Na fundamentação da sentença devem ser especificados os documentos em que baseou a condenação e a razão da credibilidade dada aos depoimentos das testemunhas.
Proc. 6118/08 9ª Secção
Desembargadores: João Carrola - Carlos Benido - -
Sumário elaborado por Paulo Antunes
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Acordam, em conferência, na 9.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:
I.
No processo comum n.º (…) JELSB da 6º Vara Criminal de Lisboa, os arguidos (…) outros, foram submetidos a julgamento, após terem sido acusados da prática de da prática de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelos art.°s 21º, n.° 1 e 24° c), do Dec. Lei 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à Tabela I-B, anexa a este diploma e de associação criminosa, p. e p. pelo art.° 28°, n.ºs 1 e 2, do Dec. Lei 15/93, de 22/1, sendo a conduta do primeiro arguido punida nos termos do n.º 3 desta disposição legal, todos com referência à Tabela I-B, anexa ao referido diploma legal.
Realizada a audiência, com documentação da prova produzida, foram condenados.
- O arguido (…) pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art.º 21º n.º 1 do Dec. Lei 15/93 de 22/1, com referência à tabela I-B anexa, na pena de oito anos e seis meses de prisão;
- O arguido (…) pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art.º 21º n.º 1 do Dec. Lei 15/93 de 22/1, com referência à tabela I-B anexa, na pena de seis anos e seis meses de prisão.
Inconformados com tal decisão, vieram os mencionados arguidos interpor recurso da mesma, com os fundamentos constantes das respectivas motivações que aqui se dão por reproduzidas e as seguintes conclusões:
A. O arguido (…):
“1. O recorrente, de 54 anos de idade, não tem quaisquer antecedentes criminais e encontra-se socialmente inserido.
2. Da prova testemunhal carreada para os autos e decorrente das audiências de discussão e julgamento, não resultou provado a existência do requisito subjectivo da infracção do recorrente, ou seja, que este tivesse tido a iniciativa do agir ilícito, uma vez que se limitou a aderir a um projecto criminoso já delineado pelo casal de 'correios' em colaboração activa com as policias dos dois países (Portugal e Brasil), o que a própria redacção do acórdão recorrido corrobora.
3. Refere o douto acórdão recorrido a fls. 1121, artigo 1° que: 'No decurso do mês de Outubro de 2006, o arguido (…) deu ordem ao arguido (…) para que contratasse dois correios, cujo trabalho seria deslocarem-se ao Brasil, de avião e dali trazer cocaína, destinada, numa primeira fase, a Portugal.'
4. Em lado nenhum do acórdão — sobretudo na análise crítica da prova ao referir os depoimentos das testemunhas de acusação, dos arguidos ou da testemunha de defesa do aqui recorrente, se alude a qualquer depoimento prestado em audiência donde resultasse que no decurso do mês de Outubro de 2006, o arguido (…) tenha dado qualquer ordem ao arguido (…) no sentido de contratar dois correios.
5. O ora recorrente, em momento algum entra em contradição no seu depoimento, afirmando sempre que sabia que o (…)e a (…) iam ao Brasil, como correios de droga, para poderem pagar as suas dívidas (prestação da casa). Foram estes que o instigaram a cometer um crime, actuando assim, como agentes provocadores ao crime.
6. No artigo 2° o douto Tribunal a quo considerou provado que: 'Foi neste contexto que o arguido (…) realizou diversas transferências de dinheiro para a Bolívia, sendo uma delas, no valor de 2.600 euros, realizada no dia 18 de Outubro de 2006, dia correspondente àquele em que o casal de 'correios' que veio a ser contratado se encontrava já no Brasil.'
7. No entanto, esta afirmação, não resulta nem dos depoimentos dos arguidos, nem do depoimento das testemunhas de acusação, já que, em momento algum da audiência de julgamento lhes foi questionado porque contrataram um casal, e sobretudo, este facto entra em contradição com os factos que dá por não provados, começando pelo artigo 1° do ponto 2.2, onde se escreve: 'Os três arguidos, desde data não concretamente apurada, integravam uma organização transnacional de indivíduos que se dedicava à actividade de aquisição e venda de drogas ...', no art. 2°, 3°, 4°, etc., ou seja, entra em contradição com praticamente toda a matéria da acusação da qual não se fez prova.
8. Estando o acórdão recorrido ferido do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nos termos do art. 410.0, n.o 2, alínea a) do C.P.P.
9. Como consta da prova gravada nas audiências — nomeadamente os depoimentos dos arguidos e da testemunha de defesa inquirida a tal propósito pelo Tribunal de primeira instância — não resultou efectivamente provado que o ora recorrente tivesse tido a iniciativa do crime de tráfico ou de transporte de alguns quilos de cocaína, tendo apenas aderido a um plano gizado por outros (neles se incluindo a participação de agentes policiais e correios de droga infiltrados para o efeito), apenas podendo vir a receber cerca de 3.000,00€ — três mil euros que correspondiam a uma dívida do casal de correios para com o arguido). Mas, sem conceder,
10. Por sua vez, o douto acórdão é muito ambíguo acerca da própria acção delituosa do recorrente: diz-nos inclusivamente, o douto acórdão recorrido que 'os arguidos (...) e (…) (bem conheciam) a natureza e características da substância que importaram ou pretenderam importar para Portugal, que foi apreendida nos autos, designada por cocaína'. Ora, uma coisa é aquisição, outra, bem diferente, venda.
11. Como ambíguos são os seguintes considerandos – expendidos no douto acórdão recorrido – a que faz referência o conteúdo do artigo 41° da matéria de facto considerada provada pelo Tribunal Colectivo, a saber:
'Pretenderam, os arguidos (...) e (…), com as suas condutas, auferir lucros pecuniários com os diferenciais entre os preços de aquisição venda de tal produto'. Ora, uma coisa é aquisição, outra, bem diferente, venda.
12. Tendo por isso o acórdão recorrido cometido a nulidade de omissão de pronúncia nos termos do disposto no art. 379.0, n.o 1, alínea c) do C.P.P.
13. Não especificando – nem contabilizando, minimamente que fosse o douto acórdão recorrido – quais os 'lucros pecuniários' que o recorrente iria 'auferir', comete o vício da falta de fundamentação, o que constitui também, por si só, a nulidade prevista na alínea a) do n.° 1 do art. 379° do CPP.
14. A determinação da medida concreta da pena faz-se com recurso ao critério geral estabelecido no art. 71°, do CP, tendo em vista as finalidades das respostas punitivas em sede de Direito Criminal, as quais são a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade – art. 41°, n.° 1 do CP – sem esquecer, obviamente, que a culpa constitui um limite inultrapassável da medida da pena – n.° 2 daquele artigo.
15. Levando em linha de conta a primaridade do arguido, o facto de se encontrar inserido profissionalmente (era empresário em Espanha, no ramo da construção civil e explorava um bar) e socialmente (tem a família a cargo, tendo sua esposa sido testemunha de defesa), a pena a aplicar deveria ter-se situado muito próximo do mínimo legal, isto é, quatro anos de prisão, ainda assim suspensa na sua execução, dada a nova redacção do art. 50.° do Código Penal e por se encontrarem 'in casu' reunidos os respectivos pressupostos.
16. Devendo ainda por isso, ser aplicado o instituto da suspensão da pena, fazendo-se um juízo de prognose favorável, no sentido de se concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão (mais que ameaça, o recorrente está em reclusão há quase dois anos) realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, que são, como se sabe, a tutela dos bens jurídicos e a reinserção social do condenado, nos termos do disposto no art. 50.° do novo Código Penal, dada a existência dos respectivos pressupostos.”
B. O arguido (…):
“1. O recorrente manifesta interesse nos seus recursos intercalares pelo que os dá aqui por integralmente reproduzidos.
2. Decorre abundantemente dos autos e das declarações prestadas pelos agentes encobertos (declarações para memória futura) (…) e (…) e ainda das prestadas pelo inspector (…) que a operação de transporte de droga vinha a ser preparada, pelo menos, desde os primeiros dias de Outubro, entre aqueles indivíduos e a Policia Judiciaria.
3. Conforme foi referido pelos agentes encobertos seguiam todas as instruções que lhes eram dadas pela Policia Judiciaria.
