área profissional.
A situação na origem dos presentes autos causou impacto ao nível do percurso laboral da arguida na entidade profissional, tendo gerado diversas alterações de posto, instauração de processos de averiguações e perda de confiança pelos seus superiores hierárquicos. Não obstante, esta situação não foi assinalada pela arguida.
A nível pessoal, X procurou revelar-se pouco afectada pelos factos, parecendo a sua postura relacionada em parte com a ausência de processo disciplinar ao nível da entidade profissional, e por outro lado, no momento parece mais focada na sua situação de doença. No entanto, o facto de assumir não partilhar o assunto com a família ou amigos traduzirá um mal-estar com a situação.
Face aos factos jurídicos em causa manifesta uma atitude crítica considerando ser um crime que merece uma sanção jurídica e da sociedade, mas perspectivando que condições de vida adversas dos prevaricadores e atitudes de reparação que possam assumir, possam desagravar as sanções e diminuir a sua culpa.
Da avaliação efectuada, os dados apontam para que X se trate de uma pessoa com algumas fragilidades ao nível do autocontrolo, crenças pouco convencionais perante cenários de dificuldade económica, as quais são passíveis de neutralizar sentimentos de responsabilidade, o que perante situações de oportunidade poderão proporcionar o risco para o cometimento de actividades delituosas.
Contudo revela um enquadramento sócio-familiar estável e, presentemente, uma situação económica organizada.
O tribunal fundamentou a decisão de facto nos seguintes termos:
«A formação da convicção do Tribunal acerca da decisão sobre a matéria de facto baseou-se na análise crítica e global do conjunto da prova produzida e examinada em audiência, perspectivada, no essencial, à luz das regras experiência e da livre apreciação, tal como emerge do artigo 127.º do Código de Processo Penal.
Assim, e no que respeita à factualidade dada como provada, relacionada com a conduta delituosa da arguida, 'modus operandi' por ela adoptado, circunstancialismo em que a mesma ocorreu e suas consequências, vertida nos itens 1. a 32., para a dar como assente o Tribunal considerou, por um lado, os depoimentos conjugados das testemunhas Dr. .., Auditor da Direcção dos Serviços de Auditoria que fez uma auditoria no Serviço de Finanças onde a arguida exerce funções, na sequência da qual elaborou os relatórios constantes de fls. 4 a 44 dos autos principais e de fls. 3 a 9 dos autos apensos, cujo teor e conclusões confirmou em julgamento; B, Tesoureiro de Finanças desde 1991, a chefiar a respectiva secção desde 2004, colega de trabalho da arguida, e C, Chefe do Serviço de Finanças onde a arguida exercia e exerce funções.
Por outro, nesta matéria, foram ainda valorados os documentos juntos aos autos principais, designadamente os constantes de fls. 53 a 78, 88 a 159, 172 a 191 e 230 a 251, e aos autos apensos, constantes de fls. 11 a 29.
Dos apontados depoimentos, corroborados pelo referido acervo documental resultou evidenciada a aludida matéria factual tanto mais que as identificadas testemunhas, no seu conjunto, referiram de modo inequívoco e convincente, que os 'selos de validação/quitação' usados na adulteração das liquidações/pagamentos de impostos em causa haviam sido recebidos pela arguida, que cada um dos funcionários assinava a folha de requisição de tais selos, que são identificados pelo receptor, que os selos recebidos por um funcionário não podem ser usados por outro e, por conseguinte, que apenas ela pode ter sido a autora de tais adulterações e consequentes apropriações ilícitas de quantias entregues para pagamento de impostos por contribuintes.
Do mesmo modo, a prova pericial produzida, conjugada com o depoimento da testemunha A, que de modo convincente e isento negou ter aposto no termo de adesão cuja cópia consta de fls. 249 destes autos (e cujo original, junto por linha, lhe foi exibido em julgamento) a assinatura que nele consta como sendo a sua, permitiu ao tribunal concluir, sem sombra de dúvida, ser tal assinatura da autoria de arguida que, desse modo, forjou a assinatura desse contribuinte no aludido documento.
Por outro lado, a partir dos factos dados como provados, por inferência e atendendo às regras da experiência comum, num processo lógico e racional , o Tribunal ficou ainda convencido de que a arguida agiu consciente da reprovabilidade da sua conduta, que representou e quis.
No que respeita à matéria factual contida no ponto 33., relacionada com os antecedentes criminais da arguida, o Tribunal atendeu ao seu certificado de registo criminal, junto a fls. 302.
A convicção do tribunal, para dar como provada a factualidade relacionada com o percurso de vida da arguida e sua situação pessoal, económica e familiar, contida no item 34, resultou do relatório social a ela referente, com que os autos foram instruídos, e das suas próprias declarações».

