Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa
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    Jurisprudência da Relação Criminal
Assunto    Área   Frase
Processo   Sec.                     Ver todos
 - ACRL de 26-03-2009   Falso testemunho. Denúncia caluniosa. Difamação.
I. A ausência de dúvida razoável pressuposta na condenação consiste na exclusão da verosimilhança da inocência: não há motivos afirmativos da inocência ou, havendo-os, são afastados pelo julgador por falta de credibilidade racional.
II. A circunstância de os arguidos terem sido repetidamente perguntados sobre a matéria, durante um largo período de tempo, sendo sabido que quanto mais vezes uma testemunha fala sobre o mesmo facto, mais dele de afasta (da sua realidade objectiva), pela reelaboração mental do mesmo que, consciente ou inconscientemente, vai fazendo; o facto de as perguntas serem feitas por pessoas diferentes e em momentos processuais diferentes, e ainda a circunstância de os depoimentos terem sido transcritos por quem os tomou, resultando da experiência comum que quem transcreve não o faz nos seus precisos termos, procedendo a uma síntese, conforme o que lhe parece se relevante, e eliminando aquilo que julga não ter importância – todos estes condicionalismos contribuem de forma decisiva para que as declarações transcritas contenham imprecisões, contradições, omissões e inconsistências, de tal forma que estranho seria se não padecessem destas características, mas desse facto não resulta, por si só, que os arguidos mentiram.
IV.Pelo contrário, outros elementos apontam no sentido de que os factos relatados pelos arguidos não são falsos: os exames relevadores de que foram objecto passivo de coito anal repetido; as perícias sobre a sua personalidade, que admitem a veracidade global dos relatos e os reconhecimentos, por ocasiões diferentes e isoladamente, dos locais onde terão ocorrido tais abusos.
V.Face aos elementos probatórios disponíveis, subsistiria em julgamento uma dúvida fundamental insanável sobre se os arguidos tinham mentido, o que, por aplicação do princípio in dúbio pro reo levaria que tal se desse como não provado. Era, pois, muito mais provável darem-se tais factos como não provados do que como provados – o que eliminaria desde logo a possibilidade de pronunciar os arguidos pelos crimes de falso testemunho e de denúncia caluniosa.
VI.No crime de difamação, o bem jurídico típico é a honra e consideração da vítima (numa concepção dual fático-normativa) sendo também esse o bem jurídico típico no crime de denúncia caluniosa. Por essa razão, sempre que alguém imputar a outrem, perante autoridade ou publicamente, com intenção de que contra ele se instaure procedimento, factos ofensivos da sua honra ou consideração, com consciência da falsidade da imputação, comete o crime de denúncia caluniosa, p. e p. pelo artº 365º do CP, em concurso aparente com o crime de difamação, p. e p. pelo artº 180º do CP, sendo este consumido por aquele.
VII.Na verdade, estando o bem jurídico protegido pelo tipo do artº 180º do CP (difamação) também protegido pelo tipo de artº 365º do CP (denúncia caluniosa), sendo que este tipo protege ainda outros bens jurídicos, para além de que este é mais gravemente punido de que aquele, há que concluir que, quando se verifiquem, concomitantemente, os restantes elementos do tipo de difamação e da denúncia caluniosa, este tipo consome aquele.
Proc. 7.277/08-9 9ª Secção
Desembargadores:  Abrunhosa de Carvalho - Cid Geraldo - -
Sumário elaborado por Ivone Matoso
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Nos presentes autos de recurso, acordam, em conferência, os Juízes da 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
No 4º Juízo do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, despacho de 06/05/2008, constante de fls. 2004 a 2009, foi decidido não pronunciar os Arg. 1, 2, 3, 4, 5, 6 e 7, com os restantes sinais dos autos (cf. TIR , respectivamente, de fls. 863, 868, 881, 887, 892, 897 e 967), pelos crimes de difamação e injúria, p. e p. pelos art.º 180° e 181° do CP , de falsidade de testemunho, p. e p. pelo art.º 360° do CP, e de denúncia caluniosa, p. e p. pelo art.º 365° do CP.
Findo o inquérito, o MP , prolatou o despacho de fls. 1403 a 1417, de 11/10/2005, no qual determina o arquivamento dos autos, relativamente aos crimes de falsidade de testemunho e de denúncia caluniosa, e ordena a notificação do Assistente para, querendo, nos termos do disposto no art.º 285º/1 do CPP , deduzir acusação particular, relativamente aos crimes de difamação e injúria.