4. Ora, os agentes encobertos estavam a agir como colaboradores da PJ desde o inicio de Outubro, ainda em Espanha, quando se deslocaram para Lisboa, no dia 12 desse mês, onde travaram vários encontros com a PJ, tendo embarcado para o Brasil no dia 15 e lá permanecido em contacto com os traficantes daquele pais no sentido de procederem ao transporte do produto estupefaciente para Espanha via Portugal.
5. Acontece que os presentes autos apenas foram registados como inquérito no dia 22 de Outubro.
6. Durante este período, pelo menos até ao dia 19 do mesmo mês em que foi autorizado a acção encoberta, foram levados a efeito actos processuais que contendem com os direitos liberdades e garantias dos cidadãos
7. Resulta que a PJ promoveu o processo penal quando a legitimidade para o efeito cabia exclusivamente ao Ministério Público, sendo que a falta de promoção pela autoridade com legitimidade para tal, faz a lei corresponder a sanção de nulidade.
8. É esta a melhor interpretação a dar às normas constantes dos artigos 48°, 55°, 56°, 241°, 248° a 253° e 263° do CPP pois outra inquina-as de inconstitucionalidade material por contenderem com o estatuído nos artigos 18°, 32° n°8, 219° e 272° da CRP.
9. Os agentes encobertos foram também constituídos como arguidos sendo que não podiam assumir o estatuto de testemunhas na mesma fase processual, tal como decorre do artigo 57° n°2 do CPP.
10. A circunstância de terem prestado declarações como testemunhas contende, além do mais, com os direitos de terceiros, porquanto o valor das mesmas é valorado de forma diferente para além de o arguido poder tomar posições processuais que enquanto testemunha o não pode fazer.
11. É esta a melhor interpretação a dar à norma constante do artigo 57° pois outra contende com o estatuído no artigo 32° da CRP.
12. O (…), a (…) e o arguido (…) eram conhecidos há vários anos sendo que esta circunstância era impeditiva de aqueles actuarem como agentes encobertos, tal como decorre do n°2 do artigo 1° da Lei n°101/2001 de 25 de Agosto.
13. Esta norma não é indicativa, como parece fazer crer o douto acórdão, mas sim definidora do conceito de agente encoberto como resulta claramente do preceito.
14. É esta a melhor interpretação a dar à referida norma pois outra inquina-a de inconstitucionalidade por contender com o estatuído nos artigos 18° e 32° da CRP.
15. Como já referimos nas conclusões 2 a 7, os agentes encobertos actuaram em colaboração e sob as ordens da Policia Judiciaria durante vários dias, tendo estado em contacto com os suspeitos e os traficantes de droga no Brasil, planeando toda a operação nos vários contactos havidos com a PJ em Espanha, em Portugal e no Brasil sem que houvesse autorização judicial para tal.
16. Com efeito, apenas no dia 19 foi autorizada a acção encoberta sendo que todos os actos até aí são nulos acarretando, em consequência, a contaminação dos actos subsequentes.
17. É esta a melhor interpretação a dar à norma constante ao artigo 3° da Lei 101/2001 pois outra inquina aquele preceito de inconstitucionalidade material por atentar contra o estatuído nos artigos 18° n°2 e 32° n°8 da CRP.
18. A circunstância de os agentes encobertos serem do mesmo meio criminoso, serem das relações de um dos suspeitos não oferecem garantias mínimas de idoneidade moral para participarem numa acção encoberta tanto mais que esta se desenvolveu sem a presença física de qualquer elemento da Policia Judiciaria para exercer controlo sobre esses indivíduos.
19. Entendemos que uma interpretação às normas constantes da Lei 101/2001, designadamente do seu n°1 padece de inconstitucionalidade material quando interpretada com o sentido de que podem participar numa acção encoberta indivíduos conhecidos e do mesmo meio criminoso que os suspeitos sem que o Juiz ou o M°P° verifiquem da sua idoneidade moral para participarem nessa acção e ainda quando o Juiz não fiscaliza a par e passo o andamento da acção encoberta mormente quando ela é levada a efeito por indivíduos não pertencentes à PJ e apenas se encontram em contacto com os suspeitos.
20. Todos os arguidos nas respectivas contestações arrolaram como testemunhas os indivíduos que prestaram declarações para memória futura, sendo que o Tribunal relegou para o decorrer da audiência de julgamento da necessidade de serem ouvidos.
21. No decorrer da audiência o Tribunal proferiu despacho em acta reconhecendo a importância da sua audição ordenando a sua notificação para comparência. Contudo, como consta das informações das autoridades espanholas a (…) encontra-se presa na prisão de Madrid enquanto que o paradeiro do seu marido – (…) — é desconhecido.
22. Nesta sequência o Tribunal procedeu à leitura dos depoimentos prestados por essas testemunhas para memória futura tendo o recorrente consignado que pretendia formular várias questões a fim de exercer o contraditório.
23. A importância da inquirição destas testemunhas era evidente por vários motivos entre os quais a circunstância de no momento em que foram ouvidas para memória futura os autos encontrarem-se em segredo de justiça e o relatório da acção encoberta ainda não ter sido junto aos mesmos.
24. De resto, o Tribunal apesar de entender da importância na audição dessas testemunhas — elas são o único elemento de prova que estabelece o nexo entre o produto estupefaciente e o recorrente — não desenvolveu todas as diligências processuais possíveis para as mesmos serem ouvidas, aliás de fácil exequibilidade quanto à (…) pois sempre podia ser ouvida por vídeo conferência.
25. É esta a melhor interpretação a dar às normas constantes dos artigos 127°, 271° n°8, 355° e 356° n°2 al. b) do CPP pois outra contende com o estatuído no artigo 32° n°1 da CRP.
26. O douto acórdão sempre seria nulo porquanto o recorrente apresentou contestação, onde alegou vários factos que a provarem-se teriam influência na decisão final, e o Tribunal não se pronunciou sobre os factos aí alegados.
27. Constata-se a total ausência de exame crítico na medida em que o douto acórdão se limita a enumerar os elementos de prova que serviram para formar a convicção do Tribunal mas já não explicita os motivos lógicos, o substrato racional da decisão.
28. Designadamente, qual o raciocínio que levou o Tribunal a dar como provados factos por exemplo os constantes nos n°s 1°, 3° e 4° – quando é certo que tal não resulta dos depoimentos dos agentes infiltrados nem de outro elementos de prova.
29. O recorrente impugna os pontos 1 °, 3° e 4° da matéria de facto dada como provada bem como todos aqueles que com estes estiverem em contradição, porquanto as provas impunham decisão diversa da recorrida.
30. Desde logo os depoimentos dos agentes encobertos não podem assumir importância decisiva uma vez que, como se provou no douto acórdão, os seus objectivos eram o de obterem compensação económica sendo certo que também eles pertenciam ao mesmo meio criminoso — segundo o arguido (…) já havia estado presos e feito vários transportes de droga com sucesso – o que é bem demonstrativo a circunstância de um deles se encontrar preso e o outro desaparecido
31. Acresce que o (...) referiu que o (...) é que lhe pediu o favor de o ajudar num transporte de droga.
32. O certo é que dos depoimentos dos agentes encobertos não resulta que tenha sido o recorrente (…) a solicitar ao seu co-arguido a contratação dos correios mas sim que foi o (...).
E
41. A circunstância de o recorrente ser consumidor de drogas duras não se mostra reflectida na pena.
42. Não foi valorado a circunstância de o produto estupefaciente apreendido nunca ter estado em risco de vir a ser disseminado pelos consumidores na medida em que antecipadamente já se sabia que a droga iria ser aprendida.
43. Não se atendeu devidamente à circunstância de o recorrente ser primário e ter dois filhos menores.
44. Por último, a decisão recorrida não teve em conta a circunstância de a execução destes factos se mostrar facilitada pelo facto de os agentes encobertos jamais terem colocado dificuldades no transporte da droga pois a ida, a vinda, o desembarque, o embarque sempre esteve facilitado o que não aconteceria caso os factos se desenrolassem naturalmente, quiçá com a desistência no inicio, no meio ou no fim do iter criminalis.”
O Digno Magistrado do Ministério Público respondeu a tais motivações de recurso, em peças manuscritas, nas quais conclui pela improcedência dos recursos interpostos da decisão final.