2 – A arguida interpôs recurso desse acórdão.
A motivação apresentada termina com a formulação das seguintes conclusões:
51. «O Tribunal a quo condenou a arguida por factos em relação aos quais a arguida já houvera sido julgada, mais concretamente no âmbito do Processo 143/06.7TAFUN.
52. No âmbito dos presentes autos (processo principal) e respectivo apenso, vinha a arguida acusada da prática, em autoria material, sob a forma consumada e em concurso real de treze crimes de peculato, p. p. pelo artigo 375.º n.º 1 do CP e de um crime de falsificação de documento p. p. pelo artigo 256.º n.º 1 al. a) do citado diploma legal, e bem assim, pela prática de um outro crime de peculato, igualmente p. p. pelo citado normativo legal.
53. No âmbito do Processo n.º 143/06.7TAFUN, foi arguida acusada da prática, em autoria material e em concurso real, de um crime de peculato, na forma continuada p. p. pelos artigos 375.º, n.º 1, e 30.º, n.º 2, do CPP e ainda da prática de um crime de falsificação de documento p. p. pelo artigo 256.º n.º 1 al. a) do CP, factos pelos quais, segundo então a douta acusação, teriam sido praticados pela arguida no exercício das suas funções, enquanto responsável pela 0ª Secção de Cobrança de Finanças do Funchal, tendo aí também sido deduzido pedido de indemnização civil a título de danos patrimoniais pela Direcção Regional dos Assuntos Fiscais (tudo conforme fls. 385 a 392 do Processo 976/08.OTAFUN).
54. Por tais factos, que à arguida foram imputados no âmbito do citado processo (n.º 143/06.7TAFUN), o qual correu termos no 1.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca do Funchal, veio a mesma a ser absolvida por sentença aí proferida, e transitada em julgado em 10/10/2008, portanto, há muito transitada em julgado, aquando do surgimento da acusação imputada à arguida no âmbito destes autos (processo principal e respectivo apenso).
55. Ora, salvo o muito respeito pela acusação e pelo Tribunal a quo, consideramos pois que o facto de nestes autos terem sido imputadas à arguida várias resoluções criminosas, mais não foi do que simples estratégia processual seguida pela acusação a fim de contornar aquela outra acusação (proferida no processo 143/06.7TAFUN) em ordem a 'superar' eventual invocação pela arguida da excepção de caso julgado, o que efectivamente veio a acontecer, posto que em tais autos, também aí era imputado à arguida a prática de um crime de peculato (mas sob a forma continuada).
56. Ora, não vemos em que medida a excepção de caso julgado apenas possa funcionar em relação a factos que apenas diferem no que se refere à relativa e pequena diferença qualificação jurídica.
57. Posto que, existe efectivamente entre os factos imputados à arguida em tal primeiro processo e aqueles que nestes autos, ora lhe foram imputados, verdadeiras semelhanças, senão mesmo identidade factual, sendo que esta asserção sai ainda mais reforçada desde já por uma simples razão cronológica, qual seja, a de terem os factos imputados naquele, sido supostamente praticados entre Julho de 2004 e Maio de 2005 e os factos que constam dos presentes autos terem sido presumivelmente praticados entre os anos de 1999 e 2004.
58. Donde, não é simples facto de eventualmente poder invocar-se, como o Tribunal a quo o faz, que há entre os referidos dois processos, alguma diferença entre tais condutas e suposta e relativa diferença de qualificação jurídica, que de todo em todo poderá afastar a verificada excepção de caso julgado.
59. Destarte, considera a arguida, que a terem sido praticados os factos pelos quais foi condenada nestes autos de que ora se recorre, deveriam os mesmos terem já sido julgados no âmbito do Processo 143/06.7TAFUN.
60. Consequentemente não poderia a arguida ser julgada e por maioria de razão, condenada em novo processo por factualidade idêntica àquela que foi discutida e apreciada no acima referido processo penal, posto que a força consumptiva daquele primeiro processo estende-se inelutavelmente aos 'novos' factos' apreciados nos autos do Processo 976/08.0TAFUN.
61. Assim, considera a arguida que o Tribunal a quo, ao tê-la condenado pelos factos que neste último processo lhe eram imputados, e bem assim, em face do entendimento restritivo que perfilhou acerca do princípio ne bis in idem, violou por incorrecta interpretação e consequente aplicação, o disposto no artigo 29.º n.º 5 da CRP, bem como o preceituado nos artigos 375.º, 256.º do CP, e ainda o disposto no artigo 379.º n.º 1 al. c) (parte final) do Código de Processo Penal, posto que conheceu de factos que não podia tomar conhecimento, conduzindo assim à própria nulidade do aqui mencionado acórdão, a qual aqui se invoca para todos os efeitos legais.
62. Por outro lado, ainda que não proceda a aqui invocada excepção de caso julgado, certo é que, a prova produzida em julgamento é absolutamente insuficiente para dita a condenação arguida quanto aos factos que lhe são imputados, posto que:
63. Do depoimento da testemunha Dr., o qual se encontra gravado no respectivo suporte técnico (gravação áudio – início: 00:00:01 terminus: 00:29:20, h 10:50:33 às 11:19:53) e conforme Acta de julgamento de 06/10/2009, não vemos em que medida pudesse o Tribunal formar a sua convicção quanto aos factos que nestes autos foram imputados à arguida e pelos quais veio a mesma a ser condenada.
64. De tal depoimento resulta apenas que o mesmo fez a dita auditoria, mas tal não nos pode conduzir à culpabilidade da arguida quanto à prática de tais factos.
65. Ora, o que se conclui de tal depoimento é que a referida testemunha 'formou a sua convicção' quanto a tais factos, essencialmente, senão mesmo apenas em declarações que em sede de auditoria a arguida prestou perante a mesma.
66. Posto que, e como facilmente se alcança da simples audição de tal depoimento, o mesmo por várias vezes refere que teve conhecimento de tais factos (não obstante ter feito tal auditoria e elaborado tais relatórios) porquanto em declarações formais prestadas perante o mesmo pela arguida, por esta foi-lhe dito que houvera praticado tais factos.
67. Por outro lado, e quanto aos ditos selos de validação/quitação que segundo o acórdão condenatório teriam sido usados pela arguida para adulterar liquidações/impostos, nunca o mesmo foi capaz de responder convictamente, que os mesmos só pela arguida poderiam ser usados.
68. Por outro lado, e ainda em relação aos ditos selos de validação, constata-se do depoimento da citada testemunha e em função da prova documental junta aos autos, que nunca a rubrica aposta nos mesmos alguma vez foram objecto de prova pericial a fim de aquilatar-se a sua autoria.
69. Assim sendo, não vemos em que medida, à excepção dos relatórios que foram elaborados por tal testemunha (os quais, nunca poderiam confirmar a autoria de tais factos, não fora as declarações ilegalmente prestadas pela arguida perante o mesmo, em sede de auditoria) pudessem fundamentar e consequentemente alicerçar igualmente a convicção do Tribunal a quo.
70. Porquanto, e desde logo, embora o tribunal a quo não mencione tal facto, certo é quanto a nós que a ter baseado também a sua convicção no depoimento de tal testemunha, acabou por valorar declarações proibidas de tal testemunha, não só por no seu depoimento a referida testemunha refere que também teve conhecimento de tais factos porque a arguida em declarações formais perante a mesma prestadas, assim o confirmou, e reproduziu tal depoimento em julgamento,
71. Mas também, porque do relatório elaborado por tal testemunha (Parecer) consta reprodução de declarações prestadas pela arguida, como facilmente se alcança de fls. 5 dos autos principais, e que o Tribunal se bem não refere tal facto, a verdade porém é considerou tal relatório na formação da sua convicção, tal como resulta da sua motivação da decisão de facto (cf. fls. 474) onde também refere que teve em consideração os relatórios constantes de fls. 4 a 44 dos autos principais.
72. Pelo que, ao ter valorado tais declarações da arguida e reproduzidas em julgamento pela citada testemunha, violou o Tribunal a quo o disposto no artigo 356.º n.º 7 (2.ª parte) do CPP, posto que valorou declarações legalmente proibidas, e por conseguinte violou igualmente o preceituado no artigo 379.º n.º 1 al. c) (parte final) e ainda o preceituado no artigo 125.º, ambos do CPP e artigo 38.º n.º 8 da CRP.
73. Quanto ao depoimento prestado pela testemunha José Delfino Vital o qual se encontra gravado no respectivo suporte técnico (gravação áudio – início: 00:00:01 terminus: 00:24:14, h 11:20:04 às 11:44:19) e conforme Acta de julgamento de 06/10/2009, resulta e segunda tal testemunha, que nunca presenciou quaisquer factos praticados pela arguida.
74. Apenas referiu (e para aquilo que ora interessa) quanto aos selos de validação/liquidação de impostos que só poderia ser arguida a ter adulterado os mesmos, porquanto tais selos são diariamente distribuídos aos funcionários das respectivas caixas de cobrança.
75. Todavia, também mencionou que ao fim do dia, os ditos selos que eram distribuídos pela manhã a todos os funcionários, eram guardados/depositados em 'Caixa Forte” existente nas instalações do respectivo serviço de Finanças.
76. E questionado sobre o facto se qualquer outro funcionário aí a trabalhar poderia ter igualmente acesso a tais selos, pelo mesmo foi dito que sim, ou seja, perante tal factualidade e não obstante a sua convicção que só poderia ter sido a arguida a adulterar tais selos, o Tribunal a quo teria que ficar necessariamente na dúvida quanto à insuficiência de tal depoimento para igualmente formar a sua convicção quanto aos factos pelos quais a arguida vinha acusada, ao que sempre acresceria a falta de prova pericial que não foi feita à rubrica aposta em tais selos, o que também ditaria a absolvição da arguida, assim violou o Tribunal a quo o princípio da livre apreciação da prova, plasmado no artigo 127.º do CPP.
77. Do depoimento da testemunha A, o qual se encontra gravado no respectivo suporte técnico (gravação áudio – início: 00:00:01 terminus: 00:11:35, h 11:44:21 às 11:55:57) e conforme Acta de julgamento de 06/10/2009, resulta e segunda tal testemunha, que nunca presenciou quaisquer factos praticados pela arguida.
78. Na verdade, e pese embora esta testemunha ter mencionado que não era a sua assinatura que se encontrava aposta no termo de adesão cuja cópia consta de fls. 249 dos autos principais, facto é que em julgamento, e não obstante ter dito que reconhecia a arguida, afirmou que nunca tinha tratado de quaisquer assuntos fiscais, incluindo o referido termo de adesão com a arguida. Mais referindo que só tratou de tal assunto com a testemunha C.
79. É certo que em relação à assinatura aposta em tal documento (Termo de Adesão) foi feita prova pericial, da qual resulta ser muito provável que a mesma seja da autoria da arguida, mas resulta também do depoimento de tal testemunha que a mesma nunca tratou de quaisquer assuntos fiscais com a arguida, após ter dito que reconhecia a arguida do serviço de finanças.
80. Assim, e não obstante tal prova pericial, certo é que o Tribunal a quo, perante tal depoimento, deveria afastar desde logo tal meio de prova, e ao não fazê-lo, violou por errada interpretação e consequente aplicação, o princípio da livre apreciação da prova, posto que atendendo a tal depoimento, o Tribunal a quo não poderia pois formar a sua convicção quanto aos factos que eram imputados à arguida.
81. Do depoimento da testemunha D, o qual se encontra gravado no respectivo suporte técnico (gravação áudio – início: 00:00:01 terminus: 00:24:23, h 11:55:58 às 12:20:22) e conforme Acta de julgamento de 06/10/2009, resulta e segunda tal testemunha, que nunca presenciou quaisquer factos praticados pela arguida, apenas referiu que tais selos de validação apenas poderiam ser usados pela arguida.
82. Ora, também com base em tal depoimento não vemos em que medida pudesse o Tribunal a quo formar a sua convicção, posto que segundo a testemunha (colega de serviço) B, tais selos eram ao fim do dia depositados em cofre existente nos respectivos serviços, e que qualquer outro funcionário aos mesmos poderia ter acesso.
83. Assim, considera a arguida que o depoimento desta testemunha igualmente se mostra insuficiente para a formação da convicção do Tribunal a quo, e que ao valorá-lo nos termos em que o fez, violou igualmente o princípio da livre apreciação da prova (artigo 127.º do CPP).
84. Por fim, não vemos em que medida o Tribunal a quo considerou provado o facto relativo à contribuinte fiscal M, conforme resulta do Ponto 20 dos factos dados por provados, posto que nem tal testemunha foi ouvida em julgamento, posto que nem tal resulta de qualquer acta de audiência de discussão e julgamento, nem outra prova foi feita a esse respeito, nem a tal factualidade resulta igualmente da respectiva motivação da decisão de facto.
85. Pelo que, e quanto a tal facto, violou o Tribunal a quo o disposto no artigo 379.º n.º 1 al. c) do CPP.
Termos em que, e nos demais de Direito que Vossas Excelências doutamente suprirão, deverá ser julgada procedente, por provada a aqui invocada excepção de caso julgado, com as devidas consequências legais, ou se assim não se entender, deverá o douto acórdão condenatório de que ora se recorre ser revogado, em face à manifesta insuficiência de prova em que alicerçou o Tribunal a quo para condenar a arguida quanto aos factos que lhe eram imputados, vindo a final a arguida a ser absolvida de tais factos, fazendo-se, assim, a habitual e necessária justiça».