Perante tal despacho, o Assistente, com os restantes sinais dos autos (cf. fls. 612), deduziu a acusação particular de fls. 1440 a 1461, contra os Arg. supra identificados, acusando cada um deles da prática de um crime, na forma continuada, de difamação e injúria, p. e p. pelos art.º 180° e 181° do CP, e, pelo requerimento de fls. 1480 a 1513, pediu a abertura de instrução, relativamente aos crimes de falsidade de testemunho e de denúncia caluniosa.
Por sua vez, os Arg. 1, 2, 3, 4, 5 e 6 requereram a abertura de instrução, relativamente aos crimes de difamação e injúria, de cuja prática o Assistente os acusou.
Finda a instrução, foi proferido o despacho de não pronúncia supra referido.
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Inconformado, veio o Assistente interpor recurso de tal despacho, com os fundamentos constantes da motivação de fls. 2083 a 2126, com as seguintes conclusões:
A)“O presente recurso vem interposto da decisão instrutória de fls. 2004 a 2009 dos presentes autos, que não pronuncia os Arguidos A e outros pelos crimes de denúncia caluniosa, falsidade de testemunho e difamação.
B)Na verdade, através da leitura dos depoimentos citados nos arts. 5º a 115º do pressente recurso, verifica-se que as contradições próprias e as contradições com as versões fantasiosas dos restantes Arguidos, são muito evidentes e retiram qualquer credibilidade aos referidos depoimentos.
C)Assim, estão preenchidos os pressupostos objectivos do crime de denúncia caluniosa, p. e p. pelo art. 365º CP, os Arguidos, perante autoridade, denunciaram o Recorrente de crimes de abuso sexual de menores, com a intenção que contra ele fosse instaurado procedimento,
D)Ao que acresce a agravação do nº 4 do referido artigo, na medida em que em consequência das declarações produzidas, o Recorrente ficou privado da sua liberdade durante 4 meses, dado que ficou sujeito à medida de coacção de prisão preventiva.
E)Estão também preenchidos os elementos subjectivos do referido tipo de crime, dado que os Arguidos tinham consciência da falsidade da sua imputação, reiterando a falsidade das imputações durante, pelo menos, os anos de 2003 e 2004.
F)Estão também preenchidos os pressupostos objectivos do crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo art. 360º CP, na medida em que os Arguidos, na qualidade de testemunhas, perante o tribunal e funcionário competente (Polícia Judiciária, Ministério Público e, mais tarde, Juiz de Instrução Criminal) para receber os referidos depoimentos como meio de prova, prestaram depoimentos falsos.
G)Estão também preenchidos os elementos subjectivos do referido crime, na medida em que os Arguidos tinham consciência que as suas declarações eram objectivamente falsas.
H)Releva que a falsidade se refira ao essencial da declaração, o que se verifica no caso sub judice.
I)Andou bem a decisão recorrida ao entender que estavam preenchidos os pressupostos do crime de difamação, mas o mesmo já não se pode afirmar relativamente à inclusão de uma causa de exclusão da ilicitude e ao interesse público legítimo.
J)Efectivamente, o interesse público legítimo e o exercício de um direito, só existem se os depoimentos forem integralmente verdadeiros e completos, o que não se verifica nos depoimentos acima descritos, pelo que a referida causa de exclusão da ilicitude não pode produzir qualquer efeito.”.
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O Ex.m.º Magistrado do Ministério Público, pela peça de fls. 2205 a 2208, respondeu, pugnando pela confirmação integral do despacho recorrido.
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Responderam os Arg. A, nos termos de fls. 2198 a 2204, B, nos termos de fls. 2224 a 2236, e os restantes Arg., nos termos de fls. 2238 a 2248.
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Neste Tribunal o Ex.m.º Procurador-Geral Adjunto, acompanhando a resposta do MP na primeira instância, pugnou pela improcedência do recurso (fls. 2236 a 2269).
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A esta posição responderam o Assistente (fls. 2328 a 2326) e o Arg. A (fls. 2278 a 2281), mantendo, no essencial as posições já assumidas nos autos.