Na pendência dos autos foi ainda interposto recurso interlocutório pelos arguidos (...) e (…) (este não recorrente relativamente ao acórdão final) do despacho de fls. 1054 dos autos que indeferiu requerimento formulado pelos mesmos arguidos no sentido de o tribunal nomear intérprete, para a tradução de documentos cuja junção havia sido requerida aos autos, nos termos do art.º 92º n.º 6 CPP.
Tal recurso foi admitido a fls. 1160, tendo-lhe sido fixado como regime de subida o de subida diferida, ou seja, com o que viesse a ser interposto com a decisão final.
Neste recurso, o arguido (...) veio apresentar motivação e da mesma extraiu as seguintes conclusões:
“1. O Tribunal ordenou a junção aos autos de documentos uma vez que eram relevantes para o esclarecimento da verdade.
2. Todavia, ordenou que os arguidos procedessem à respectiva tradução para a língua portuguesa com fundamento de que esses documentos foram apresentados pelos arguidos.
3. Salvo o devido respeito, não é esse o entendimento que emerge do disposto no n° 6 do artigo 92° do CPP.
4. Com efeito, este preceito não faz qualquer distinção, para efeitos de tradução, entre os documentos juntos pelo arguido ou pela acusação, logo também o julgador a não poderá fazer.
5. Acresce que, do conteúdo do previsto no n°3 é possível concluir que, se o arguido tem direito de escolher interprete que não o nomeado pelo Tribunal, está bom de ver que por igualdade de razão, também terá direito de ver os seus documentos traduzidos quanto é certo que estes até foram juntos ao processo e destinam-se a todos os intervenientes processuais e ao próprio Tribunal.
Violou-se o disposto no artigo 92° do CPP”.
A tal recurso veio responder o M.º P.º a fls. 1115 em que relega a sua resposta para as motivações a apresentar aos recursos da decisão final, adiantando desde logo a sua opinião de que tal decisão deverá ser mantida.
Neste Tribunal, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto teve vista nos autos, reservando-se para as alegações em audiência.
II.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
Começaremos pela indicação das decisões recorridas em questão nos presentes autos.
Assim, e por ordem de prolação, temos a de fls. 1054 relativa a requerimento formulado pelos arguidos (...) e (...) no sentido da nomeação pelo tribunal de tradutor (os requerentes apelidam-no de “perito”) para proceder à tradução de documentos cuja junção haviam requerido:
“No processo penal não cabe ao tribunal a tradução de documentos apresentados pelos arguidos incumbindo ao tribunal apenas assegurar intérprete e tradutores para os actos processuais.
Termos em que se indefere.”
Por outro lado, o acórdão final condenatório quanto aos arguidos (…) e (…), na parte relevante para os recursos interpostos da decisão final, apresenta o seguinte teor:
“…
no decurso do qual pela defesa dos arguidos, foi arguida a nulidade da Acção Encoberta, pedindo-se que seja declarada a nulidade da acção encoberta, ou a proibição de valoração dos depoimentos das testemunhas que na mesma tiveram intervenção, para o efeito e em síntese foi alegado que:
- (… ) e (…) foram detidos e constituídos arguidos pelas autoridades portuguesas.
- Nos termos do art.° 57.°, n.° 2 do C.P.P. “A qualidade de arguido conserva-se durante todo o decurso do processo” pelo que uma vez que aqueles cidadãos foram constituídos arguidos, não podem ver a sua qualidade processual alterada, pelo menos, até ao final de cada fase do respectivo processo.
- Esta circunstância atinge os direitos de defesa dos outros arguidos na medida em que a posição processual desses cidadãos, enquanto arguidos, é bem diferente quanto à relevância das suas declarações, bem como do direito de não falarem.
- Por outro lado, nos termos do n.° 2 do art.° 1º da Lei 101/2001, de 25 de Agosto, a acção encoberta apenas pode ser levada a cabo por funcionários de investigação criminal ou por terceiro mas com a ocultação da sua qualidade e identidade.
- No caso concreto os colaboradores da PJ na acção encoberta eram conhecidos e amigos de um dos arguidos, tal como foi referido nos depoimentos desses dois indivíduos e ainda do declarado pelo arguido (…).
- Ressalta à evidência que os Agentes Encobertos não actuaram com a ocultação da sua identidade pelo facto de serem conhecidos, desde há vários anos, de um dos arguidos.
- É, por esta via, nula a Acção Encoberta porquanto não estavam reunidos os pressupostos prescritos no art.° 1º, n.° 2 do diploma citado, quando nele se exige que. “... com ocultação da sua qualidade e identidade.”
- Por outro lado, corno decorre das declarações do Inspector (...) e das prestadas pelos agentes encobertos, a PJ estava em contacto com eles desde 12 de Outubro de 2006.
- No âmbito desses contactos foi delineada a estratégia a seguir no âmbito desta operação, designadamente, segundo os agentes encobertos, iam recebendo instruções da PJ.
- Com efeito, esses indivíduos estiveram em Lisboa reunidos com elementos da Polícia Judiciária, antes de embarcarem para o Brasil, a planearem esta operação encoberta, conforme resulta das declarações de (...) e de (…), de fls. 256 e 265, respectivamente, bem como do depoimento do Inspector (...).
- Resulta que esta operação já estava a ser preparada entre os agentes encobertos e elementos da Polícia Judiciária, pelo menos, desde o referido dia 12.
- Conforme resulta de fls. 9 dos autos da Acção Encoberta, esta, foi autorizada pelo Juiz do Tribunal Central de Instrução Criminal no dia 19 do mesmo mês e ano.
- Significa que esta operação se desenvolveu desde os seus preparativos em Espanha, Portugal e Brasil até ao dia 19, momento em que já se encontravam alojados num Hotel no Brasil preparados para regressarem a Portugal.
- A acção dos agentes encobertos durante este período, ou seja, até ao momento em que a mesma foi autorizada, está ferida de nulidade porquanto inexiste despacho judicial a autorizá-la, conforme n.° 4 do art.° 3.° da Lei supra citada.
Cumpre decidir:
Efectivamente (…) e (…) foram detidos pelas autoridades portuguesas, mas quando prestaram as declarações para memória futura que se mostram documentadas nos autos, no decurso do inquérito, fizeram-no na qualidade de testemunhas e não na qualidade de arguidos, com observância de todas as formalidades legais, como se mostra documentado nos autos, motivo pelo qual não assiste qualquer razão no invocado pelos arguidos, motivo pelo qual não podem deixar de ser como pretende a defesa, valorados os depoimentos das referidas testemunhas.
Alega ainda a defesa que a Acção encoberta é nula, porquanto os agentes encobertos, não actuaram com ocultação da sua identidade, pelo facto de serem conhecidos, desde há vários anos de um dos arguidos.
Efectivamente resulta do disposto no nº2 do artº 1º da Lei 101/2001, referido que se consideram acções encobertas aquelas que sejam desenvolvidas por funcionários de investigação criminal ou por terceiro actuando sob o controlo da PJ…, com ocultação da sua qualidade e identidade. Visa tal norma proteger o agente encoberto, por forma a que possa actuar sem ser identificado pelos prevaricadores, sendo que em nosso entender de tal norma não resulta, como pretende a defesa que o agente encoberto, não possa ser pessoa conhecida ou das relações do prevaricador/arguido. Tal norma visa apenas proteger os agentes encobertos, devido à difícil missão que têm e aos grandes riscos que correm quando descobertos, pelos prevaricadores. Assim sendo não pode no entender do Tribunal interpretar-se a norma citada, no sentido pretendido pela defesa, que não pode actuar como agente encoberto alguém conhecido ou das relações do arguido, pelo que também nesta parte não lhe assiste razão.
Refere ainda a defesa que o Juiz de instrução só autorizou a acção encoberta, depois dos agentes encobertos já estarem no Brasil e já terem tido contactos com a Policia Judiciária.
Também nesta parte não assiste razão à defesa efectivamente o desenrolar de uma acção encoberta exige contactos e a preparação prévia da mesma, entre a PJ e os envolvidos na referida Acção, só após tais contactos a mesma é comunicada ao Juiz de instrução, considerando-se a mesma validada se não for proferido despacho de recusa nas setenta e duas horas seguintes – cf. artº 3º nº3 da Lei nº 101/2001 de 25 de Agosto -. Resulta dos autos que a referida Acção foi atempadamente comunicada ao Juiz de instrução, aliás tal ocorreu antes dos referidos agentes encobertos terem praticado em território nacional qualquer facto que seja susceptível de integrar qualquer conduta típica e ilícita.