3 – O Ministério Público respondeu à motivação apresentada defendendo a improcedência do recurso (fls. 544 a 549).

4 – Esse recurso foi admitido pelo despacho de fls. 550.

5 – A Sr.ª procuradora-geral-adjunta emitiu o parecer de fls. 557 a 560 no qual sustentou que o recurso não merecia provimento.

6 – Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

II – FUNDAMENTAÇÃO
7 – Uma vez que o recurso interposto pela arguida é manifestamente improcedente, o tribunal limitar-se-á, nos termos dos n.ºs 1, alínea a), e 2 do artigo 420.º do Código de Processo Penal, a especificar sumariamente os fundamentos da decisão.

8 – A recorrente suscita, como questão prévia, a existência de um caso julgado absolutório que impediria a apreciação dos factos que lhe foram imputados nos autos principais e no processo a eles apenso, pelos quais foi condenada em 1.ª instância.
Não tem, porém, manifestamente, qualquer razão.
Se analisarmos a acusação proferida no processo com o NUIPC 143/06.7TAFUN (fls. 447 a 456), da qual ela veio a ser absolvida por sentença proferida em 11 de Janeiro de 2008 (fls. 386 a 392), verificamos que os factos que nela lhe eram imputados, embora integrando tipos de crime com o mesmo “nomen iuris”, são, na sua identidade histórica , completamente diferentes dos que constituem o objecto deste processo.
Na verdade, a arguida estava aí acusada de, entre Julho de 2004 e Maio de 2005, ter vendido 150 dísticos do Imposto Municipal sobre Veículos tendo-se apoderado do dinheiro pago pelos contribuintes e de ter rasurado diversos formulários do Modelo 11, o que constitui comportamento diverso daquele por que foi agora condenada.
Não existe, por isso, identidade entre os factos que constituem o objecto dos dois processos, razão pela qual o princípio “ne bis in idem” não impede o julgamento e subsequente condenação nestes autos.