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Com estas respostas juntaram o Arg. A e o Assistente, respectivamente, os documentos de fls. 2281 a 2237 (um artigo científico subscrito pelo Assistente, na revista dos Instituto de Ciências Sociais/Instituto da Juventude, onde, na nota 11 de fls. 46, o Assistente afirma ter entrevistado alguns jovens da Casa Pia, em 1992) e 2337 a 2357 e 2358 a 2458 (notificação do Assistente do despacho de arquivamento proferido no inquérito n.º 1774/04.5TDLSB, relativo à forma como o Assistente tomou conhecimento de que era suspeito no “Processo Casa Pia”, e sentença que condenou o Estado a pagar uma indemnização ao Assistente, por ter estado sujeito a prisão preventiva no “Processo Casa Pia”).
Todos os Arg., com excepção do A, se vieram opor à junção requerida pelo Assistente (cf. fls. 2467 e ss e 2473 e ss.).
A decisão instrutória baseia-se na análise de toda a prova produzida durante o inquérito e até ao encerramento da instrução (art.º 308º/1 do CPP).
Por isso, no recurso interposto de despacho de não pronúncia o tribunal ad quem também só pode sindicar esse despacho por referência à prova produzida até ao encerramento da instrução e não a outra que se produza após o encerramento da instrução.
Assim, nesta decisão não serão levados em contra os referidos documentos.
Também se não ordena o seu desentranhamento uma vez que, mesmo em caso de confirmação do despacho de não pronúncia, há a possibilidade de o processo chegar a julgamento e, nesse caso, já tais provas seriam admissíveis .
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É pacífica a jurisprudência do STJ no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso .
Da leitura dessas conclusões, afigura-se-nos que a questão fundamental que o Assistente invoca como fundamento do seu recurso é a de que existem nos autos indícios suficientes de que os Arg. praticaram os crimes de denúncia caluniosa, falsidade de testemunho e difamação.
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Cumpre decidir.
Compete ao juiz de instrução não exercer a acção penal, mas sim comprovar a decisão de acusar ou arquivar o processo. Na verdade, nos termos do disposto no art. 286º/1 do CPP, a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.
O actual CPP, no art.º 283º/2, considera '… suficientes os indícios sempre que deles resultar a possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou medida de segurança.'.
A definição do que deve entender-se por suficientes indícios contida neste preceito, bem como no art.º 308°/1 do CPP, é idêntica à que, no âmbito do CPP de 1929, havia sido colhida pela Jurisprudência e pela Doutrina, que por indícios suficientes entendia vestígios, suspeitas, presunções, sinais, indicações, suficientes e bastantes, para convencer de que há crime e é o arguido responsável por ele. Porém, para a pronúncia, não é preciso uma certeza da existência da infracção, mas os factos indiciários devem ser suficientes e bastantes, por forma que, logicamente relacionados e conjugados, formem um todo persuasivo de culpabilidade do arguido, impondo um juízo de probabilidade do que lhe é imputado.
Por outro lado, e como é sabido, a prova tem por função a demonstração da realidade dos factos (art. 341°/1 CC ) e é, normalmente apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do tribunal (art. 127° CPP).
Ela não pressupõe, como vem afirmando a melhor jurisprudência que aqui se segue de perto (cfr. v.g. Ac. da Relação de Coimbra no Processo n.º 2447/99), uma certeza absoluta, lógico-matemática ou apodíctica nem, por outro lado, a mera probabilidade de verificação de um facto.
E assenta na certeza subjectiva, relativa ou histórico-empírica do facto, ou dito de outro modo:
a) No alto grau de probabilidade de verificação do facto, suficiente para as necessidades práticas da vida (cfr. Manuel de Andrade, 'Noções Elementares de Processo Civil' p. 191; Antunes Varela, 'Manual de Processo Civil', p. 421);
b) No grau de certeza que as pessoas mais exigentes da vida reclamariam para dar como verificado o facto respectivo (Anselmo de Castro, 'Direito Processual Civil Declaratório, III', p. 345);
c) Na consciência de um elevado grau de probabilidade - convicção –assente no raciocínio lógico do juiz e não em meras impressões (Castro Mendes, 'Do Conceito de Prova em Processo Civil' p. 306 e 325);
d) Na convicção - objectivável, raciocinada (baseada na intuição e na reflexão e motivável - para além de toda a dúvida razoável, não qualquer dúvida, mas apenas a dúvida fundada em razões adequadas (Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I,' p. 205). Donde poder concluir-se que a ausência de dúvida razoável pressuposta na condenação, consiste na exclusão da verosimilhança da inocência: não há motivos afirmativos da inocência ou, havendo-os, são afastados pelo julgador por falta de credibilidade racional.
