Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa
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    Jurisprudência da Relação Criminal
Assunto    Área   Frase
Processo   Sec.                     Ver todos
 - ACRL de 26-06-2008   Tráfico de estupefacientes. Agravação.
Para a agravação da al. b) do art.º 24.º do DL 15/93 de 22/1, torna-se necessário que se prove a efectiva distribuição por grande número de pessoas, mas para a agravação da al. c) do mesmo, basta considerar a venda de 13 kgs de heroína é altamente lucrativa como é notório.
Proc. 252/2008 9ª Secção
Desembargadores:  Fernando Correia Estrela - Margarida Vieira de Almeida - Guilherme Castanheira -
Sumário elaborado por Paulo Antunes
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Acordam na 9.ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I – No proc.º (…) da 1.ª Vara de Competência Mista de Loures por acórdão de 20 de Setembro de 2007, foi decidido:
a) Julgar parcialmente procedente a acusação deduzida contra o arguido (…) e, em consequência, condená-lo pela prática, em autoria material, de um crime de tráfico ilícito de estupefacientes, agravado, previsto e punível pelos art.ºs 21.º, n.º 1, e 24.º, alínea c), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, com referência às tabelas I-A e I-B anexas ao mesmo diploma, na pena de 11 (onze) anos de prisão.
b) Por ter sido utilizado e estar destinado a servir para a prática de crimes de tráfico de estupefacientes, nos termos dos art.ºs 35.º, n.º 1 e 36.º, n.ºs 2 e 5 do Dec. Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, declarar perdido a favor do Estado o veículo automóvel da marca “BMW”, modelo “525 TDS”, de matrícula (…).

II – A) Inconformado, de fls. 10202 a 10211 o arguido (…) interpôs recurso formulando as seguintes conclusões:
( Recurso do acórdão condenatório proferido ):
DE FACTO (ARTIGO 412°, N° 3 DO CPP)
1. Encontra-se erradamente julgada a matéria considerada como provada sob os.....- 2, 3, 4, 7, 8, 11, 13, 17, 19, 22, 24, 25, 26, 27, 29 e 30 da matéria considerada apurada.
2. A matéria constante dos n° 5, 6, 9, 10, 12, 14, 15, 16, 20, 21 e 23 da mesma matéria não lhe diz respeito e nem se entende a que propósito é chamada à colação.
3. A matéria referida supra sob 1 encontra-se erradamente julgada pelos fundamentos de facto supra aduzidos em A), n° 6 a 20 , que se dão como reproduzidos.
DE DIREITO (ARTIGO 412°, N° 1 E 2 DO CPP)
1. O acórdão recorrido é nulo, porquanto não tem o exame crítico das provas que serviram para fundamentar a decisão do tribunal e utilizou meios de prova não examinados em audiência.
2. Da leitura da mesma fundamentação, ressalta que, é impossível encontrar o processo de formação de convicção do tribunal, por forma a que o mesmo possa ser atingido e acompanhado externamente.
3. Aliás, no que às testemunhas concerne, limita-se a ser narrativa, não contendo qualquer exame crítico da mesma.
4. De fls. 28 a 34 e de fls. 42 a 45 tenta colocar o recorrente em escutas telefónicas, por via directa ou mesmo indirecta, mas esquecendo que inexiste qualquer elemento objectivo que ligue o recorrente a tais conversas transcritas.
5. Tal nulidade, verificada por força das disposições combinadas nos artigos 374°, n° 2 e 379°, n° 1, al a) do CPP, obriga à reformulação do acórdão.
6. Foi indevidamente utilizado o depoimento indirecto.
7. Efectivamente, tendo a co-arguida (...) sido presente a tribunal e tendo-se recusado a depor, o que eventualmente possa ter dito, não pode ser reproduzido por terceiros.
8. A isso de opõe o disposto nos artigos 129°, n° 1, 356° e 357°, todos do CPP.
9. Por mera cautela, desde já, se vem arguir a inconstitucionalidade da interpretação de tais normativos, no sentido de que o testemunho de ouvir dizer, sustentado em depoimento de co-arguido, que chamado à audiência, não quis prestar declarações, pode ser valorado nessa parte é inconstitucional, por violação do artigo 32°, n° 1 e 5 da CRP.
SEM PRESCINDIR
10. O recorrente tem as características específicas constantes do n° 31 da matéria apurada. Aí ressalta, antes de mais, a sua limitadíssima preparação intelectual, o facto de não ter tido medidas de flexibilização no cumprimento da pena pela pendência de processos nos quais viria a ser absolvido e a estabilização social, pessoal e profissional.
11. Os factos ora em apreço têm mais de 6 anos, sem que haja notícia de cometimento de mais crimes, por parte do recorrente que tem demonstrado ter bom comportamento.
12. Tal significa que, face aos critérios do artigo 71° do CP, se adequava a cada crime pena parcelar igual ao mínimo legal abstracto.
13. A decisão ao ter entendido de outra forma violou o artigo 71° do CP e bem assim o artigo 21° do DL 15/93.
14. Mantém interesse nos recursos interlocutórios de fls. 9639 a 9642 e 9804 a 9806.
15. Requer se realize audiência, onde deverão ser debatidos quer a matéria de facto quer a matéria de direito impugnadas (artigo 411°, n° 5 do CPP), incluindo a dos recursos interlocutórios, bem como a do que foi interposto após a leitura do acórdão e dos que ainda vão ser interpostos.