Face ao exposto e tendo em conta o que consta dos autos, foi a referida Acção Encoberta, realizada de forma legal, tendo nela sido observadas todas as formalidades legais, pelo que não padece a mesma dos vícios apontados ou de quaisquer outros, motivo pelo qual não se mostra ferida de qualquer nulidade, o que pelo presente se declara.
Assim sendo julga-se não verificada a nulidade da Acção Encoberta, arguida pela defesa e consideram-se validos os depoimentos das testemunhas, supra referidas, inquiridas nos autos para memória futura, motivo pelo que e nesta parte se indefere o requerido pela defesa no decurso da audiência de julgamento.
II - APRECIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
2-1 Factos Provados
Discutida a causa ficou provado que:
1º
No decurso do mês de Outubro de 2006, o arguido (…) deu ordem ao arguido para que contratasse dois correios, cujo trabalho seria deslocarem-se ao Brasil, de avião e dali trazer cocaína, destinada, numa primeira fase, a Portugal.
2º
Foi neste contexto que o arguido (…) realizou diversas transferências de dinheiro para a Bolívia, sendo uma delas, no valor de 2.600 euros, realizada no dia 18 de Outubro de 2006, dia correspondente àquele em que o casal de “correios” que veio a ser contratado se encontrava já no Brasil.
3º
O arguido (…), em cumprimento das instruções recebidas do arguido (…), contactou então o casal (…), id. a fls. 259 e (…), id. a fls. 250,” em Espanha, para se deslocarem de Lisboa a São Paulo — Brasil, de avião e proceder, a partir desse país, a um transporte de cocaína, com regresso marcado para Lisboa, onde seriam aguardados por eles.
4º
Os arguidos entendiam que era mais seguro contratar casais e, de preferência, cidadãos comunitários, com aspecto e postura compatíveis com a imagem de inocentes e comuns turistas, para o fim supra referido.
5°
O arguido (…) quando contactou, em Espanha, o (...), disse-lhe que a deslocação seria para a cidade de São Paulo e, seguidamente, para Santos e que, assim que lá chegasse, deveria efectuar um contacto telefónico para um telemóvel cujo número lhe forneceu, sendo certo que apenas seria reconhecido pela pessoa que atenderia a chamada, pelo próprio facto de ter telefonado e verificado o local onde se encontrava.
6º
Corno contrapartida deste “trabalho”, o casal receberia, segundo a proposta que então lhes foi feita, a quantia de 20.000 (vinte mil) euros.
7°
Os bilhetes de avião para a viagem Lisboa/São Paulo, adquiridos na agência de viagens (…), em Málaga — Espanha, foram entregues ao casal pelo arguido (…), na cafetaria do aparthotel “…” em Fuengirola Espanha, tendo-lhe fornecido ainda o contacto telefónico do arguido (...), para o qual o casal deveria ligar após chegada ao Brasil com vista a combinarem depois o encontro com as pessoas que lhes iriam entregar o produto estupefaciente.
8°
Assim, o (...) e sua esposa (...), no dia 15 de Outubro de 2006, no Aeroporto de Lisboa, apanharam o avião que os levou a São Paulo — Brasil (voo TP 185), com regresso marcado para o dia 22 do mesmo mês (voo TP 188).
9°
No entanto, este casal de “correios”, actuava desde o início em colaboração com as Polícias de diversos países, incluindo a Polícia Judiciária de Portugal, acabando a sua acção no âmbito destes autos por ter sido desenvolvida enquanto terceiros colaboradores, ao abrigo da Lei n°101/2001, de 25 de Agosto e no âmbito da Acção Encoberta n° (…), deste DCIAP e judicialmente autorizada.
10º
Na verdade, no âmbito dessa Acção Encoberta, foram estabelecidos contactos prévios entre a Polícia Judiciária e o casal, os quais, no dia 18 de Outubro, telefonicamente, deram conhecimento à PJ de que se encontravam em São Paulo, no Brasil, a mando da organização dos arguidos, aguardando contactos com vista à entrega de cocaína que deveriam transportar para Lisboa.
11°
Entretanto, tendo em conta que os membros do casal iriam praticar, no Brasil, actos susceptíveis de integrar a prática do crime de tráfico de drogas, foi expedido Pedido de Cooperação Judiciária Internacional às Autoridades Judiciárias do Brasil, solicitando autorização para que o referido casal recebesse, sob acompanhamento e controlo policial, a cocaína que lhes iria ser entregue naquele país. Essa autorização foi concedida.
12°
O arguido (…), entretanto, já havia telefonado para a cidadã boliviana (…), id. a fls. 406, conhecida por (…), dando-lhe conta da viagem dos correios a São Paulo, a quem a cocaína deveria ser entregue.
13º
Assim, quando se encontravam já no Brasil e depois de se deslocarem a Santos, o casal foi recebido pela referida (…) e uma sobrinha desta, chamada Cláudia, tendo ficado combinado que, no dia previsto para o regresso (22/10), estas entregar-lhes-iam, na mesma localidade (Santos), a cocaína que deveriam transportar de avião para Lisboa.
14º
No dia 22/10, conforme haviam combinado, o casal deslocou-se de novo a Santos, onde vieram a receber, das cidadãs bolivianas referidas, a cocaína (cerca de 8,3 kgs.) que deveriam transportar para Lisboa, acondicionada em pequenas embalagens plásticas (bolotas), por sua vez dissimuladas no interior de cintas próprias para o transporte, junto ao corpo e por baixo do vestuário.
15º
Após esta entrega, o (...) contactou com o arguido (...), telefonicamente, informando-o de que estavam prontos para seguir para Portugal, ao que lhe foi respondido que os iriam buscar ao Aeroporto de Lisboa, pessoalmente, nomeadamente o “Pepé’ (arguido (...)).
16°
Nesse contacto telefónico com o arguido (...), ficou ainda combinado que o casal, depois de chegar ao Aeroporto de Lisboa, se deveria dirigir para a paragem de autocarros, à saída da zona das “Chegadas”, onde estariam veículos de matrícula espanhola à espera deles.
17°
Na posse da cocaína, o casal dirigiu-se para o Aeroporto de Guarulhos — São Paulo, onde embarcaram no voo TP 188 com destino a Lisboa.
18°
Na altura do embarque e no âmbito do Pedido de Cooperação Judiciária Internacional expedido às Autoridades Competentes da República Federativa do Brasil, toda a operação foi filmada e fotografada pela Polícia Federal do Brasil, designadamente a forma de acondicionamento da cocaína e a retirada de uma pequena amostra de tal produto, para exame.
19°
Esse exame, realizado no âmbito do procedimento criminal entretanto instaurado naquele país, (proc° n° …, do Departamento de Polícia Federal do Brasil), deu resultado positivo para cocaína.
20°
O avião do voo TP 188 acabou por chegar a Lisboa, cerca das 07h37m do dia seguinte, 23/10.
21°
À espera do casal encontravam-se já, nas imediações do Aeroporto de Lisboa, os três arguidos.
22°
Com efeito, no decurso dessa acção, os arguidos (…) e (…) haviam-se feito transportar para o local na viatura de marca Nissan, modelo Navara, de cor vermelha, com a matrícula espanhola n° …, tendo-a estacionado junto à paragem dos táxis.
23º
O arguido (…) por sua vez, fez-se transportar para o local na viatura de marca Fiat, modelo Punto, de cor azul, com a matrícula espanhola n° …, a qual estacionou ao lado da viatura Nissan Navara.
24º
Depois de terem confirmado a chegada do avião, os arguidos (...) e (…) tomaram posições no Aeroporto, por forma a não permitir que o casal (...) e (...) pudesse estabelecer outro contacto que não com eles, ou irem-se embora sem os contactarem.
25°
Assim, os arguidos (...) e (...) depois de terem saído das viaturas, dirigiram-se para o interior do Aeroporto, após o que se separaram, colocando-se o primeiro ao lado da paragem de táxis, enquanto o segundo se colocou junto a uma das portas rotativas das chegadas.
26º
Cerca das 08h46, depois do casal ter saído da porta da Alfândega, foram abordados pelo arguido (...), o qual os cumprimentou;
27º
De seguida, o arguido (…), depois de se apossarem das malas de viagem do casal, conduziram-nos para o interior da viatura de marca Fiat Punto, fazendo-os sentar no banco traseiro, enquanto o arguido (...) o qual já aguardava junto à viatura, também entrou e se sentou ao volante, fazendo de imediato movimentar a viatura, com o banco dianteiro vazio.