Divide-se actualmente a doutrina entre duas posições sobre o que são indícios suficientes: a que entende que o juiz deve pronunciar o Arg. quando pelos elementos de prova recolhidos forma a sua convicção no sentido de que é mais provável que tenha cometido o crime do que não o tenha feito e que, portanto, a lei não impõe a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento, bastando-se com um juízo de indiciação (Prof. Germano Marques da Silva); a que equipara a convicção de quem acusa ou pronuncia com a convicção de quem julga e condena (Dr. Carlos Adérito Teixeira) .
Não tomando nós posição definitiva sobre esta questão, adoptamos para já a primeira destas posições, isto é, a de que existem indícios suficientes quando é maior a probabilidade de o Arg. vir a ser condenado do que a de vir a ser absolvido.
Isto posto, analisemos então a questão suscitada pelo Recorrente.
A prova constante dos autos aqui em análise é constituída, essencialmente, pelos depoimentos e declarações que os Arg. prestaram (no “Processo Casa Pia”, com o NUIPC 1.718/02.9JDLSB, no processo com o NUIPC 474/00.0TAOER e nestes autos, quer durante o inquérito quer durante a instrução); pelas declarações do Assistente; pelos depoimentos das testemunhas; pelos exames sexuais e as perícias da personalidade feitos aos Arg., e pelos documentos juntos aos autos.
Os 1º a 6º Arg. afirmaram ter sido vítimas de abusos sexuais perpetrados pelo Assistente. O 7º Arg. afirmou ter visto o Assistente em vários dos locais onde se praticavam actos sexuais com jovens da Casa Pia.
Sendo certo que, quanto aos depoimentos e declarações dos 1º a 6º Arg. (e entre estes e os do 7º Arg.), existem as imprecisões, contradições, omissões e inconsistências apontadas pelo Assistente, analisemos a relevância das mesmas.
Antes do mais, importa ter em conta que, pelo menos, os 1º a 6º Arg. foram, repetidamente, vítimas de abusos sexuais, quando tinham entre 12 a 15 anos de idade, o que resulta, desde logo, claramente, dos exames sexuais a que foram sujeitos (cf. fls. 1035 a 1042, 1057 a 1067, 1083 a 1090, 1106 a 1113, 1114 a 1122 e 1138).
Quanto a tais depoimentos e declarações importa ter em consideração que os Arg. foram repetidamente perguntados sobre a matéria, durante um largo período de tempo:
O 1º Arg. foi ouvido por 20 vezes, além de ter participado numa acareação (com a Arg. …) e em 4 reconhecimentos (de locais onde terão ocorrido os abusos sexuais), entre 16/12/2002 e 03/01/2005, perante diversas entidades (fls. 74 a 181, 716 a 718, 861 e 862);
O 2º Arg. foi ouvido por 10 vezes, além de ter participado em 5 reconhecimentos (de locais onde terão ocorrido os abusos sexuais), entre 16/01/2003 e 07/01/2005, perante diversas entidades (fls. 182 a 214, 727 a 729 e 866);
O 3º Arg. foi ouvido por 8 vezes, além de ter participado num reconhecimento (de local – a casa de … - onde terão ocorrido os abusos sexuais), entre 03/01/2003 e 14/01/2005, perante diversas entidades (fls. 221 a 239, 719 a 723, 744, 769 e 879);
O 4º Arg. foi ouvido por 10 vezes, além de ter participado em 2 reconhecimentos (um de local onde terão ocorrido os abusos sexuais – a casa do 7º Arg., e de várias fotografias de indivíduos que teriam sido autores de abusos), entre 20/01/2003 e 21/01/2005, perante diversas entidades (fls. 240 a 277, 724 a 726 e 885);
O 5º Arg. foi ouvido por 7 vezes, entre 24/06/2003 e 21/01/2005, perante diversas entidades (fls. 300 a 315, 730 a 733 e 889 a 891);
O 6º Arg. foi ouvido por 4 vezes, entre 18/06/2003 e 21/01/2005, perante diversas entidades (fls. 281 a 296, 894 e 895);
O 7º Arg. foi ouvido por 9 vezes, além de ter participado em 2 acareações (com o Assistente e com o Arg. …) e em 1 reconhecimento (de local onde terão ocorrido os abusos sexuais – a casa de …), entre 16/12/2002 e 03/01/2005, perante diversas entidades (fls. 74 a 181, 716 a 718, 861 e 862).