II – B) Inconformado com o do despacho de fls. 10220 a 10221 que declarou a excepcional complexidade do processo a fls. 10180 a 10182 o arguido (...) interpôs recurso formulando as seguintes conclusões:
1. O recorrente apenas está detido à ordem dos presentes desde 8 de Junho último (2007).
2. A excepcional complexidade só tem sentido em caso de dificuldades do procedimento.
3. No caso concreto, as mesmas não se verificam, já que na fase de julgamento, fase em que a mesma foi decretada, não houve qualquer dificuldade de procedimento, tendo a mesma tido apenas 3 sessões que foram gravadas em 6 cassetes.
4. Assim, inexiste qualquer razão para a declaração de excepcional complexidade.
5. Ao ter entendido de outra forma, violou a decisão recorrida o artigo 215.º, ° 3 do CPP. Assim, deve ser revogada.

II – C) Recurso de fls 10199 a 10201 do despacho de indeferiu a irregularidade “pelo facto de não ter sido lido em audiência os meios de prova e convicção do Tribunal de forma correcta”:
1. Sendo certo que a leitura da fundamentação pode ser efectuada por súmula, não obedeceu a tal imposição o ocorrido na leitura do acórdão onde o Sr Juiz se limitou, em sede de fundamentação de facto, a dizer o seguinte: os meios de prova e as razões da convicção do tribunal são muito extensos pelo que vou referi-los por súmula. E acrescentou, segundo os apontamentos que o signatário recolheu, logo na altura: a prova consiste na prova testemunhal produzida em audiência, essencialmente, nos depoimentos dos senhores agentes da PJ e nas escutas telefónicas não declaradas nulas.
2. É que a súmula tem de ser resumo donde o interessado consiga inferir os motivos de facto da decisão, o que, face ao dito, não ocorreu no caso concreto.
3. O recorrente, que não sabe ler, nem escrever, saiu da sala sem ter conseguido alcançar as razões que levaram à sua condenação.
4. Por isso, se pediu a palavra para arguir o respectivo vício, palavra que não foi concedida, pelo que, de novo, se pediu, em vão, a palavra para formular protesto nos termos do artigo 75° do EOA, acto obrigatório, que nem sequer ficou a constar da acta.
5. Cometeu-se, assim, na leitura do acórdão, a nulidade prevista no artigo 372°, n° 3 do CPP.
6. Nulidade que deve ser declarada, com as consequências legais.
(Para o caso de se suscitar qualquer dúvida sobre a realidade efectivamente ocorrida na sala de audiências, face ao facto do Sr. Juiz não ter concedido a palavra, quer para requerimentos, quer para o protesto, pelo que a mesma realidade não pode ficar a constar, então, da acta, arrola-se como prova testemunhal todas as pessoas constantes da acta, bem como o guarda prisional que custodiava o recorrente).

II – D) Recurso do arguido (...) de fls. 9807 a fls. 9809 do despacho de fls. 9482 e 9484.
1. A prova produzida ou examinada em audiência está sujeita aos critérios dos artigos 355.º a 357° do CPP.
2. Assim, só é permitida a leitura de peças processuais necessárias ao avivamento da memória quando se tratar de leituras de declarações prestadas perante o juiz e exclusivamente na parte necessária, de quem na audiência declarar que já aio recorda certos factos.
3. A folhas 25 e 26 e 45 e seguintes constam informações de agentes policiais para os seus superiores. Estas são declarações dos agentes policiais para a hierarquia.
4. A leitura de informações de serviço relativamente a quem nada sabe sobre os factos em discussão, naturalmente, contraria a espontaneidade do depoimento.
5. Não pode o Sr Juiz Presidente, por sua iniciativa, colocar as testemunhas a ler informações de serviço para poderem continuar o depoimento, até porque tal tipo de peça processual, formalmente, não é do seu conhecimento.
6. A decisão recorrida ao ter permitido, nas circunstâncias em que tal ocorreu, que as testemunhas lessem informações de serviço para continuar o depoimento, violou os artigos 355° a 357.º e 138°, n.º 2 do CPP.
7. Assim, deve ser declarado que o depoimento de tais testemunhas, após a leitura das informações de serviço, não pode ser valorado como meio de prova.

II – E) Recurso do arguido (...) de fls 9639 a 9642 do despacho de fls. 9443.
1. As escutas telefónicas dos autos foram efectuadas sem que, no que a todas concerne, nos despachos que as autorizaram, tivesse sido justificada a sua necessidade e sem que, algumas delas, as referidas no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, junto com o requerimento que deu origem à decisão recorrida, tivessem tido efectivo acompanhamento judicial devidamente documentado nos autos.
2. Quer dizer, que todas as escutas dos autos foram produzidas sem observação das formalidades legais que as tomam lícitas.
3. A desobediência a tais formalidades tornam-nas prova proibida.
4. Sendo prova proibida, jamais podem ser utilizadas na fundamentação de qualquer decisão.
5. A decisão recorrida ao ter entendido de outra forma, violou os artigos 18° e 32°, n° 8 da CRP e os artigos 118°, n° 3 e 126°, n° 3 , ambos do CPP.
6. Assim, deve ser revogada, com as consequências legais.

II - F) Recurso de fls. 10215 a 10516 do despacho que considerou não ocorrer nulidade relativa à dilação entre a produção da prova e a leitura do acórdão em audiência.
1. No acórdão foi utilizada para fundamentar a decisão sobre matéria de facto prova testemunhal produzida há quase três anos.
2. Não o podia ser, face ao disposto no artigo 328°, n° 6 do CPP.
3. Logo que teve conhecimento do vício, o recorrente arguiu-o, de imediato.
4. Assim, tem de ser declarada a verificação do mesmo, com as consequências legais.

III – Em resposta, o Ministério Público na 1.ª instância veio dizer em conclusão:
A. Sobre a declaração de especial complexidade:
1. O Recorrente deve ser convidado a esclarecer as 'conclusões' formuladas nos termos do disposto no n° 3° do artigo 417° do C.P.P. e na nova redacção advinda da Lei n° 48/2007 (ou seja, a indicar com precisão - e em 10 dias - qual o objecto do Recurso, sob pena da respectiva rejeição), mas sem alteração do âmbito do Recurso já fixado na Motivação (n° 4° do mesmo artigo e diploma legais).