9 – Não é pelo facto de o Ministério Público ter qualificado aqueles factos, cuja prática pela arguida não se veio a provar, como integrando um crime continuado de peculato e um crime de falsificação de documentos ou pela circunstância de na sentença recorrida se ter considerado que as várias apropriações de dinheiro constituíam um único crime continuado de peculato que o Estado estava impedido de perseguir e punir estes últimos factos, que são naturalisticamente autónomos e que foram praticados pela arguida em momentos distanciados no tempo, quando nada apontava nem aponta no sentido de que os poderes cognitivos do tribunal de 1.ª instância que julgou aquele outro processo se pudessem ter estendido aos factos que constituem o objecto destes autos.
Por isso, mesmo para quem, não obstante a nova redacção dada pela revisão de 2007 ao n.º 2 do artigo 79.º do Código Penal, ainda sustente a posição de Eduardo Correia quanto à força consumptiva do caso julgado em caso de crime continuado , a dimensão processual do princípio “ne bis in idem” não impedia a prolação desta condenação.
Assim, pelo sumariamente exposto, o recurso interposto pela arguida não poderia, quanto a esta questão, deixar de ser julgado manifestamente improcedente.

10 – Para além de ter suscitado, como questão prévia, a existência de um caso julgado absolutório que impediria um novo julgamento dos factos imputados neste processo, a arguida manifestou discordar da decisão de facto proferida na 1.ª instância e ter a intenção de a impugnar.
Acontece, porém, que, para esse efeito, a recorrente deveria ter dado cumprimento ao disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, o que manifestamente não fez.
Não só não indicou os concretos pontos de facto que considerava incorrectamente julgados – alínea a) do n.º 3 do citado artigo 412.º – como não indicou as concretas passagens em que se fundava a impugnação – parte final do n.º 4 do mesmo preceito legal.
Limitou-se a indicar, de uma forma genérica, como objecto da discordância, os pontos 1 a 32 da matéria de facto provada, que são todos os relativos à questão da culpabilidade, e a fazer uma menção também genérica aos depoimentos prestados na audiência, a uma perícia realizada e a alguns documentos valorados pelo tribunal.
Mesmo que tais deficiências viessem a ser corrigidas na sequência de convite efectuado para esse efeito, nos termos do n.º 3 do artigo 417.º do Código de Processo Penal, sempre haveria que dizer que esse fundamento do recurso não poderia, de forma alguma, proceder porque a arguida pareceu ignorar, por completo, a fundamentação da decisão de facto elaborada pelo tribunal, não tendo feito qualquer esforço para rebater os argumentos nela utilizados. De resto, mesmo do ponto de vista da recorrente, não existem provas que imponham decisão diversa da proferida. A arguida afirma apenas que, a seu ver, as provas produzidas e examinadas em audiência não foram suficientes para que o tribunal de 1.ª instância pudesse ter proferido aquela decisão.
Ora, como se sabe, o Tribunal da Relação, porque não beneficia da imediação e da oralidade de que gozou a 1.ª instância, apenas pode alterar o decidido quanto à matéria de facto quando existirem provas que imponham decisão diversa da proferida, o que, nem na perspectiva da recorrente, acontece neste caso.
Por isso, não pode este tribunal deixar de julgar manifestamente improcedente, também quanto a esta questão, o recurso interposto, razão pela qual o mesmo deve ser rejeitado.

11 – Uma vez que o recurso deve ser rejeitado, a recorrente deve pagar uma importância entre 3 e 10 UC (n.º 3 do artigo 420.º do Código de Processo Penal).
Atendendo à situação económica da arguida e à complexidade do processo, julgo adequado fixar essa importância em 5 UC.

III – DISPOSITIVO
Face ao exposto, atento o disposto no artigo 417.º, n.º 6, do Código de Processo Penal revisto, decido:
a) Rejeitar, por ser manifestamente improcedente, o recurso interposto pela arguida X.
b) Condenar a arguida na sanção processual correspondente a 5 (cinco) UC.