É sabido que quanto mais vezes uma testemunha fala sobre o mesmo facto, mais dele se afasta (na sua realidade objectiva), pela reelaboração mental do mesmo que, consciente ou inconscientemente, vai fazendo.
Os primeiros 6 Arg. tinham idades compreendidas entre os 16 os 19 anos (o 7º Arg. tinha entre 47 e 49 anos) de idade, quando depuseram. O que relataram reportava-se a factos que teriam ocorrido entre 1998 e 2002 (salvo quanto ao 6º Arg. que relata factos que teriam ocorrido em 1993), quando tinham entre 12 e 15 anos de idade.
Todos os Arg. revelaram grandes inibições e dificuldades em relatar os factos , quer pelo esforço que, certamente, fizeram ao longo do tempo para arredar da memória os abusos de que foram vítimas, quer pelas reacções emocionais que sua memória lhes provocava, quer pelo prejuízo que dos mesmos resulta para as suas auto-imagens .
As perguntas foram feitas por pessoas diferentes e em momentos processuais diferentes . Isso implica que as perguntas também foram diferentes ou feitas de maneira diferente e com objectivos diferentes, conforme a fase da investigação em que foram feitas.
Os depoimentos em análise não foram gravados, mas transcritos por quem os tomou. Resulta da experiência comum que quem transcreve declarações, não o faz nos seus precisos termos, ordenando o que escreve de acordo com o que lhe parece mais lógico, procedendo a sínteses, conforme o que lhe parece ser relevante, e eliminando aquilo que julga não ter importância.
Todas estas condicionantes contribuem de forma decisiva para que as referidas declarações transcritas contenham as imprecisões, contradições, omissões e inconsistências apontadas pelo Assistente, de tal forma que estranho seria que não padecessem dessas características.
Por tudo isto, desde logo, concluímos que de tais imprecisões, contradições, omissões e inconsistências não resulta, por si só, que os Arg. mentiram.
É certo que essas imprecisões, contradições, omissões e inconsistências fragilizam o valor indiciário de tais depoimentos, como se afirmou no Ac. da Relação de Lisboa de 08/10/2003, in www.dgsi.pt, processo 7002/2003-3 (que revogou a prisão preventiva aplicada ao Assistente no referido “Processo Casa Pia”), mas não mais do que isso.
Pelo contrário, outros elementos apontam no sentido de que os factos relatados pelos Arg. não eram falsos: desde logo, como referimos, os exames reveladores de que foram objecto passivo de coito anal repetido; as perícias sobre as suas personalidades, que admitem a veracidade global dos relatos (cf. fls. 1021 a 1034, 1043 a 1056, 1068 a 1082, 1123 a 1137 e 1150 a 1161), salvo quanto ao 5º Arg., que considera que o relato é bastante provável, mas não exclui a possibilidade de contaminação dos factos (cf. fls. 1091 a 1105); os reconhecimentos dos locais onde teriam ocorrido tais abusos (vários Arg., em ocasiões diferentes e isoladamente, reconhecem vários dos locais onde terão sido vítimas de abusos sexuais).
Seria, pois, necessária a existência de provas positivas dessa falsidade (por exemplo, de que era materialmente impossível a prática dos factos porque Assistente ou Arg. se encontravam em locais afastados; de que havia alguma limitação física que impedia um e outros de praticarem actos de cariz sexual; de que os Arg. haviam admitido ter inventado globalmente os factos relatados; de que os Arg. tinham um especial interesse em incriminar o Assistente e os restantes acusados no “Processo Casa Pia”; de que os Arg. tinham sido pagos ou aliciados por terceiros para incriminar estes, etc.), para que o tribunal pudesse concluir por ela.
Ora o que existe é prova (docs. de fls. 1657 a 1661 e 1799 a 1865 – listagem das chamadas recebidas e efectuadas pelo telemóvel do Assistente) de que o Assistente não contactou através do seu telemóvel os Arg. (sendo que vários deles afirmaram que o Assistente telefonava a alguns deles, para que se organizassem os contactos sexuais com os Arg.).