2. Isto porque às ora apresentadas faltam a clareza e a objectividade necessárias à concretização e identificação das questões a decidir.
3. Independentemente dessa Questão Prévia, certo é que o despacho ora impugnado se encontra devidamente fundamentado, (...)e se encontrando narradas e explicadas as razões que levaram a que o Processo fosse considerado (e declarado) especialmente complexo.
4. E nada exigiria, sequer, que tal especial complexidade fosse declarada, já que, resultando automaticamente do anterior quadro legal (artigo 54° n.° 3° do Decreto-Lei n.° 15/93 de 22/01), a revogação deste pela Lei n° 48/2007 não impõe que a especial complexidade do Processo deixe de fazer surtir qualquer efeito com a entrada em vigor dessa nova Lei.
5. É que a Lei Processual entra imediatamente em vigor, mas sem prejuízo dos actos validamente realizados no domínio da lei anterior (artigo 5° n° 1° do C.P.P.).
6. Sendo certo que a prorrogação do prazo de prisão preventiva por força da especial complexidade ocorrera já, e validamente, no domínio da lei anterior, sem necessidade de despacho que a declarasse.
7. Pelo que, consequentemente, a referida especial complexidade se mantém, com os efeitos que tem sobre os prazos de prisão preventiva.
8. Em qualquer caso e não sendo embora necessária a declaração expressa da especial complexidade do Processo, o Tribunal recorrido optou (e bem) por vir declará-la através do despacho ora impugnado, após ter cumprido todas as formalidades para tal previstas na Lei Processual Penal.
9. Esse despacho é plenamente válido e legal.
10. Em primeiro lugar, porque foi proferido ainda na 1.a instância pelo juiz competente; em segundo lugar, porque o seu poder jurisdicional não estava esgotado em relação à situação dos arguidos, como o não estava também em relação à declaração de especial complexidade, que não tem a ver com a decisão de fundo proferida pelo Colectivo, mas apenas com a circunstância de o processo se mostrar de complexidade fora do normal e isso exigir um alargamento dos prazos de prisão preventiva; em terceiro lugar, porque a Lei não fixa nenhum momento especial até ao qual deva ser declarada a especial complexidade, exigindo apenas que ela ocorra 'durante' a 1.a instância.
11. TERMOS EM QUE, independentemente da Questão Prévia suscitada, desde já se pugna pela total improcedência do Recurso
B. Sobre o recurso da decisão condenatória.
1. O douto acórdão recorrido não nos merece qualquer censura, pois bem ajuizou da prova produzida em audiência, fazendo correcta qualificação dos factos e aplicando correctamente a pena.
2. Não padece de qualquer nulidade, nem violou qualquer preceito do C. P. Penal, nem mesmo o disposto no art° 32°, n° 2 da Constituição da República Portuguesa.
3. Deverá pois manter-se o douto acórdão.
C. Sobre o recurso da decisão do Tribunal a quo em proceder á leitura por súmula do acórdão:
Não ocorreu qualquer nulidade, já que a leitura por súmula efectuada foi suficiente para que o arguido entendesse as razões da condenação.
D. Do depoimento indirecto.
Não ocorreu qualquer nulidade no depoimento dos agentes da PJ, valorados nos termos do disposto no art.º 129.º C.P.P..
E. Da fundamentação e análise crítica da prova.
Não se verifica qualquer nulidade (art.º 379.º do C.P.P.) , já que foram observados os requisitos legais para a fundamentação da decisão.

IV – Transcreve-se as decisões recorridas:

Despacho de 16.09.2004
Veio o arguido requerer (fls. 9374 a 9377) que se declare 'que não podem ser utilizadas como meio de obtenção de prova as escutas que o Tribunal da Relação de Lisboa declarou nulas no seu acórdão de 10 de Dezembro' e, ainda, que são 'nulas todas as outras escutas dos autos'.
Convém recordar que, estando em fuga e ausente em parte incerta de Espanha na sequência da sua evasão numa altura em que cumpria pena de prisão no Estabelecimento Prisional de Paços de Ferreira, o arguido (...) não foi notificado, logo na altura em que foram proferidos, dos despachos de acusação de pronúncia.
Detido em Julho de 2002, foi, então, notificado desses despachos e teve oportunidade de exercer todos os direitos de defesa, designadamente o de arguir nulidades.
Tendo requerido a abertura de instrução, podia, nomeadamente, arguir a nulidade das intercepções das conversações telefónicas efectuadas no âmbito do processo até ao encerramento do debate instrutório (art.° 120.°, n.° 3, al.c), do Cód. Proc. Penal).
Não o fez, certamente por entender que não havia fundamento para tanto, e por isso, se nulidade alguma foi cometida, ela não poderá deixar de considerar-se sanada.
Quando ao acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa a que se refere o arguido (e de que apresentou cópia), ele é inócuo, completamente irrelevante para o julgamento desta causa.
Pelo exposto, indefiro o requerido.

Despacho de 03.10.2007
(…) o procedimento (criminal), o mesmo é dizer, o processo, se revela de excepcional complexidade, devido, nomeadamente, ao número de arguidos ou de ofendidos ou ao carácter altamente organizado do crime.
O arguido (...) foi acusado e pronunciado pela prática de um crime de tráfico agravado de estupefacientes previsto e punível pelos artigos 21.°, n.° 1, e 24.°, alíneas b), c) e j), do Dec. Lei n.° 15/93, de 22 de Janeiro.