2 – A recorrente reclamou dessa decisão para a conferência dizendo o seguinte:
1. «Conforme resulta da motivação e respectivas conclusões do recurso então apresentado neste Tribunal, a aqui recorrente, suscitou basicamente três questões que no seu entendimento não foram correctamente apreciadas e consequentemente decididas pelo Tribunal a quo.
2. A primeira questão ficou a dever-se à clara violação do princípio ne bis in idem, ou seja, o princípio de caso julgado, tendo assim o Tribunal a quo violado o disposto no art.º 29 n.º 5 da CRP, nos termos melhor expostos na citada motivação e conclusões do aludido recurso.
3. A segunda questão, e razão também pela qual a arguida recorreu da decisão do Tribunal a quo, consistiu na violação do disposto no art.º 356 n.º 7 e consequente violação do preceituado no art.º 38 n.º 8 da CRP, atendendo que no seu entendimento, o referido Tribunal valorou declarações legalmente proibidas, tudo conforme melhor se alcança da motivação e respectivas conclusões do já aqui identificado recurso.
4. A terceira questão e motivo de apresentação de tal recurso ficou a dever-se à incorrecta valoração, i.e., erro na apreciação da matéria de facto que o Tribunal a quo fez dos depoimentos apresentados pelas testemunhas indicadas pela douta acusação pública, como igualmente consta da motivação e conclusões do recurso acima mencionado.
5. O Ex.mo Senhor Dr. Juiz Desembargador, Relator no recurso então apresentado pela arguida, tendo considerado o mesmo como manifestamente improcedente, proferiu douta decisão sumária, através da qual, foi tal recurso pura e simplesmente rejeitado, na primeira parte invocando fundamentos com os quais a arguida manifestamente discorda e na segunda parte, pecando totalmente por clara e manifesta falta de pronúncia e consequente ausência de fundamentação, quer de facto, quer de direito.
6. Vejamos, quanto à 1.ª questão relacionada com a violação de caso julgado, a qual também foi julgada sumariamente improcedente, razão pela qual, também justifica a presente reclamação para a conferência:
6.1. Da aludida decisão sumária, conclui-se e segundo o entendimento perfilhado pelo Ex.mo Senhor Juiz Desembargador que não se verifica a excepção de caso julgado, posto que e ainda de acordo com tal entendimento, entre os factos pelos quais a arguida foi acusada - e posteriormente absolvida no âmbito do processo n.º 143/06.7TAFUN (fls. 447 a 456) e os factos que lhe são imputados nos presentes autos (sentença proferida a fls. 386 a 392) – não se verifica 'identidade histórica'.
6.2. Assim e em conformidade com tal entendimento, considerou a aludida decisão sumária, que aqueles primeiros factos (Processo n.º 143/06.7TAFUN), 'embora integrando tipos de crime com o mesmo nomen iuris são, na sua identidade histórica, completamente diferentes dos que constituem o objecto do processo”.
6.3. Como igual e facilmente se conclui da citada decisão sumária, tal entendimento alicerçou-se (mas quanto a nós, e sempre salvo o devido respeito por melhor opinião, numa interpretação manifestamente restritiva do princípio ne bis in idem) na ideia de que os factos julgados naquele primeiro processo consubstanciam 'comportamento diverso daquele por que foi a arguida agora condenada'.
6.4. Pelo que, e finalizando tal entendimento, considerou que 'não existe, por isso, identidade entre os factos que constituem o objecto dos dois processos' donde, e ainda segunda a referida decisão sumária, 'princípio ne bis in idem não impede o julgamento e subsequente condenação nestes autos'.
6.5. Mais tendo esgrimido argumento, segundo o qual, 'estes últimos factos são naturalisticamente autónomos', posto que, e ainda segundo tal entendimento, 'tais factos foram praticados pela arguida em momentos distanciados no tempo, quando nada apontava nem aponta no sentido de que os poderes cognitivos do Tribunal de 1.ª Instância que julgou aquele outro processo se pudessem ter estendido aos factos que constituem o objecto destes autos'.
7. Ora, salvo o muito respeito por opinião diversa, e desde logo, pelo entendimento em que se baseou a douta decisão sumária, ora objecto de reclamação para a conferência, não podemos pois subscrever os argumentos aí invocados – desde logo – quanto à então invocada excepção de caso julgado e a consequente violação pelo Tribunal a quo do princípio ne bis in idem consagrado no art.º 29 n.º 5 da CRP.
7.1. E não pode a arguida recorrente conformar-se com tais argumentos, posto que os mesmos resultam e assim são consequência de um entendimento restritivo de tal princípio, e bem assim, de incorrecta interpretação quanto àquilo por que se deve entender crime diverso comportamento a fim de para aferir-se se poder aferir-se se in casu verifica-se ou não a aludida excepção de caso julgado.
7.2 Como substancialmente ficou explanado na motivação e conclusões do recurso, e que agora muito sumariamente voltamos a invocar – posto que do que aqui se trata é de uma reclamação e não de novo recurso – entre os factos pelos quais a arguida foi julgada e posteriormente absolvida no âmbito do processo 143/06.7TAFUN e factos ora postos em crise, verifica-se pois uma unidade de sentido, que não permite a cindibilidade e consequente separação de tais factos em ordem a permitir-se que a arguida fosse julgada pelos ditos factos novos.
7.3. Isso mesmo resulta de forma absolutamente clara, quer da factualidade quer do direito invocado no recurso então apresentado pela arguida, bem como, em face da jurisprudência aí invocada a propósito da excepção de caso julgado, nomeadamente, o ac. de 04/06/2008 proferido por este mesmo Venerando Tribunal e o ac. STJ de 15/03/2006, que sobre os quais, nem a decisão sumária se pronunciou.
7.4. Aliás, e mesmo que estivéssemos in casu perante a figura do caso julgado em caso de crime continuado, sempre a força consumptiva do mesmo se estenderia irremediavelmente aos novos factos pelos quais a arguida foi julgada, como bem refere o Ac. TRC de 14/01/2004 que aqui citamos, a saber:
A temática do crime continuado, situa-se numa das zonas mais inseguras e controversas da dogmática jurídico-penal, a da fronteira entre unidade e pluralidade de infracções – cfr. CAVALEIRO FERREIRA, Lições de Direito Penal, 1.º Vol., 1988, pag. 396 e segs.
Tais dificuldades avolumam-se ainda mais quando se pretende articular o referido conceito de crime continuado com o instituto do caso julgado.
Por outras palavras, a apreciação do efeito consuntivo do caso julgado reveste particular melindre quando estamos no âmbito da figura do crime continuado, para determinar quais os factos que integram a continuação criminosa que devem ser considerados como definitivamente julgados ou englobados no efeito de caso julgado de uma anterior decisão.
Ora 'renovar o procedimento criminal pela simples adição de qualquer elemento novo aos factos de que o arguido foi absolvido num processo anterior traria consigo a negação de toda a paz jurídica e a permanente possibilidade de sucessivos vexames do arguido como novos processos e julgamentos' – Cfr. Eduardo Correia, Unidade, cit., p. 407.
'Esta extensão do princípio ne bis in idem a todas as actividades da continuação tem ainda noutro aspecto a maior importância. Com efeito, desaparecendo o perigo de processos futuros, pode o juiz deixar praticamente de apreciar cada uma dessas actividades em especial, bastando que considere aquelas capazes de dar uma ideia da gravidade do crime - princípio, meio e fim - e que permitam fixar-lhe a pena correspondente. Desta maneira consegue-se evitar na prática certos processos gigantescos e morosos, com os quais nada ganha a justiça. E este é justamente um outro benefício do conceito de crime continuado que, de um ponto de vista processual, aconselha e requer a sua elaboração e reconhecimento' – ob. cit., p.
7.5. Sendo certo em todo o caso, que não se pode falar da existência de crime continuado entre os novos factos e os aqueles factos pelos quais a arguida já fora julgada, posto que por estes a arguida veio a ser efectivamente absolvida.
7.6. Logo, e salvo melhor opinião, não faz qualquer sentido trazer-se à colação, na presente questão, a figura do caso julgado no crime continuado, o qual, segundo o Tribunal a quo, apenas se verifica entre os supostos factos praticados pela arguida e que lhe foram imputados no novo processo.
7.7. Donde, a decisão sumária ao não ter entendido que in casu – conforme melhor explanado em sede recurso – verificava-se, como aliás, verifica-se a figura do caso julgado, com as consequência que daí decorrem, perfilhou uma interpretação restritiva do princípio ne bis in idem consagrado no art.º 29 n.º 5 da CRP, incorrendo assim a mesma em clara violação de tal normativo legal.
8. Quanto à 2.ª questão colocada em sede de recurso (e razão também pela qual a arguida recorreu da decisão do Tribunal a quo, consistiu na violação do disposto no art.º 356 n.º 7 e consequente violação do preceituado no art.º 38 n.º 8 da CRP, atendendo que no seu entendimento, o referido Tribunal valorou declarações legalmente proibidas, tudo conforme melhor se alcança da motivação e respectivas conclusões do já aqui identificado recurso) não pode pois a recorrente conformar-se com a douta decisão sumária, ora reclamada.