28°
Entretanto, os arguidos (...) e (…) entraram para a viatura de marca Nissan Novara, tomando ambas as viaturas a direcção da via A1- Ponte Vasco da Gama/….
29°
Cerca das 09h31m, na via A6, a viatura Fiat Punto veio a ser interceptada, depois de ter saído da área de serviço de Vendas Novas, pela Brigada de Trânsito da GNR, em acção concertada com a PJ-DCITE.
30º
Alguns minutos depois, veio a ser interceptada, no mesmo local, a viatura de marca Nissan Novara, onde seguiam os arguidos (...) e (…).
31º
Os arguidos e o casal foram todos conduzidos às instalações da BT em Vendas Novas, onde vieram a ser revistados.
32º
A (...) detinha consigo, e foi-lhe apreendido:
. Uma cinta em tecido, no interior da qual se encontravam dissimuladas 358 pequenas embalagens, vulgarmente designadas por bolotas, contendo um produto em pó que se determinou ser cocaína, com o peso bruto de 4,4 quilos;
. Um calção em licra, de cor vermelha;
. 1 telemóvel da marca Philips, modelo 355, com o IMEI , contendo no interior 1 cartão da operadora espanhola Amena Auna , a que corresponde o telemóvel n°… , com o pin… .
33º
O (...) detinha consigo e foi-lhe apreendido:
. Uma cinta em tecido, no interior da qual se encontravam dissimuladas 358 pequenas embalagens, vulgarmente designadas por bolotas, contendo um produto em pó que se determinou ser cocaína, com o peso bruto de 4,450 quilos;
. Um calção em licra, de cor azul.
34º
O arguido (…) detinha consigo e foram-lhe apreendidos os seguintes objectos, documentos e valores, relacionados com a actividade que ora lhe é imputada:
. Dinheiro, no montante de 600 euros
. 1 recibo de posto telefónico referente a uma chamada realizada para a Bolívia;
. 1 telemóvel de marca Nokia, modelo 6100. de cor cinzenta, contendo cartão SIM cujo número é o , com o
. 1 cartão com dados de segurança SIM da operadora “telefónica”, com o n° ;
. 3 papéis manuscritos.
35°
O arguido (...) detinha consigo e foram-lhe apreendidos os seguintes objectos, documentos e valores, relacionados com a actividade que ora lhe é imputada:
. 1 talão de envio de dinheiro para a Bolívia, através da “Westem Union”, no valor de 2600 euros e datado de 18 de Outubro de 2006;
. 1 contrato de aluguer com o n° 884, do veículo Fiat Punto com a matrícula espanhola 1 158BZB, para o período de 11/10/2006 a 18/10/2006;
. 1 contrato de aluguer com o n° 888, para a mesma viatura, para o período de 18/10/2006 a 25/10/2006;
. 1 papel com fotocópia de três bilhetes de identidade espanhóis, em nome de (…) e (…);
. Dinheiro, no montante de 140 euros e 16 reais do Banco Central do Brasil.
36°
No interior da viatura de marca Fiat Punto, alugada pelo arguido (...) em Espanha, este arguido detinha consigo os seguintes objectos e documentos, relacionados com a actividade que ora lhe é imputada:
. 1 recibo de aluguer da viatura, em nome de (…);
. 1 telemóvel da marca “Siemens-Benq”, modelo A31 com o IMEI, , contendo no interior um cartão da operadora espanhola Vodafone n° B02 (…), a que corresponde o n° (…);
. 1 agenda de cor preta, imitação de pele, contendo, designadamente, a seguinte inscrição: “9.40 ida 15.Octobre” e 5.15 vuelta 22.Octobre”.
. 1 duplicado de recibo de envio de dinheiro via “Western Union” para a Bolívia, com o n°41451 sendo remetente o arguido JOSÉ MU1 e beneficiário um tal (…);
. 1duplicado de recibo de envio de dinheiro via “Western Union” para a Bolívia, com o n° 4575379, sendo remetente um tal (…) e beneficiário um tal (…).
37º
O arguido (...) detinha consigo e foram-lhe apreendidos os seguintes objectos, documentos e valores, relacionados com a actividade que ora lhe é imputada:
. Dinheiro, no montante de 2407 euros;
. 1 recibo de portagem da “Brisa-Auto-Estradas de Portugal” referente ao percurso entre o acesso de Paderne e a saída no Pinhal Novo, com a data de 23/10/2006;
. 1 recibo de portagem da Ponte Vasco da Gama, com a data de 23/10/2006, às 05h51;
. 1 panfleto contendo um pó branco que se determinou ser cocaína, com o peso bruto de 0,89 gramas.
38º
No interior da viatura de marca Nissan Novara, a qual era conduzida pelo arguido (...), este detinha consigo os seguintes objectos e documentos, relacionados com a actividade que ora lhe é imputada:
o 1 documento manuscrito com os dizeres “Atlântico” e “..”;
. 1 papel manuscrito com os nomes de (…) e (…);
. 1 recibo electrónico com o n° (…), com o código de reserva 36RGC3, em nome de (…), efectuando reserva para o percurso Málaga-Lisboa, no dia 31 de Outubro de 2006 e Lisboa-Málaga- Lisboa, no dia 14 de Novembro de 2006;
. 1 recibo de bilhete electrónico com o n° …, com o código de reserva 36RBHL, em nome de (…), efectuando reserva para o percurso Lisboa-São Paulo, no dia 1 de Novembro de 2006 e São Paulo-Lisboa, no dia 13 de Novembro de 2006;
. 1 reserva de uma viagem para o dia 6 de Novembro, cujo percurso é Lisboa-São Paulo, em nome de um tal Miguel Garcia;
. 1 reserva de uma viagem para o dia 6 de Novembro, cujo percurso é Lisboa-São Paulo, em nome de uma tal (…);
. 1 reserva de uma viagem para o dia 6 de Novembro, cujo percurso é Lisboa-São Paulo, em nome de urna tal (…);
. 1 reserva de uma viagem para o dia 6 de Novembro, cujo percurso é Lisboa-São Paulo, em nome de um tal (…);
. 1 reserva de uma viagem para o dia 6 de Novembro, cujo percurso é Lisboa-São Paulo, em nome de um tal (…);
. 1 reserva de uma viagem para o dia 6 de Novembro. cujo percurso é Lisboa-São Paulo, em nome de uma tal (…);
. 1 factura emitida a AV VIAJES, relativa à reserva de 6 (seis) viagens, cujo percurso é Lisboa-São Paulo, totalizando o valor de 7926,78 euros;
. 1 recibo pago, emitido pela empresa AV VIAJES, relativo à factura supra mencionada, no valor de 7926,78 euros;
. Dinheiro do Banco Central do Brasil, no montante de 236 reais;
. 1 cartão de segurança da operadora móvel de telecomunicações “Vodafone”, com a indicação do PIN (…) e do PUK (…);
. 1 cartão de segurança da operadora móvel de telecomunicações “Movistar- telefónica”, com a indicação do PIN 9686 e do PUK ;
. 1 telemóvel da marca Motorola, cor preto e prateado, com o IMEI(…), contendo o cartão SIM com o n° ;
. 1 telemóvel da marca Grundig, modelo G600i, de cor prateada, com o IMEI (…) contendo o cartão SIM com o n° (…)
. 1 telemóvel da marca Nokia, modelo 6101, de cor preto e cinzento, com o IMEI (…) contendo um cartão SIM;
. Diversos papeis manuscritos, contendo números de telefone de outros indivíduos pertencentes à organização de narcotráfico, designadamente da (…), cidadã boliviana, de alcunha “Bete” e de familiares desta, salientando-se o de (…), todos referenciados pelas Autoridades Brasileiras no âmbito do tráfico de estupefacientes. Contêm ainda os manuscritos a indicação de valores referentes aos “negócios” em curso.
39º
Entretanto, no Brasil, na sequência, da informação remetida às Autoridades Judiciárias desse país através do Pedido de Cooperação Judiciária e do procedimento criminal instaurado com base nela, veio
a ser detida a referida cidadã boliviana (…), filha de (…) e (…), nascida a 10 de Agosto de 1957 e portadora do B. 1. n° 1981 788, da Bolívia.