Ora, o art.° 1.0, al.m), do Cód. Proc. Penal revisto define 'criminalidade altamente organizada' como as condutas que integram, entre outros, o crime de tráfico de estupefacientes.
Mas há outros razões bem mais fortes para se considerar que, realmente, este procedimento se revela de excepcional complexidade.
Como se referiu no relatório do acórdão aqui proferido (fls. 10 101 e segs), o processo original tinha 44 arguidos. Porque o processo seguiu para a fase de julgamento sem que a acusação e a pronúncia tivessem sido notificadas a vários arguidos (por se desconhecer o seu paradeiro ou por andarem fugidos à acção da justiça, como era o caso do arguido (...)), vieram a ocorrer várias separações de processos. Assim aconteceu com o arguido (...) que, notificado da acusação e da pronúncia na sequência da sua detenção, veio requerer a abertura de instrução, o que implicou a cessação da conexão e a separação de processos.
Mas o processo que resultou dessa separação, no qual apenas figura como arguido o José Dias de Garcia, não deixou, por isso, de ser complexo.
É um processo que já tem 28 volumes, sem contar com os numerosos apensos e com os dois processos (Processo Comum n.° 550/00.9 JAAVR e Processo Comum n.° 251/00.8 JAAVR) que lhe foram apensados.
A factualidade descrita na acusação e na pronúncia é muito vasta e os crimes imputados aos arguidos, nomeadamente ao arguido (...), terão sido cometidos na área de jurisdição de várias comarcas, desde Braga até Almada, e por isso, a partir de determinada altura, o titular do inquérito passou a ser um Procurador do DCIAP e, depois da fase de inquérito, o processo foi tramitado no Tribunal Central de Instrução Criminal.
Cabe, por dizer que nada obsta a que a especial complexidade seja declarada nesta fase, pois se a declaração é relevante para a determinação da duração máxima da prisão preventiva, há que ter presente que um dos prazos dessa duração máxima tem como referência o trânsito em julgado da decisão condenatória (alínea d) do n.° 1 do art.° 215.° do Cód. Proc. Penal).
Pelo exposto, declaro a excepcional complexidade deste procedimento criminal.





Acórdão de 20 de Setembro de 2007

O Magistrado do Ministério Público deduziu acusação em processo comum para julgamento em tribunal colectivo contra
(...),
imputando-lhe a prática do crime de tráfico ilícito de estupefacientes agravado previsto e punível pelos art.ºs 21.º, n.º 1, e 24.º, alíneas b), c) e j), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, com referência às tabelas I-A e I-B anexas ao mesmo diploma,
consubstanciado nos factos narrados na acusação formulada a fls. 4432-4622 que aqui se dá por reproduzida.
A instrução e a separação de processos
O processo original, em que eram 44 os arguidos, teve fase de instrução, mas seguiu para a fase de julgamento sem que, quer a acusação, quer a pronúncia tivessem sido notificadas a vários arguidos, fugidos à acção da justiça e ausentes em parte incerta do estrangeiro.
O arguido (...) era um dos que se encontravam nessa situação.
Detido no dia 02.07.2002, na cidade de Vila do Conde, foi notificado, simultaneamente, da acusação e do despacho de pronúncia (fls. 8757).
Veio, então, requerer a abertura de instrução (fls. 8731) e o processo voltou para essa fase, implicando a cessação da conexão e a separação de processos.
No termo da instrução requerida, foi o arguido pronunciado pelos mesmos factos da acusação, a que foi dado o mesmo enquadramento jurídico-penal (despacho a fls. 9162 e segs.).
Contestação.
O arguido apresentou contestação em que oferece “o merecimento das suas declarações em audiência” e, “sobre a personalidade”, diz que:
 é pessoa considerada na zona da sua residência;
 tem trabalho garantido;
 é de modesta condição sócio-económica;
 tem bom comportamento anterior e posterior aos factos.
***
Posteriormente ao despacho que designou dia para a audiência, não ocorreram nulidades nem surgiram questões prévias ou incidentais de que cumpra, agora, conhecer.
FUNDAMENTAÇÃO
Factos provados
Da audiência, realizada com observância das formalidades legais, resultaram provados os seguintes factos:
1 - O arguido (...), que cumpria pena de prisão, em Portugal, pela prática do crime de tráfico de estupefacientes, evadiu-se para Espanha, onde fixou residência.
2 - Para iludir as autoridades policiais, o arguido (...) passou a utilizar várias alcunhas e nomes falsos, designadamente: «», «», «», «» e «».
3 - O arguido (...) tinha contactos, entre outros, com (…), que utilizava as alcunhas de «» e de «» ou «», que era conhecido pela alcunha de «», conhecido por «», e , conhecido pelo nome de «» e, devido à sua deficiência física, com a alcunha de «», todos pessoas das suas relações.
4 - O arguido (...), nas suas deslocações, fazia-se transportar, entre outras, na viatura automóvel da marca “Mercedes”, modelo 280, com a matrícula espanhola (…), registada em nome de (…), uma das identidades falsas por ele utilizadas.
5 - Pela mesma altura, o referido (…) utilizava a viatura da marca “Opel”, modelo “Calibra”, com a matrícula (…).
6 – (…) e (…) mantinham entre si uma relação amorosa e partilhavam a casa que era a residência da primeira, sita na (…), em Alverca.
7 - Nessa casa eram guardados produtos estupefacientes, designadamente heroína, pertencentes ao arguido (...).
8 - No dia 18 de Setembro de 2000, (…) entregou à (…), com a matrícula (…), pertencente ao arguido (...).