Mas isso não prova, só por si, que esses contactos não tenham existido, prova só que não foram feitos do telemóvel do Assistente.
Também existe prova de que na vez que o Assistente aceita que foi almoçar à Casa Pia, da parte da tarde esteve noutros locais, o que implicava que não estivesse no local onde um dos Arg. afirma ter estado com ele (docs. de fls. 773 a 780). Mas não existe prova de que o Assistente só tenha almoçado dessa vez na Casa Pia.
O Assistente negou a prática dos factos que lhe foram imputados pelos Arg..
Dos depoimentos das testemunhas X e Y resulta que, quando com eles falou, o 6º Arg. mencionou vários abusadores, mas não o Assistente. Trata-se de mais uma inconsistência, cujas razões e consequências já supra expusemos.
A testemunha Z resulta que o 1º Arg. “é muito mentiroso”, mas isso não prova que tenha mentido neste caso.
Os depoimentos dos (…) Magistrados do MP, que investigaram e deduziram acusação no “Processo Casa Pia”, não contêm qualquer elemento que permita apontar no sentido de que os Arg. mentiram.
Os depoimentos dos Drs. F, G, H, não contêm qualquer elemento objectivo (para além das próprias convicções) que permita apontar no sentido de que os Arg. mentiram.
Temos que concluir que com estes elementos de prova subsistiria em julgamento uma dúvida fundamental insanável sobre se os Arg. tinham mentido, o que, por aplicação do princípio in dubio pro reo levaria que tal se desse como não provado. Era, pois, muito mais provável darem-se tais factos como não provados do que como provados.
Isto elimina desde logo a possibilidade de pronunciar os Arg. pelos crimes de falso testemunho e de denúncia caluniosa.
Na verdade, o elemento típico central do crime de falsidade de testemunho reside na falsidade da declaração e o crime de denúncia caluniosa “… só estará preenchido … quando, comprovadamente, a pessoa denunciada não tiver cometido o facto (…) por que o agente pretende vê-la perseguida.” , sendo certo que se não indicia suficientemente nem uma coisa nem outra.
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Coloca-se agora a questão de saber se não teriam as condutas dos Arg. preenchido também o tipo de difamação (já que não existem duvidas de que as imputações feitas são, objectivamente, atentatórios da honra e consideração do Assistente ), o que seria muito relevante porque, nos termos do disposto no art.º 180º/2-a) do CP, caberia então aos Arg. a prova da verdade das imputações que fizeram ao Assistente e, como a não fizeram, deveriam ser pronunciados por essa crime.
Queremos, desde já, dizer que consideramos que os depoimentos prestados em diligências processuais penais são necessariamente dirigidos a terceiros e que a obrigatoriedade de prestar depoimento como testemunha não inclui a obrigatoriedade de o depoimento ter um determinado conteúdo, pelo que não será por essa via que afastaremos a possibilidade do preenchimento do tipo de difamação.
Além disso, consideramos que o facto de o Arg., quando presta declarações em diligência processual penal, não estar obrigado a dizer a verdade, não afasta, só por si, a possibilidade de difamar/denunciar caluniosamente um terceiro ou um co-arguido. Na verdade, quando, prestando declarações, nelas o Arg. ultrapassa o âmbito dos actos por si praticados e imputa a prática de actos a outra pessoa (sendo que tais declarações podem até ser valoradas para condenar co-arguidos, pelo que assumem a dimensão material de um testemunho), deixa de estar protegido por aquela possibilidade, pelo que pode cometer crimes contra a honra dessa pessoa . Não será, pois, também por aqui, que afastaremos a punição do 7º Arg., por difamação/denúncia caluniosa, pelas imputações que faz ao Assistente (uma vez que nunca poderia ter praticado o crime de falso testemunho, dada a sua qualidade de Arg.).
Isto posto, importa realçar a perplexidade que causa a possibilidade de alguém se queixar da prática de um crime e, no caso de tal queixa não vir a conduzir a uma condenação, ser ver na contingência de ser obrigado a provar a sua verificação, sob pena de ser condenado, civil ou penalmente, por difamação.
Várias soluções jurisprudenciais se têm tentado para obviar à verificação de tais situações.