40°
Bem conheciam, os arguidos (...) e (…), a natureza e características da substância que importaram ou pretenderam importar para Portugal, que foi apreendida nos autos, designada por cocaína,
41°
Pretenderam, os arguidos (...) e (…), com as suas condutas, auferir lucros pecuniários com os diferenciais entre os preços de aquisição venda de tal produto.
42°
Os arguidos (...) e (…) agiram de forma deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo serem proibidas todas as suas descritas condutas.
43º
O arguido (...) trabalhava em Espanha como vendedor de cavalos e como padeiro, auferindo mensalmente na primeira actividade cerca de 400 Euros por mês e na segunda cerca de 1100 euros por mês;
44º
O arguido (...), tem dois filhos de 7 e 14 anos de idade;
45º
O arguido (...) é consumidor de cocaína;
46º
O arguido (…) trabalhava com empresário em Espanha, no ramo da construção civil e na exploração de um bar;
47º
Dos Certificados do Registo Criminal dos arguidos juntos aos autos nada consta registado.
2. 2 - Factos não provados:
-Com interesse não resultou provado que:
1º
Os três arguidos, desde data não concretamente apurada, integravam uma organização transnacional de indivíduos que se dedicava à actividade de aquisição e venda de drogas, designadamente cocaína, em elevadas quantidades, com o intuito de auferirem elevados lucros nessa actividade, obtidos através dos diferenciais entre os preços de aquisição e venda de tal produto.
2º
A rede que os arguidos integravam está fortemente implantada na zona de Málaga - Espanha, e vinha, desde há algum tempo, a utilizar o aeroporto de Lisboa como porta de entrada daquele produto, proveniente da América do Sul, na Península Ibérica.
3º
Tal produto era, posteriormente, traficado/distribuído por vários países europeus, designadamente Portugal e Espanha.
4º
A cocaína era proveniente da Bolívia, o país produtor, de onde era transportada para o Brasil e, deste país, remetida por correios / contratados pela organização, de avião, para a Europa, designadamente Portugal.
5º
O arguido (...) chefiou todas as operações de narcotráfico da organização.
6°
O arguido (...) no seio da organização, estava encarregue, designadamente, de contratar os correios, bem como de assegurar o pagamento das despesas inerentes às viagens e estadias dos mesmos.
7º
O arguido (…), por sua vez, dava apoio, como motorista e segurança, participando no controlo dos correios que transportavam a cocaína, depois do desembarque dos mesmos.
8º
Depois de terem confirmado a chegada do avião, o arguido (…) tomou posição no Aeroporto, de forma a não permitir que o casal (...) e (...) pudessem estabelecer outro contacto que não com os próprios arguidos, ou irem-se embora sem os contactarem.
9º
Cerca das 08h46, depois do casal ter saído da porta da Alfândega, o arguido (…) manteve-se muito próximo, de forma a cercar e condicionar a movimentação do casal
10º
Bem conhecia o (…), a natureza e características da substância que importaram ou pretenderam importar para Portugal, que foi apreendida nos autos, designada por cocaína.
11º
Pretendeu o arguido (…), com as sua conduta, auferir lucros pecuniários com os diferenciais entre os preços de aquisição e venda de tal produto.
12º
Os arguidos agiram sempre com a perfeita consciência de que integravam um grupo organizado, chefiado pelo arguido (...), bem cientes da função que a cada um deles competia.
13º
O arguido (...) agiu a pedido do (…) e (…), por amizade e sem ter qualquer beneficio material.
2-3 Motivação de facto:
O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade dada como provada e não provada com base na apreciação critica de toda a prova produzida – cf. Artº 127º do CPP- designadamente, tendo em conta o teor dos documentos constantes dos autos, bem como tendo em conta os depoimentos das testemunhas inquiridas nos autos para memória Futura, (...) e (...), que se encontram documentadas nos autos, bem como no teor dos depoimentos das testemunhas de acusação e defesa ouvidos no decurso da audiência de julgamento, sendo que se consideram tais depoimentos lógicos objectivos e por isso credíveis. Foram ainda tidos em conta as declarações dos arguidos, no que respeita à sua situação sócio económica, não tendo merecido credibilidade o referido pelos arguidos (...) e (..), no que se refere à sua participação no desenrolar dos factos embora admitam a participação neles, designadamente as razões referidas pelo arguido (...) para se ter deslocada a Lisboa, que não são minimamente credíveis, pelo que e relativamente a ambos se deram como provados os factos que acima constam.
No que se refere ao arguido (…) o mesmo negou o seu envolvimento na pratica dos factos, as testemunhas ouvidas para memória futura, não o conheciam, nem com ele referiram ter tido qualquer contacto, sendo que o facto de se ter deslocado a Lisboa e ter estado no aeroporto e viajado com os demais arguidos e o que foi apreendido na sua posse é manifestamente insuficiente para serem considerados provados os factos que lhe vinham imputados pelo Ministério Público, daí que tais factos tenham sido dados como não provados.
Igualmente foram dados como não provados os demais factos acima referidos, designadamente os que se prendiam com o facto dos arguidos pertenceram a uma organização internacional, para a pratica dos factos que constituem o objecto destes autos, sendo que se considerou que era manifestamente insuficiente para prova de tal, o referido de forma abstracta pelas testemunhas inquiridas para memória futura nos autos, (não se referiram a várias situações concretas, donde tal resultasse) bem como o teor dos documentos que foram apreendidos aos arguidos, o seu modo de actuação que resulta da factualidade provada e o facto de não terem sido efectuadas as viagens já marcadas, a que se referem os documentos apreendidos e que constam da factualidade assente.”
Das conclusões formuladas nos recursos, extraem-se as seguintes questões:
A. Pelo arguido (…):
1. Vicio da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, relativamente aos factos 1 e 2 provados;
2. Nulidade do acórdão nos termos do art.º 379º n.º 1 al. c) CPP, por omissão de pronuncia quanto ao modo de cometimento do crime;
3. Nulidade do acórdão, nos termos do art.º 379º n.º 1 al. a) CPP, por falta de fundamentação quanto aos lucros pecuniários que o recorrente iria auferir;
4. Medida da pena que qualifica de excessiva;
5. Suspensão de execução da pena que entende ser de fixar no mínimo da moldura respectiva.
B. Pelo arguido (…):
1. Nulidade do inquérito, nos termos dos art.ºs 118º n.º 1 e 119º al. b) CPP, face à utilização de agentes encobertos sem autorização e controle judicial e falta de promoção do processo pela autoridade legitima.
2. Ilegalidade da acção encoberta atenta a alteração do estatuto processual dos agentes encobertos, a ocultação da identidade dos agentes encobertos e ausência de despacho a autorizar tal acção;
3. Inconstitucionalidade da Lei 101/2001 de 25/08;
4. Violação do principio do contraditório com o indeferimento da audição em audiência dos agentes encobertos;
5. Nulidade do acórdão nos termos do art.º 379º n.º 1 al. c) CPP por omissão de pronuncia quanto a factos alegados em contestação;
6. Nulidade do acórdão por inexistência de exame critico da prova relativamente aos factos provados descritos sob os n.ºs 1, 3 e 4;
7. Medida da pena que considera não reflectir o grau de intervenção do recorrente face ao co-arguido, o consumo de drogas duras pelo recorrente, ausência de passado criminal e situação familiar bem como a facilitação do cometimento do crime.
8. Ausência de nomeação de intérprete (suscitada no recurso intercalar).
Dentre as várias questões suscitadas nos recursos interpostos, existem questões cujo conhecimento, a proceder a tese dos recorrentes, acarretam a inutilidade de conhecimento das demais questões.
Assim, e com essa influência, temos os invocados vícios da decisão final relativo às nulidades do acórdão por ausência de fundamentação e inexistência de exame critico da prova (art.º 379º n.º 1 al. a) CPP) bem como por omissão de pronuncia relativamente a factos constantes da contestação do arguido (...) e que não foram levados à decisão final.
Com esta finalidade, temos que o recorrente (...) argúi a nulidade da sentença defendendo que a mesma não se mostra suficientemente fundamentada, designadamente em termos de análise crítica das provas.
Diz o art.º 374º n.° 2 do C.P.P. que, 'ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”.
Quando assim não suceda, a sentença é nula, por força do disposto no art. 379º n.° 1, al. a) CPP, sendo que também a C.R.P. preceitua no seu art.° 205°, n.° 1, que as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.