9 - Essa viatura foi conduzida pelo (…) até à Costa da Caparica, onde se encontrou com a (…) e com o (…).
10 - Depois de receber essa viatura, a (…) dirigiu-se para o norte do país, mais precisamente para a zona de Póvoa de Varzim, onde, juntamente com o (…), ficou hospedada (no “…”) na noite de 21 para 22 de Setembro.
11 - Na tarde do dia 22 de Setembro de 2000, a (…), seguindo instruções do arguido (...), viajou do norte para a sua casa em Alverca, fazendo-se transportar no “…”, de matrícula (…), que ela própria conduziu.
12 - Chegada a Alverca, a (...) carregou no interior desse veículo, num depósito disfarçado, situado nas traseiras do banco de trás, 13 embalagens de um produto acastanhado, com o peso bruto total de 13,520 quilogramas (peso líquido de 12,660 kgs) e, ainda, um saco de plástico contendo o mesmo produto, com o peso bruto de 514,5 gramas (peso líquido de 485,015 gramas), produto esse que o exame toxicológico a que foi submetido no Laboratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária revelou ser heroína.
13 - Esse produto estupefaciente pertencia ao arguido (...) e era todo o que, na altura, a (...) tinha arrecadado na sua casa de residência, em Alverca.
14 - Carregado o produto na viatura, a (...) iniciou, logo de seguida, a viagem de regresso ao norte, levando consigo os filhos, sendo, porém, interceptada e detida na zona da saída da A1 para Leiria.
15 - Foram-lhe, então, apreendidos (além de 3 telemóveis, 83 500$00 e 1 000 pesetas espanholas) as 13 embalagens e o saco de heroína que transportava e o referido veículo BMW, modelo 525 TDS, de matrícula (…), em que tal produto era transportado.
16 - Na sequência da busca efectuada na casa de residência da (...), foram-lhe apreendidos, além do mais, os papéis que estão a fls. 478 a 480 dos autos.
17 - A (...) já em ocasiões anteriores tinha efectuado transportes de substâncias estupefacientes (heroína e cocaína) para o arguido (...).
18 - Nos dias 21 e 22 de Novembro de 2000, o arguido (...), sendo transportado pelo (...) (“”), encontrou-se com o (“…”).
19 – Em 6 de Março de 2001, a (...), presa preventivamente, contactou telefonicamente o arguido (…), dizendo-lhe que mandasse recado ao arguido (...) («o lá de cima») e ao (…) [«o cá de baixo»], para estes a auxiliarem economicamente, sob pena de os denunciar à Polícia Judiciária.
20 - O (“…”) disse-lhe, então, para escrever isso num papel, para ele mandar uma filha dele entregar ao (“…”), lá no bairro.
21 - Em 18 de Maio de 2001, foi detido (“…”) e, na altura, foi-lhe apreendido, além do mais, o papel junto como documento a fls. que contém uma mensagem da (...) dirigida ao (...) (“…”).
22 - Nessa mensagem, a (…) informava o (...) (“…”) de que iria dizer, em julgamento, que não o conhecia, aconselhando-o a dizer o mesmo e, ainda, relativamente ao arguido (...) (que referia pelo nome de «…» e de «…»), a dizer que foi este que veio ter com ele, ou que é seu familiar, ou até a dizer que o seu filho ia casar com a filha dele, e que utilizava o seu telemóvel numa altura em que não tinha cartão, e que ele, (...), lhe tinha emprestado o dele, e avisando-o, finalmente, para não falar com o (“…”), nem pelo telefone.
23 - Em 8 de Dezembro de 2000, (…) (conhecido por “…” ou “…”), irmão do (...), teve um contacto telefónico com (…), informando-o de que iria, nesse dia, buscar produto estupefaciente e pretendendo saber se este estava interessado em comprar.
O (…), todavia, informou-o de que ainda tinha que receber o dinheiro da venda do produto anteriormente recebido, pelo que só dentro de 2 ou 3 dias iria a casa do (...) () para adquirir mais produto.
24 - Em 29 de Dezembro de 2000, o (...) () teve um contacto telefónico com o (…), a quem ofereceu, para venda, produto estupefaciente (heroína ou cocaína) ao preço de 4.600 contos o quilo, produto este que se preparava para ir buscar a Espanha.
Tendo o (...) retorquido que o preço era elevado, o (...) () respondeu-lhe que havia aí, para venda, um produto a 4.400 contos, mas que não tinha qualidade («não balachim»).
Como o (...) argumentasse que ainda iria ter despesas com a deslocação a Braga, para ir buscar o produto, o (...) sugeriu que ele viesse num táxi, cujo frete seria suportado por ambos, a meias.
O (...) não tinha dinheiro suficiente, na altura, para comprar um quilo de produto estupefaciente (apenas tinha disponíveis 3.600 a 3.700 contos), e o (...) respondeu-lhe que não fazia mal, que lhe faria o preço a 4.500 contos o quilo («quatro papiros e meio»), e que o resto pagaria mais tarde, proposta que aquele aceitou.
Na sequência de tal acordo, o (...) deslocou-se a Espanha, na tarde do dia 29 de Dezembro de 2000, onde obteve do seu irmão (...) um quilo de produto estupefaciente (heroína ou cocaína), que transportou para Portugal, tendo chegado a sua casa, em Braga, com o produto, por volta das 20:04 horas.
De posse do produto, o (...) acordou com o (...) que, no dia seguinte de manhã, se deslocaria à (…), para o entregar, acompanhado de um correio («rambo»), que procederia a esse transporte.
Ficou, ainda, entre eles acordado que quem iria receber o produto seria o «Riqueza», irmão do (...), que entregaria o dinheiro ao (...).