Assim, no acórdão da Relação de Lisboa de 16/07/2008, relatado pela Sr.ª Desembargadora Conceição Gonçalves, in www.dgsi.pt, processo 9613/2007-3, decidiu-se que o ónus da prova da verdade das imputações não incumbe à testemunha .
Por outro lado, o Ac. do STJ de 18/11/2008, relatado pelo Sr. Conselheiro João Bernardo, in www.dgsi.pt, processo 08B3227, resolveu a questão por recurso à figura do conflito de deveres .
No mesmo sentido se pronunciou o Ac. do STJ de 18/12/2008, relatado pelo Sr. Conselheiro Sebastião Póvoas, in www.dgsi.pt, processo 08A2680 .
Uma tal solução de recurso às causas de exclusão da ilicitude levanta dificuldades de determinação de qual a que teria aplicação a este tipo da casos .
De qualquer forma, parece-nos que o problema se reconduz a uma questão de integração no tipo e de concurso aparente.
Vejamos.
No crime de difamação, o bem jurídico típico é a honra e consideração da vítima (numa concepção dual fático-normativa ).
Por sua vez, “No direito português vigente tudo concorre a favor da interpretação que erige os interesses individuais em bem jurídico típico, reservando aos valores da realização da justiça (eficácia, autoridade, legitimação) uma tutela reflexa ou complementar.” , ou seja, o bem jurídico típico no crime de denúncia caluniosa é também a honra e consideração da vítima.
Assim, seguindo esta lição do Prof. Costa Andrade, concluímos que sempre que alguém imputar a outrem, perante autoridade ou publicamente, com intenção de que contra ele se instaure procedimento, factos ofensivos da sua honra ou consideração, com consciência da falsidade da imputação, comete o crime de denuncia caluniosa, p. e p. pelo art.º 365º do CP, em concurso aparente com o crime de difamação, p. e p. pelo art.º 180º do CP, sendo este consumido por aquele.
Na verdade, estando o bem jurídico protegido pelo tipo do art.º 180º do CP (difamação) também protegido pelo tipo do art.º 365º do CP (denúncia caluniosa), sendo que este tipo protege ainda outros bens jurídicos, para além de que este é mais gravemente punido do que aquele, há que concluir que, quando se verifiquem, concomitantemente, os restantes elementos do tipo da difamação e da denúncia caluniosa, este tipo consome aquele .
Nesse sentido se pronuncia o Prof. Costa Andrade, in “Comentário Conimbricense ao Código Penal”, III, Coimbra Editora, 2001, p. 554: “§ 82 Também os problemas do concurso resultam em boa medida prejudicados logo ao nível do bem jurídico. A adopção de um bem jurídico individual predetermina, desde logo, as relações com os crimes contra a honra (arts. 180° ss.), por princípio subsumíveis na figura e no regime do concurso aparente (ex vi especialidade. Para uma fundamentação mais desenvolvida, Hirsch, Schröder-GS 1978 321 ss.). Isto ao contrário da solução de corrente da teoria da realização da justiça, que seria naturalmente uma solução de concurso ideal. Solução que é, de resto, sustentada pela jurisprudência e doutrina maioritária alemãs, ao abrigo da teoria da alternatividade (…).”.
É claro que se esse alguém, em vez de imputar factos, formula juízos de valor sobre outrem, já não preenche, por regra, o tipo de denúncia caluniosa, uma vez que as declarações e depoimentos versam sobre factos, nos termos do disposto nos art. 128º/1, 140º/2 e 145º/3 do CPP .
Sendo assim, nunca os Arg. poderiam, no presente caso (em que, para além do mais, não formularam juízos de valor sobre o Assistente), ser condenados por crimes de difamação, mas, tão-só, por crimes de denúncia caluniosa.
E como já vimos, não existem indícios suficientes de que tenham praticado este crime.
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Nestes termos e nos mais de direito aplicáveis, julgamos totalmente improcedente o recurso e, consequentemente, confirmamos o despacho recorrido, assim não pronunciando os Arg..
Vai o Recorrente condenado nas custas, com taxa de justiça que se fixa em 3 (três) UC, nos termos do disposto no art.º 87º/1-b)/3 do CCJ .
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Notifique.
D.N..
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Elaborado em computador e integralmente revisto pelo relator (art.º 94º/2 do CPP).
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Lisboa, 26/03/2009

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(Abrunhosa de Carvalho)

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(Dr. Cid Geraldo)
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