Do mesmo modo, na materialização do referido preceito constitucional, também o art.º 97°, n.° 4, do C.P.P. dispõe que 'os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão'.
Tolda Pinto, por sua vez, in 'A Tramitação Processual Penal', 2° Ed., pág. 206 sgs., diz que 'a fundamentação das decisões judiciais, em geral, cumpre duas funções: a) - Uma de ordem endoprocessual – que visa impor ao juiz um momento de verificação e controle critico da lógica da decisão, permitir às partes o recurso da decisão com perfeito conhecimento da situação e ainda colocar o tribunal de recurso em posição de exprimir, em termos mais seguros, um juízo concordante ou divergente; b) - Outra, de ordem extraprocessual – que procura, acima de tudo, tomar possível um controle externo e geral sobre a fundamentação factual, lógica e jurídica da decisão.
(...) Relativamente àquela, uma vez que se liga directamente com o princípio consagrado no art.º 32°, n° 1, da Constituição, a fundamentação das decisões judiciais justifica-se, desde logo, na medida em que funciona como garantia de racionalidade, imparcialidade e ponderação da própria decisão judicial. A motivação da decisão judicial funciona aqui como elemento de controle interno necessário do princípio da livre convicção do juiz em matéria probatória'.
Segundo Eduardo Correia, in Revista do Direito e de Estudos Sociais, ano XIV, igualmente citado por aqueles, 'a motivação da decisão é também imprescindível, entre outras razões, para favorecer o auto-controle dos juízes, designadamente, obrigando-os a analisar, à luz da razão, as impressões recolhidas no decurso da produção da prova, bem como para estimular a recolha jurisprudencial de regras objectivas de experiência e o respeito pela lógica e pelas leis da psicologia judiciária na apreciação das mesmas'.
Isto é, '(...) a fundamentação de facto e de direito, da decisão judicial, visa, primeiramente, garantir uma mais adequada ponderação da prova produzida, bem como do direito aplicável'.
Justifica ainda este a necessidade de fundamentação pela garantia assim dada à ponderação dos argumentos da defesa, do mesmo modo que constitui um elemento imprescindível ao exercício efectivo do direito ao recurso.
Germano Marques da Silva, por sua vez, in 'Curso de Processo Penal', HI Vol., diz também que 'é hoje entendimento generalizado que um sistema de processo penal inspirado nos valores democráticos não se compadece com decisões que hajam de impor-se apenas em razão da autoridade de quem as profere, mas antes pela razão que lhes subjaz.
(...) A fundamentação dos actos é imposta pelos sistemas democráticos com finalidades várias. Permite o controle da legalidade do acto, por uma parte, e serve para convencer os interessados e os cidadãos em geral acerca da sua correcção e justiça, por outra parte, mas é ainda um importante meio para obrigar a autoridade decidente a ponderar os motivos de facto e de direito da sua decisão, actuando por isso como meio de autocontrole.
A ratio da exigência de fundamentação é a de submeter a decisão judicial a um maior controle por parte da colectividade e é também consequência da importância que assume no novo processo o direito à prova e à contraprova, nomeadamente o direito de defender-se, provando'.
Marques Ferreira, in 'Meios de Prova' - Jornadas de Direito Processual Penal, pgs. 228, sgs., na análise feita aos pressupostos constantes do referido art.º 374°, n.° 2, diz que “os motivos de facto não são nem os factos provados (thema decidendum) nem os meios de prova (thema probandum) mas os elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência'.
Também no acórdão proferido nos autos de recurso n.° 1097/02, do S.T.J., cujo Relator foi o Exmo. Conselheiro Carmona da Mota, se escreveu, quanto à fundamentação: '(...) Como observa o juiz FRANZ MATSCHER, a necessidade de motivar a decisão é uma das exigências do direito a um processo equitativo, consagrado no art.º 6.°, § 1.°, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, uma garantia integrante do próprio conceito de Estado de Direito, com tutela na Constituição - art.° 208°, n.° 1, da CRP -, deixando aquela à lei ordinária os mecanismos adequados à realização do modo mais perfeito possível dos pressupostos da necessidade de fundamentação, com tradução no art.° 374.° do CPP. Ao fulminar de nula a decisão que conheça do mérito da causa, tal preceito vem ao encontro da necessidade de se realizar um processo justo, sendo no quadro do direito a um processo equitativo que a doutrina tem tratado a exigência de motivação. O conteúdo do dever de motivação não pode abdicar de um leque de compreensíveis manifestações: o interessado tem o direito a ser persuadido de que se fez justiça e que os meios articulados foram examinados pelo julgador e a uma enumeração dos pontos de facto e de direito sobre os quais se edifica a decisão de modo a permitir-lhe a avaliação das probabilidades de sucesso dos recursos. Neste sentido se tem orientado a nossa jurisprudência quando interpreta a exigência de fundamentação expressa no art.º 374°, 2 do CPP, com o alcance de não poder prescindir-se da enunciação do raciocínio, do processo lógico, que levou o juiz a decidir numa dada direcção em ordem a poder concluir-se que a sua actuação não procede de arbítrio e de discricionariedade, de puro e insustentável capricho. Por outro lado, essa exigência legal tem um limite no sentido de não poder ser imposto ao julgador que exponha todo o raciocínio lógico que se encontra na base da sua convicção de dar como provado um certo facto, mas apenas os bastantes que levem a concluir que se examinaram as provas e que na decisão o tribunal obedeceu a um mecanismo lógico e racional, não a um processo cego e avesso à realização da justiça. Os termos da lei - n.° 2 do art.º 374º do CPP - não impõem 'uma pormenorização excessiva ou desproporcionada' (exposição tanto quanto possível, diz a lei), antes devendo a sentença conter aquele mínimo de referências que persuadam os interessados de que se fez justiça e lhe possibilitem avaliar as probabilidades de recurso, do mesmo modo que possibilite ao tribunal sindicar a decisão, designadamente apreciar os meios de impugnação apresentados.”
Neste sentido, a sentença assume-se mais como uma arte de bem julgar do que um trabalho científico ou doutrinário, escreve Lopes Rocha, in 'A Motivação da Sentença, Documentação e Direito Comparado', BMJ, Separata, ed. de Fevereiro de 1999, 106. A extensão de tal dever não tem que ser 'épica', sem embargo de dever permitir ao destinatário da decisão e ao público em geral apreender o raciocínio que conduziu o juiz a proferir tal sentença. Deste modo se compreende e aceita a jurisprudência do STJ que não impõe que na fundamentação se extractem os depoimentos e conteúdo dos restantes meios probatórios, já que a fundamentação não se confunde com a redução a escrito da prova, exigência que a lei não impõe, transformando a oralidade em documentação - BMJ 488, 272. A sentença, para além da indicação dos factos provados e não provados e dos meios de prova, deve conter os elementos, que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituem o substrato lógico e racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em dado sentido - STJ 13/2/92, CJ. 1, 1992, 36. Só assim o tribunal de recurso pode fundar uma merecida decisão de direito numa não menos merecida decisão de facto.
Ora, ante tudo o que se expõe, é óbvio que a sentença recorrida não cumpre os apontados deveres e finalidades da fundamentação. Relembramos aqui o que, nesta sede, ali foi mencionado:
“O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade dada como provada e não provada com base na apreciação critica de toda a prova produzida – cf. Artº 127º do CPP- designadamente, tendo em conta o teor dos documentos constantes dos autos, bem como tendo em conta os depoimentos das testemunhas inquiridas nos autos para memória Futura, (...) e (...), que se encontram documentadas nos autos, bem como no teor dos depoimentos das testemunhas de acusação e defesa ouvidos no decurso da audiência de julgamento, sendo que se consideram tais depoimentos lógicos objectivos e por isso credíveis. Foram ainda tidos em conta as declarações dos arguidos, no que respeita à sua situação sócio económica, não tendo merecido credibilidade o referido pelos arguidos (...) e José Muñoz, no que se refere à sua participação no desenrolar dos factos embora admitam a participação neles, designadamente as razões referidas pelo arguido (...) para se ter deslocada a Lisboa, que não são minimamente credíveis, pelo que e relativamente a ambos se deram como provados os factos que acima constam.