8.1. Posto que sobre tal questão nem tão-pouco a aludida decisão sumária se pronunciou, ou seja, a tal respeito, verifica-se pois manifesta falta de pronúncia e consequente falta de fundamentação ainda que sumária, assim tendo incorrida a mesma em flagrante violação do disposto no art.º 97 n.º 5 do CPP, padecendo a mesma de igual violação do preceituado no art.º 205 da CRP.
9. A terceira questão e motivo de apresentação de tal recurso ficou a dever-se à incorrecta valoração, i.e., erro na apreciação da matéria de facto que o Tribunal a quo fez dos depoimentos apresentados pelas testemunhas indicadas pela douta acusação pública, como igualmente consta da motivação e conclusões do recurso acima mencionado.
9.1. Ora, sobre tal questão, não pode também a recorrente conformar-se com o entendimento perfilhado em tal decisão sumária, i.e., quanto ao aí invocado não cumprimento do disposto nos n.ºs 3 e 4 do art.º 412 do CPP.
9.2. Entende a recorrente que tal apontado vício não existe quanto à matéria de facto impugnada no recurso então apresentado neste Venerando Tribunal, atendendo que a mesma impugnou toda essa factualidade de forma concreta e específica, demonstrando aliás, a exigência de outras provas que o Tribunal a quo não valorou, e que de per se teriam ditado a absolvição da arguida quanto aos factos que lhe foram imputados nestes autos.
9.3. Sem prescindir,
Mas mesmo que assim fosse, ou seja, ainda que se entendesse que a recorrente não teria dado cumprimento ao disposto no citado normativo legal, o certo é que não poderia ainda assim, ter-se deixado de convidar a recorrente para proceder ao aperfeiçoamento de tal apontado vício.
9.4. Razão pela qual, entende a recorrente que a decisão sumária aqui proferida, violou igualmente o disposto no art.º 417 n.º 3 do CPP, cuja nova redacção (conferida pela Lei n.º 48/2007 de 29 de Agosto) mais não é do que a consagração de vários acórdãos do TC a este respeito, nomeadamente, o ac. TC de 337/2000 (acórdão com força obrigatória geral).
9.5. Donde, salvo melhor opinião, também neste ponto em particular, a douta decisão sumária que rejeitou o recurso apresentado pela recorrente, encontra-se ferida de ilegalidade, por clara violação do disposto no art.° 417 n.° 3 do CPP e ferida está igualmente de inconstitucionalidade por violação das garantias processuais da arguida, em face do disposto no art.º 32 n.º 1 da CRP.
9.6. Não procedendo em nossa opinião, o argumento segundo o qual, mesmo que tivesse havido lugar a tal convite (art.º 417 n.º 3 do CPP) ainda assim, seria o recurso julgado improcedente, como refere a douta decisão sumária.
9.7. Posto que, em nosso entendimento, quando o recorrente não dê cumprimento efectivo ao disposto no art. 412 n.ºs 3 e 4 (o que para nós, nem foi a hipótese aqui ocorrida) o Tribunal ad quem, não podendo assim conhecer a matéria de facto impugnada (art. 412 n.ºs 2 a 5 do CPP) deverá convidar o recorrente a aperfeiçoar as respectivas conclusões, o que aqui não aconteceu.
9.8. Donde, dizer-se que mesmo na hipótese de a recorrente ser convidada a aperfeiçoar a matéria de facto impugnada no aludido recurso, ainda assim o mesmo sempre seria julgado improcedente, em face das razões aí apontadas, é entendimento, que salvo melhor opinião, traduz-se em manifesta contradição, tendo em atenção o disposto no art.° 417 n.° 3 do CPP.
III
Concluindo:
10.º
Não pode a arguida recorrente conformar-se com os argumentos que foram explanados na douta decisão sumária que rejeitou o recurso então apresentado nos presentes autos, posto que os mesmos resultam e assim são consequência de um entendimento restritivo do princípio ne bis in idem, e bem assim, de incorrecta interpretação quanto àquilo por que se deve entender crime diverso comportamento a fim de para aferir-se se poder aferir-se se in casu verifica-se ou não a aludida excepção de caso julgado.
11.º
Como substancialmente ficou explanado na motivação e conclusões do recurso, e que agora muito sumariamente voltamos a invocar – posto que do que aqui se trata é de uma reclamação e não de novo recurso – entre os factos pelos quais a arguida foi julgada e posteriormente absolvida no âmbito do processo 143/06.7TAFUN e factos ora postos em crise, verifica-se pois uma unidade de sentido, que não permite a cindibilidade e consequente separação de tais factos em ordem a permitir-se que a arguida fosse julgada pelos ditos factos novos.
12.º
Isso mesmo resulta de forma absolutamente clara, quer da factualidade quer do direito invocado no recurso então apresentado pela arguida, bem como, em face da jurisprudência aí invocada a propósito da excepção de caso julgado, nomeadamente, o ac. de 04/06/2008 proferido por este mesmo Venerando Tribunal e o ac. STJ de 15/03/2006, que sobre os quais, nem a decisão sumária se pronunciou.
13.º
Aliás, e mesmo que estivéssemos in casu perante a figura do caso julgado em caso de crime continuado, sempre a força consumptiva do mesmo se estenderia irremediavelmente aos novos factos pelos quais a arguida foi julgada, como bem refere o Ac. TRC de 14/01/2004.
14.º
Sendo certo em todo o caso, que não se pode falar da existência de crime continuado entre os novos factos e os aqueles factos pelos quais a arguida já fora julgada, posto que por estes a arguida velo a ser efectivamente absolvida.
15.º
Logo, e salvo melhor opinião, não faz qualquer sentido trazer-se à colação, na presente questão, a figura do caso julgado no crime continuado, o qual, segundo o Tribunal a quo, apenas se verifica entre os supostos factos praticados pela arguida e que lhe foram imputados no novo processo.
16.º
Donde, a decisão sumária ao não ter entendido que in casu - conforme melhor explanado em sede recurso – verificava-se, como aliás, verifica-se a figura do caso julgado, com as consequência que daí decorrem, perfilhou uma interpretação restritiva do princípio ne bis in idem consagrado no art.º 29 n.º 5 da CRP, incorrendo assim a mesma em clara violação de tal normativo legal.
17.º
Quanto à 2.ª questão colocada em sede de recurso (e razão também pela qual a arguida recorreu da decisão do Tribunal a quo, consistiu na violação do disposto no art.º 356 n.º 7 e consequente violação do preceituado no art.º 38 n.º 8 da CRP, atendendo que no seu entendimento, o referido Tribunal valorou declarações legalmente proibidas, tudo conforme melhor se alcança da motivação e respectivas conclusões do já aqui identificado recurso) não pode pois a recorrente conformar-se com a douta decisão sumária, ora reclamada.
18.º
Posto que sobre tal questão nem tão-pouco a aludida decisão sumária se pronunciou, ou seja, a tal respeito, verifica-se pois manifesta falta de pronúncia e consequente falta de fundamentação ainda que sumária, assim tendo incorrida a mesma em flagrante violação do disposto no art.º 97 n.º 5 do CPP, padecendo a mesma de igual violação do preceituado no art.º 205 da CRP.
19.º
Também não pode a recorrente conformar-se com o entendimento perfilhado em tal decisão sumária, i.e., quanto ao aí invocado não cumprimento do disposto nos n.ºs 3 e 4 do art.º 412 do CPP.
20.º
Entende a recorrente que tal apontado vício não existe quanto à matéria de
facto impugnada no recurso então apresentado neste Venerando Tribunal,
atendendo que a mesma impugnou toda essa factualidade de forma concreta e específica, demonstrando aliás, a exigência de outras provas que o Tribunal a quo não valorou, e que de per se teriam ditado a absolvição da arguida quanto aos factos que lhe foram imputados nestes autos.
21.º
Posto que ainda que assim fosse, ou seja, ainda que se entendesse que a recorrente não teria dado cumprimento ao disposto no citado normativo legal, o certo é que não poderia ainda assim, ter-se deixado de convidar a recorrente para proceder ao aperfeiçoamento de tal apontado vício.
22.º
Razão pela qual, entende a recorrente que a decisão sumária aqui proferida, violou igualmente o disposto no art.º 417 n.º 3 do CPP, cuja nova redacção (conferida pela Lei n.º 48/2007 de 29 de Agosto) mas não é do que a consagração de vários acórdãos do TC a este respeito, nomeadamente, o ac. TC de 337/2000 (acórdão com força obrigatória geral).
23.º
Donde, salvo melhor opinião, também neste ponto em particular, a douta decisão sumária que rejeitou o recurso apresentado pela recorrente, encontra-se ferida de ilegalidade, por clara violação do disposto no art.º 417 n.º 3 do CPP e ferida está igualmente de inconstitucionalidade por violação das garantias processuais da arguida, em face do disposto no art.º 32 n.º 1 da CRP.
Termos em que, em face do todo acima exposto, deverá a presente reclamação deferida, e em consequência, vir a ser proferido douto acórdão, que conheça afinal de toda a matéria invocada nas motivações e respectivas conclusões do recurso então apresentado pela arguida em relação ao acórdão condenatório proferido pelo Tribunal a quo, assim se concluindo pela absolvição da aqui recorrente e ora reclamante, devendo, em todo o caso, e se este Venerando Tribunal entender que se verificam os vícios a que alude o disposto no art.º 413 n.º 3 por referência o preceituado no art.º 412 n.ºs 3 e 4 do mencionado diploma legal, ser a recorrente - antes de ser proferido o respectivo acórdão - convidada a aperfeiçoar a matéria de facto impugnada, nos termos da 2.ª parte do disposto no art.º 417 n.º 3 do citado diploma legal».