Após ter feito a entrega desse produto ao (...), o “(...)” contactou telefonicamente a esposa daquele ((...)), pedindo-lhe explicações pelo facto de a mãe desta ter tido conhecimento de tal operação e recomendando que da mesma não fosse dado conhecimento a ninguém.
No mesmo contacto, o (...) ou (...)) perguntou à (…) se o marido desta precisava de mais produto estupefaciente, respondendo-lhe ela que não sabia e que ligasse mais tarde, à noite, para falar com ele.
No mesmo dia (10 de Janeiro de 2001), o (...) entregou ao “(...)” um saco, contendo dinheiro, para pagamento da parte restante (500 contos) do preço do produto estupefaciente que recebera deste, saco no qual, por lapso, enviou 100 contos a mais.
25 - Em 13 de Janeiro de 2001, o (...) ((...)o ou (...)) deslocou-se a Espanha, de novo, para se abastecer de produtos estupefacientes junto de seu irmão (...).
Na mesma data, o “(...)” teve um contacto telefónico em que comunicou à esposa do (...) a deslocação que ia fazer, e perguntou se este precisava de produto estupefaciente (heroína ou cocaína) para ele trazer.
A (…) respondeu-lhe que não tinha o dinheiro («pernum») suficiente, afirmando ter apenas 2.500 contos, tendo-lhe retorquido o “(...)” que não fazia mal, pois ele esperava pelo pagamento do resto.
Nesse dia (13.01.2001), por volta do meio dia, foram detidos, pela Polícia Judiciária, os arguidos (…), altura em que lhes foi apreendida heroína que seria proveniente do (…).
Tendo sido informado disso, o (...) avisou a (...) e o (...) do que se tinha passado («...houve dois paílhos e um calon que foram estraduns em Lisboa...») e de que, devido a esse facto, não iria ter disponível, já nesse dia, o produto estupefaciente, só o devendo ter com ele no dia seguinte, à tarde (domingo), ou na 2.ª feira.
No dia seguinte (domingo), já de posse do produto estupefaciente (heroína ou cocaína), o “(...)” comunicou à (…) que iria ele próprio a bater a estrada, com um correio (um «…», não cigano) atrás, para levar o produto ao (...), informando-a, também, de que tal correio deveria cobrar entre 100 e 150 contos pelo transporte do produto e de que, aquando do anterior fornecimento de produto estupefaciente que lhes fizera, o correio lhe tinha exigido o pagamento de 100 contos («cem véus»).
26 - Em 23 de Março de 2001, o arguido (...) contactou telefonicamente o “(...)”, perguntando-lhe se não tinha ninguém que comprasse meio quilo («meia peçazinha») de produto estupefaciente (heroína ou cocaína), a pronto pagamento («com o pernum na mão»).
O (...) respondeu-lhe que, nesse momento, não tinha ninguém interessado, observando-lhe, no entanto, que tinha tido um interessado em comprar tal produto pouco tempo antes, e que o arguido (...), quando o contactou para lho fornecer, lho não forneceu, por, na altura, não o ter.
27 - No dia 10 de Maio de 2001, o (...) ((...)o ou (...)) entrou, de novo, em contacto com o arguido (...), pedindo-lhe que lhe fornecesse produto estupefaciente (heroína ou cocaína), que pagaria a pronto pagamento (com o «pernum» na mão), por ter comprador para o adquirir imediatamente.
No dia 13 de Maio de 2001, em contacto telefónico, o arguido (...) informou o arguido (…)(...)o ou (...)) de que, no dia seguinte, lhe forneceria o produto, por já ter quantidade suficiente para o efeito.
28 - O arguido (...) foi condenado, por acórdão de 6 de Julho de 1990, na pena de 8 anos de prisão, e multa de 400.000$00, pela prática do crime de tráfico de estupefacientes, pena que cumpria quando se evadiu e fugiu para Espanha.
29 - Tal condenação, todavia, não demoveu o arguido de continuar a praticar o mesmo crime.
30 - O arguido (...), ao praticar os factos acima descritos, relacionados com a detenção, transporte, compra, venda e oferecimento para venda daquele produto (heroína e/ou cocaína), cujas características estupefacientes bem conhecia, agiu voluntária e conscientemente, visando alcançar rendimentos muito elevados, que a natureza e a grande quantidade do produto lhe proporcionariam.
Agiu com inteira liberdade de determinação e sabendo que todos aqueles actos eram penalmente puníveis.
Provou-se, ainda, que:
31 - O arguido nasceu em Braga e é o penúltimo de sete filhos de uma família de etnia cigana.
Residiu com os pais, numa situação de sedentarismo, na Póvoa de Varzim.
Frequentou a escola e diz ter a 4.ª classe.
Aos 19 anos de idade, casou com (…), também de etnia cigana, de quem tem quatro filhos, com idades compreendidas entre os 17 e os 23 anos.
Desde muito novo que acompanhava os pais na venda ambulante de artigos de vestuário.
No Estabelecimento Prisional de Coimbra tem mantido um comportamento adequado às normas internas, mas não beneficiou de qualquer medida de flexibilização da pena de prisão que aí cumpre(ia).
Tem o apoio da mulher, dos filhos e de outros familiares, que o visitam regularmente na cadeia.
Factos não provados
Com relevância para a decisão, não se provaram os seguintes factos:
(…)
Os meios de prova e as razões da convicção do tribunal
Pode considerar-se um lugar comum dizer que a análise e valoração da prova constitui uma das operações mais importantes e difíceis de todo o processo judicial e, em particular, do processo penal.
É na apreciação da prova que se decide a concreta aplicação do direito e por isso é imperioso rodear esta tarefa de especiais cuidados.
Antes de mais, há que evitar o convencimento apriorístico.