No que se refere ao arguido Sebastian o mesmo negou o seu envolvimento na pratica dos factos, as testemunhas ouvidas para memória futura, não o conheciam, nem com ele referiram ter tido qualquer contacto, sendo que o facto de se ter deslocado a Lisboa e ter estado no aeroporto e viajado com os demais arguidos e o que foi apreendido na sua posse é manifestamente insuficiente para serem considerados provados os factos que lhe vinham imputados pelo Ministério Público, daí que tais factos tenham sido dados como não provados.
Igualmente foram dados como não provados os demais factos acima referidos, designadamente os que se prendiam com o facto dos arguidos pertenceram a uma organização internacional, para a pratica dos factos que constituem o objecto destes autos, sendo que se considerou que era manifestamente insuficiente para prova de tal, o referido de forma abstracta pelas testemunhas inquiridas para memória futura nos autos, (não se referiram a várias situações concretas, donde tal resultasse) bem como o teor dos documentos que foram apreendidos aos arguidos, o seu modo de actuação que resulta da factualidade provada e o facto de não terem sido efectuadas as viagens já marcadas, a que se referem os documentos apreendidos e que constam da factualidade assente.”
E como primeira nota da citada fundamentação começamos por indicar que não se mostram referidos, com um mínimo de elencar dos mesmos, quais os documentos (prova documental) em concreto considerados, sendo certo que em todo o processado antecedente à audiência de julgamento foram produzidos e/ou juntos aos autos diversos documentos, nomeadamente, e como um padrão mínimo para este tipo de investigações sobre tráfico de estupefacientes, o resultante do exame pericial ao estupefaciente apreendido, os autos de apreensão lavrados no momento da detenção dos arguidos, os próprios documentos apreendidos aos arguidos e que acabam por ser referidos numa forma genérica e abstracta no final da fundamentação, apesar de descritos na matéria de facto provada.
É que os moldes em que ali se fazem referência às provas, nem, sequer, de exposição concisa, que a lei prevê e admite, se poderá falar. E para assim se concluir basta analisar aquela, na parte referente à motivação.
Alicerçando-se a prova, em grande parte, nas declarações das testemunhas, quer presenciais quer as prestadas para memória futura, e nos documentos apreendidos, cuja autenticidade não foi posta em causa, também em relação aos depoimentos prestados em audiência foram referidos pelo tribunal 'a quo' de uma forma tão abrangente e vaga sem que consiga saber minimamente sobre que matéria, em concreto, tais testemunhas depuseram.
Para além disso, naquela fundamentação adianta-se que os depoimentos das testemunhas de acusação “se consideram tais depoimentos lógicos objectivos e por isso credíveis” sem que se mostre indicado fundamento dessa qualificação. Por outro lado, e por referência às declarações dos arguidos, menciona-se que “… não tendo merecido credibilidade o referido pelos arguidos (...) e (…), no que se refere à sua participação no desenrolar dos factos embora admitam a participação neles, designadamente as razões referidas pelo arguido (...) para se ter deslocada a Lisboa, que não são minimamente credíveis” sem que o Colectivo adiante onde reside o ponto de ancoragem para a não concessão de credibilidade a essas versões.
Impunha-se, ainda, em vista do exame crítico das provas a que se refere a última fracção do n.º 2 do art. 374.º, do CPP, que se explicitassem, designadamente, as razões que levaram o Tribunal a credibilizar a versão das testemunhas, no cotejo com as versões, diversas e divergentes, dos arguidos – importaria traduzir, explicar, a fórmula, descarnada, da lógica, objectividade e por isso credíveis com que se epitetou a versão das testemunhas e aduzir, por exemplo, a materialidade que pudesse concluir-se a falta de coerência das razões dos arguidos.
Vale dizer que a motivação da decisão de facto não pode deixar de contemplar, para além da indicação das provas a partir das quais se formou a convicção do tribunal, também os motivos que levaram o juiz a considerar aquelas provas como idóneas e relevantes, eventualmente em detrimento de outras e, bem assim, os critérios utilizados na apreciação daquelas e o substracto racional que conduziu à convicção concretamente estabelecida - veja-se, a propósito, o Acórdão, da Relação de Coimbra, de 5-10-2000 (Colectânea de Jurisprudência, ano XXV, tomo IV, pp. 53 e segs.).
Sem isso, retira-se a génese e o desenvolvimento da convicção do Tribunal do alcance crítico dos sujeitos processuais, sonega-se à decisão a esperada e exigível «força de convencimento do arguido e dos membros da comunidade jurídica relativamente à bondade da decisão encontrada» Acórdão, do Supremo Tribunal de Justiça, de 2-5-2002 (Proc. 157/02 – 5.ª Secção), in www.stj.pt., em nítida infracção do dever de fundamentação estabelecido, maxime, nos arts. 205.º n.º 1, da Constituição, e 374.º n.º 2, do CPP.
Assim, e como pretexta o recorrente (...), a sentença recorrida é nula, em vista do disposto no art. 379.º n.º 1 al. a), do CPP, pois que não contém todas as menções exigidas no n.º 2 do art. 374.º, do CPP, designadamente o falado exame crítico das provas, cumprindo ao Tribunal recorrido a reparação desse vício.
O recorrente (...) suscita ainda a nulidade do acórdão por omissão de pronúncia acerca de factos que foram invocados na contestação (os relativos à relação de amizade que os agentes encobertos mantinham com um dos suspeitos, os contactos e conteúdo que tais indivíduos mantiveram com a PJ na sua estadia em Lisboa e a propriedade de um veículo aprendido nos autos ao recorrente) e que não se mostram conhecidos naquela decisão final.
Na verdade, na contestação apresentada pelo recorrente são indicados pelo recorrente factos relativos às indicadas matérias (vide fls. 973 e 974, pontos 1 a 3 e 6 a 8), sendo que essa factualidade não se mostra reflectida no acórdão final, quer indicando-os como provados quer como não provados ou, no mínimo dos mínimos, com uma breve indicação da irrelevância dos mesmos para os efeitos do art.º 368º n.º 2 CPP.
Conclui-se, pois, que relativamente a esses factos se verifica omissão de pronuncia na decisão final pelo que a sentença se encontra afectada de nulidade nos termos do art.º 379º n.º 1 al. c) CPP.
Ainda no capitulo da nulidade da sentença nos termos deste preceito, menciona o recorrente (…) que a sentença não se pronunciou sobre o modo e cometimento do crime pelo qual veio a ser condenado, no sentido de manifestar ambiguidade acerca da própria acção delituosa ao não dizer claramente se se verifica uma aquisição ou uma venda e, no facto 41 ao referir-se a lucros pecuniários, não fazer referência se os mesmos eram resultantes da aquisição se da venda.
Relativamente ao primeiro dos momentos, na integração jurídica dos factos dados como provados, o Colectivo, depois de citar o n.º 1 do art.º 21º do DL 15/93 de 22/1 não indica sob que forma de actuação do recorrente o tipo legal do crime de tráfico se mostra preenchido, sendo que este tipo permite o seu preenchimento sob dezoito (18) actividades materiais. Tal ausência reconduz-nos à suscitada nulidade da sentença.
Já relativamente aos lucros pecuniários referidos no facto 41, essa incompreensão resulta, para além do que acabámos de mencionara a propósito do modo de preenchimento do tipo, da falta de um elemento gramatical de ligação entre os termos “aquisição” e “venda”, elemento esse que não poderá deixar de ser a conjunção copulativa “e”, cuja omissão só podemos catalogar como erro material de escrita a suprir nos termos do art.º 380º n.º 1 al. b) CPP.
Assim, e como pretendem os recorrentes, a sentença recorrida é nula, face ao disposto no art. 379.º n.º 1 al.s a) e c), do CPP, pois que não contém todas as menções exigidas no n.º 2 do art. 374.º, do CPP, designadamente a fundamentação e o falado exame crítico das provas, verificando-se omissão de pronuncia relativamente aos pontos indicados, cumprindo ao Tribunal recorrido a reparação desse vício.
E por via dessa nulidade, torna-se inútil apreciarmos a demais questões suscitadas nos recursos e que acima elencámos.
III.
Nestes termos, decide-se julgar procedente os recursos interpostos pelos arguidos e, em consequência, declarar nulo o acórdão recorrido, determinando que o mesmo tribunal a quo profira nova decisão, suprindo os apontados vícios.
Não são devidas custas.
Feito e revisto pelo 1º signatário.
Lisboa, 17 de Julho de 2008.