II – FUNDAMENTAÇÃO
A questão do caso julgado
3 – De acordo com o n.º 5 do artigo 29.º da Constituição, «ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime».
Para determinar a extensão desta garantia constitucional importa, antes de mais, clarificar o sentido da expressão «prática do mesmo crime», o qual se deve obter «recorrendo aos conceitos jurídico-processuais e jurídico-materiais desenvolvidos pela doutrina do direito e processo penais» .
Para Cavaleiro de Ferreira «a identidade do facto tem de apreciar-se naturalisticamente, como facto concreto, real» . «Haverá caso julgado material quando se acusa em novo processo pela mesma acção, embora acrescida de novas circunstâncias, embora seja diferente o evento material que se lhe segue, embora seja diversa a forma de voluntariedade (dolo ou culpa)» .
Como se salienta na decisão sumária proferida, as acções por que a arguida foi condenada neste processo são completamente diferentes daquelas que lhe foram imputadas no processo que veio a terminar com a sua absolvição, razão pela qual, à luz deste critério, que é, quanto a nós, aquele que foi claramente adoptado pela revisão de 2007 do Código Penal, não existia qualquer caso julgado que obstasse ao novo julgamento.

4 – Mas mesmo que se sustentasse uma concepção normativa do objecto do processo e da extensão do caso julgado, a solução não seria diferente.
Para Eduardo Correia, que defende que existe uma coincidência entre os poderes de cognição do tribunal e a extensão do caso julgado, «o âmbito da identidade do facto processual só pode ser esgotantemente fixado pelo recurso a um método jurídico normativo, que parta antes de tudo da natureza teleológica e referencial a valores do próprio objecto do processo de que nunca é possível abstrair. Por outras palavras: fulcro da unidade do objecto processual há-de ser sempre a concreta e hipotética violação jurídico-criminal acusada. Só ela – em princípio – limita, por força do princípio acusatório, a actividade cognitiva do tribunal, que deve, como se disse, exercer-se esgotantemente e, portanto, alargar-se não só ao facto que no despacho de pronúncia ou equivalente se descreve, mas a tudo que com ele constitua uma unidade jurídica, a mesma infracção».
Acrescenta logo a seguir que, «deste modo, logo se vê que a solução do problema dos limites da unidade do objecto processual terá que socorrer-se dos critérios de distinção entre unidade e pluralidade de infracções que o direito substantivo fornece. Só quando estes mostrem que se está em face duma infracção autónoma e diversa da acusada cessa, pelo menos vistas as coisas de um certo lado, o poder e dever de cognição do tribunal» .
Pronunciando-se sobre hipóteses controvertidas, o mesmo autor sustenta que uma prévia absolvição pela prática de um crime continuado pode «vir também a importar a consunção do exercício da acção relativamente a factos nela não apreciados, sempre que num segundo processo se mostre que, verdadeiramente, as condutas por que se absolveu o arguido eram criminalmente relevantes e que entre elas e os novos factos existe uma relação de continuação tal que os polariza numa unidade» ou quando actividades diferentes das descritas se devessem «considerar como realizando justamente a mesma concreta ofensa de valores jurídico-criminais acusada» .
Mesmo à luz deste critério não se pode sustentar que os factos que constituem o objecto dos dois processos integram uma mesma infracção, desde logo porque as condutas a que um e outro se referem encontram-se espácio-temporalmente separadas e não existe qualquer homogeneidade na forma de execução das mesmas (artigo 30.º, n.º 2, do Código Penal).
Por isso, no que respeita à questão da existência de um anterior caso julgado que obstasse à instauração deste novo processo, à luz dos ensinamentos da doutrina mais conceituada neste país, não podia este tribunal ter decidido de forma diferente da constante da decisão sumária proferida.