O juiz não pode deixar-se fascinar por uma tese, uma versão, deve evitar convicções apriorísticas que levam a visões lacunares e unilaterais dos acontecimentos.
Por outro lado, há que ter sempre presente o perigo do subjectivismo na apreciação das provas.
Livre convicção não é apreciação arbitrária da prova nem a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova. O juiz deve fazer esta apreciação segundo as regras do entendimento correcto e normal, isto é, tem de avaliar as provas, não arbitrariamente ou caprichosamente, mas em harmonia com as regras comuns da lógica, da razão e da experiência acumulada.
A liberdade(1) do juiz não é uma liberdade meramente intuitiva, é antes um critério de justiça que não prescinde da verdade histórica das situações nem do contributo dos dados psicológicos, sociológicos e científicos para a certeza da decisão.
Meios de prova são as fontes (declarações do arguido, depoimentos de testemunhas, relatórios periciais, documentos, etc.) de que o juiz extrai os motivos da prova(2).
Motivos de prova ou argumentos probatórios são as razões que determinam a convicção do juiz, razões derivadas dos meios de prova.
É sabido que o nosso sistema processual penal consagra o princípio da livre apreciação da prova, o que é dizer que não há critérios legais que predeterminem o valor a atribuir à prova ou hierarquizem o valor probatório dos diversos meios de prova.
Como evidenciam os autos, durante a fase de investigação, foi recolhido um vastíssimo conjunto de meios de prova, com destaque para as gravações de conversações resultantes de intercepções telefónicas, mais vulgarmente, escutas telefónicas.
É, unanimemente, reconhecido que as escutas telefónicas são um dos instrumentos mais importantes e eficazes para chegar à verdade material, sobretudo quando está em causa criminalidade grave e organizada, designadamente a actividade de tráfico de estupefacientes praticada com utilização de importantes meios materiais e humanos e recorrendo a métodos de actuação sofisticados, como aconteceu neste caso.
Continuamos a entender que são, plenamente, válidos os meios de prova obtidos por essa via, já que o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa (de que o ilustre defensor juntou uma certidão (?) que está a fls. 9378 e segs.) não contém um só argumento que convença da bondade da tese que acabou por prevalecer(3) .
Mas essa é uma decisão que não podemos ignorar, não obstante ela não ter qualquer eficácia no âmbito deste processo, como já se referiu no despacho proferido a fls. 9443 que recaiu sobre o requerimento que o arguido fez chegar aos autos (fls. 9374-9377) e no qual, para justificar a sua pretensão, faz extensas citações da obra “Sob Escuta” da Dra. Fátima Mata-Mouros, que diz ser um dos “livros mais conhecidos sobre escutas telefónicas”.
Não sabemos se é ou não um dos livros mais conhecidos, mas, a nosso ver, é uma das obras que de forma mais desassombrada, séria e aprofundada aborda esse tema.
Conhecendo o arguido (o seu ilustre defensor, bem entendido) tal obra, conhece, certamente, a afirmação, (...)a feita, de que “a realização de escutas telefónicas traduz-se num meio de aquisição probatória demasiadamente precioso, quer pela sua expressividade, quer pela sua onerosidade, para poder continuar a originar decisões de anulação baseadas em aspectos que, só na aparência, não se reconduzem a argumentos meramente formais” (pág.74), crítica que, na nossa perspectiva, assenta, na perfeição, ao citada acórdão da Relação de Lisboa.
Naquele requerimento, o arguido formulou a pretensão de que se declarasse que “não podem ser utilizadas como meio de obtenção de prova as escutas que o Tribunal da Relação de Lisboa declarou nulas” e, bem assim, “nulas todas as outras escutas dos autos, por os despachos que as autorizaram não terem justificado, na altura da sua prolacção (sic), a sua necessidade”.
Compreende-se que, para o arguido, nunca haja necessidade das escutas para investigar a actividade criminosa do tráfico de estupefacientes e, portanto, que nunca os despachos que as autorizam sejam justificados, mas é óbvio que tem de ser outra a perspectiva do julgador.
De resto, no citado acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, que o arguido tanto enaltece, afirma-se que “a invocada falta de fundamentação dos despachos que ordenaram a realização das escutas telefónicas não é geradora de nulidade, mas de mera irregularidade (artigo 118.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal), a qual não foi tempestivamente arguida (artigo 123.º, n.º 1, do mesmo diploma)”.
Mas o que importa, agora e aqui, realçar é o que já foi referido no mencionado despacho de fls.9443 sobre a oportunidade da arguição da nulidade das escutas.
O arguido teve oportunidade de arguir, tempestivamente, a nulidade das escutas e não o fez no momento próprio.
Veio, já na fase de julgamento, tentar suprir a sua inércia negligente e não esteve com meias medidas: pretende que fiquem reduzidas a nada todas as escutas, pedindo que se declarem nulas todas as escutas, incluindo aquelas que o citado acórdão da Relação de Lisboa considerou não estarem feridas de nulidade e nada obstar à valoração da prova através desse meio obtida.
Voltando à citada obra da Sra. Dra. Fátima Mata-Mouros, (...)a se refere que coube ao Supremo Tribunal de Justiça “clarificar a diferença existente, também nesta sede, entre nulidades insanáveis e sanáveis, ensinando-nos que insanáveis são apenas situações de intercepção à margem de autorização judicial para o efeito concedida e de intercepção realizada mediante autorização judicial que extravase o elenco de crimes relativamente aos quais o legislador permitiu o acesso a este meio de prova. Nulidade sanáveis são aquelas situações em que existiu preterição de requisitos legais, mas em que a intervenção judicial permite corrigir (sanar) tal deficiência”.