5 – Acrescentemos apenas que, embora se trate de posição não aceite por Eduardo Correia, não nos deixa de impressionar uma outra linha de argumentação por ele exposta na citada obra.
Escreve este autor o seguinte:
«O crime continuado, por definição, supõe uma continuação de actividades criminosas. Ora se sucede que por sentença se consideram uma ou várias condutas como criminalmente inexistentes, fica com isso excluída a possibilidade de estas poderem considerar-se em qualquer relação de unidade com outras.
Deste modo, se, com base em actividades que não foram objecto do conhecimento do juiz num processo anterior que terminou pela absolvição do arguido, é proposta uma nova acção penal, nunca se poderá opor-lhe, com fundamento na unidade resultante de uma relação de continuação criminosa entre essas novas actividades e as apreciadas naquele processo, a excepção do caso julgado.
Na verdade, uma decisão no sentido de que certos factos estão numa continuação com aqueles por que o mesmo agente foi absolvido num processo anterior parece apenas possível esquecendo-se que todas as condutas que formam um crime continuado devem ser criminosas, ou admitindo que o segundo juiz tome nova posição sobre a natureza penal das actividades apreciadas no primeiro processo. Só nesta última hipótese, ou seja, convencendo-se o tribunal da existência e punibilidade dos factos por que o réu foi absolvido no processo anterior, se poderia efectivamente falar de continuação criminosa. Simplesmente, tal convicção vai de encontro ao que resulta da primeira sentença e, portanto, não pode ser afirmada sem ofensa do princípio do caso julgado» .

A questão da impugnação da decisão de facto
6 – A recorrente discorda também da decisão sumária proferida na parte em que ela se pronunciou sobre o recurso interposto quanto à matéria de facto.
Ora, salvo o devido respeito, afigura-se-nos que a recorrente, por um lado, incorre numa confusão, que é muito comum, entre a impugnação da decisão de facto e a mera invocação dos vícios a que se refere o n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal e, por outro, parte de uma interpretação incorrecta da alínea a) do indicado número do citado preceito . Por isso, constrói toda a sua argumentação com base na pretensa insuficiência da prova para ser proferida a decisão impugnada, valorando a força probatória cada um dos meios de prova indicados pelo tribunal na fundamentação e não fazendo a sua valoração conjunta.
Analisemos cada uma destas questões separadamente.

7 – Os poderes de cognição dos tribunais da relação abrangem a matéria de facto e a matéria de direito (artigo 428.º do Código de Processo Penal), podendo os recursos, sempre que a lei não restrinja a cognição do tribunal ou os respectivos poderes, ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida (n.º 1 do artigo 410.º do mesmo diploma).
Por isso, poderia a recorrente, uma vez que considerava ter existido erro na apreciação da matéria de facto, impugnar esse segmento da decisão.
Para tanto, deveria indicar os concretos pontos de facto que considerava incorrectamente julgados, as concretas provas que, em sua opinião, impunham decisão diversa e, sendo o caso, as provas que entendia deverem ser renovadas (artigo 412.º, n.º 3, do Código de Processo Penal).
Se o tivesse feito, os poderes de cognição do tribunal “ad quem” estender-se-iam à matéria de facto, o que levaria a que, se o recurso fosse, nessa parte, procedente, viesse a ser modificada a decisão quanto a ela tomada na 1.ª instância (artigo 431.º, alínea b), do Código de Processo Penal).
O recurso da matéria de facto, que se funda na existência de um erro de julgamento detectável pela análise da prova produzida e valorada na audiência de 1.ª instância e implica que o tribunal “ad quem” reaprecie essa prova, não se confunde com a mera invocação dos vícios da sentença enunciados no n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal , que devem resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras de experiência comum. Neste último caso, o objecto da apreciação é apenas a peça processual recorrida.
Demonstrada a existência desses vícios e a impossibilidade de, dada a sua verificação, se decidir a causa, o tribunal “ad quem” determina o reenvio do processo para um novo julgamento (artigos 426.º e 426.º-A do Código de Processo Penal).
No caso concreto, se analisarmos a motivação apresentada, verificamos que embora a recorrente manifeste discordar da decisão de facto proferida na 1.ª instância, não indicou os concretos pontos de facto que considerava incorrectamente julgados – alínea a) do n.º 3 do citado artigo 412.º – e não indicou as concretas passagens em que se fundava a impugnação – parte final do n.º 4 do mesmo preceito legal.
Limitou-se a indicar, de uma forma genérica, como objecto da discordância, os pontos 1 a 32 da matéria de facto provada, que são todos os relativos à questão da culpabilidade, e a fazer uma menção também genérica aos depoimentos prestados na audiência, a uma perícia realizada e a alguns documentos valorados pelo tribunal.
Essa deficiência não se nota apenas nas conclusões que extraiu da motivação mas existe também do corpo da mesma, razão pela qual um convite para o aperfeiçoamento das conclusões não a poderia suprir. Na verdade, constituindo as conclusões uma síntese da motivação não pode daquelas constar algo que nesta não tenha sido incluído.
De resto, dada a perspectiva que presidiu à elaboração da motivação, a recorrente esforçou-se por demonstrar que a prova produzida e examinada na audiência não era suficiente para alicerçar a condenação e não, como lhe era imposto, que tal prova impunha decisão diversa da proferida, o que é imprescindível para que o Tribunal da Relação, que não beneficia da imediação e da oralidade de que usufruiu a 1.ª instância, possa alterar a decisão de facto antes proferida.
Atendendo a esta situação, a formulação de um convite para o aperfeiçoamento das conclusões mais não era do que um acto inútil proibido por lei.

8 – Resta dizer que apenas competiria a este tribunal pronunciar-se sobre a prova tomada em consideração pela 1.ª instância, para averiguar, nomeadamente, se a convicção dos julgadores podia fundar-se nela (artigo 355.º e ss. do Código de Processo Pena), se houvesse que apreciar o recurso interposto sobre a matéria de facto, o que não era o caso.

9 – Pelo exposto, este tribunal mantém a decisão sumária antes proferida.

10 – Uma vez que a arguida decaiu na reclamação que apresentou é responsável pelo pagamento da taxa de justiça e dos encargos a que a sua actividade deu lugar (artigos 513º e 514º do Código de Processo Penal).
De acordo com o disposto no artigo 84º do Código das Custas Judiciais a taxa de justiça varia entre 1 e 5 UC.
Tendo em conta a situação económica da arguida e a complexidade do processo, julga-se adequado fixar essa taxa em 3 UC.

III – DISPOSITIVO
Face ao exposto, acordam os juízes da 3.ª secção deste Tribunal da Relação em:
a) Indeferir a reclamação apresentada pela recorrente X.
b) Condenar a recorrente no pagamento de taxa de justiça que se fixa em 3 (três) UC.


Lisboa, 28 de Abril de 2010

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(Carlos Rodrigues de Almeida)

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(Horácio Telo Lucas)
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