Efectivamente, estando em investigação actividades susceptíveis de integrar a prática dos chamados crimes de catálogo, só a falta de ordem ou de autorização judicial para a intercepção e gravação de comunicações telefónicas fere de nulidade insanável este acto.
A inobservância dos demais requisitos gera nulidade, que tem de ser arguida pelo interessado.
Embora não abundem as decisões judiciais sobre este tema, cremos poder afirmar que se vem firmando jurisprudência nesse sentido, ou seja, de que a nulidade a que se refere o art.º 189.º do Cód. Proc. Penal é sanável e está sujeita ao regime de arguição contido nos art.ºs 120.º e 121.º do mesmo Código (4).
Não é esse o entendimento de parte da doutrina, mas ainda não vimos ninguém questionar, fundadamente, o acerto destas afirmações do Sr. Conselheiro Maia Gonçalves (“Meios de Prova”, Jornadas de Direito Processual Penal, O Novo Código de Processo Penal, CEJ, 1989, 194-195):
«O artigo 126.°, sobre métodos proibidos de prova, contém afloramento e regulamentação do que se estabelece nos artigos 32.°, n.º 6 e 34.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, o que desde logo dá clara indicação, de que se trata aqui de princípios fundamentais em matéria de produção da prova. O n.º 2 é meramente explicativo do n.º 1; no n.º 3 estabelece-se que, para além dos casos de nulidade consagrados no n.º 1, são igualmente nulas as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular. Trata-se, em meu entendimento, de dois graus de desvalor de provas obtidas contra as cominações legais, sendo maior o desvalor ético-jurídico das provas obtidas mediante os processos referidos no n.º 1, e tal diferente grau de desvalor tem reflexo nas nulidades cominadas: enquanto as provas obtidas pelos processos referidos no n.º 1 estão fulminadas com uma nulidade absoluta, insanável e de conhecimento oficioso, que, embora como tal não esteja consagrado no artigo 119.º o está neste artigo 126.º através da expressão imperativa não podendo ser utilizadas, já as provas obtidas mediante o processo descrito no n.º 3 são dependentes de arguição, e portanto sanáveis, pois que não são apontadas como insanáveis no artigo 119.º ou em qualquer outra disposição da lei. Em relação a estas últimas provas, obtidas mediante os processos aludidos no n.º 3, a lei atendeu de algum modo à vontade do titular do interesse ofendido e ao princípio volenti non fit injuria(5)” .
Faz todo o sentido que, tratando-se de intercepções telefónicas judicialmente autorizadas, mas em que não foram cumpridas todas as formalidades legalmente exigidas, não se esteja perante uma proibição de prova, antes se deixando ao critério dos interessados a arguição, ou não, da nulidade. Se é a própria pessoa alvo das escutas que não mostra interesse em que elas sejam declaradas nulas, é ser “mais papista que o papa” sustentar que de uma nulidade insanável se trata.
De resto, mesmo defensores das teses proibicionistas radicais em matéria de prova (de produção e valoração de prova) aceitam que se aplica o regime das nulidades dependentes de arguição contido nos art.ºs 120.º e 121.º do Cód. Proc. Penal aos “actos cuja invalidade resulta da violação das meras formalidades da prova, contanto que a nulidade seja cominada nas disposições legais em causa: por exemplo, a falta de aviso aos parentes e afins acerca da sua faculdade de recusarem o depoimento (…) ou a demora na entrega ao juiz das gravações e transcrições necessárias para se fiscalizar as escutas telefónicas (art.ºs 188.º, n.º1, e 189.º do CPP)(6)” .
Em suma, no nosso entendimento, nada obsta a que sejam valorados todos os meios de prova obtidos mediante a intercepção e gravação das conversas telefónicas do arguido, até porque o motivo invocado no acórdão da Relação de Lisboa para declarar nulas a maior parte das escutas foi, quase invariavelmente, a demora em levar ao juiz de instrução o material gravado.
Porém, não o faremos em relação a essas escutas declaradas nulas para não fornecer pretexto para uma eventual anulação do julgamento, frustrando-se, assim e de novo, a realização da justiça.
Porque foram essas escutas que proporcionaram abundante e esclarecedor material probatório, compreende-se que, não sendo esse material valorado, tivesse ficado por provar grande parte da factualidade imputada ao arguido (...).
Mas se a valoração das transcrições das conversas telefónicas gravadas era essencial para a prova desses factos, é perfeitamente dispensável em relação à factualidade que descreve a situação de flagrante delito em que foram apreendidos mais de 13 quilos (exactamente, 13 145,476 gramas) de heroína divididos em 13 embalagens de cerca de 1 kg e uma outra com cerca de meio quilo (cfr. fotografias a fls. 582-584 e relatórios dos exames toxicológicos a fls. 629 e 632).
No dia 22.09.2000, na auto-estrada do norte (A1), depois da saída para Leiria, quando conduzia o veículo (…), verde, matrícula (…) (fotografado a fls. 580), dentro do qual (num depósito disfarçado, situado nas traseiras do banco de trás, entre este e a mala) transportava as referidas 14 embalagens de heroína, foi detida a (...).
Tinha ido buscar a droga à sua casa de residência, em (…), Alverca, onde a guardava, e estava a ser seguida por agentes da P.J. desde a sua chegada a Alverca, vinda do norte (conforme esclareceu o inspector (…)).
Na sequência da sua detenção, foi feita uma busca na sua casa de residência, tendo sido apreendidos papéis, fotografias e notas falsas (16 de 5 contos e 160 de 10 contos), busca essa que a arguida autorizou (auto de busca e apreensão a fls. 477).
Tanto quanto se sabe, a (...), antes de se envolver com o (...), não tinha tido qualquer contacto com a actividade de tráfico de droga.
Aliás, apesar da investigação já decorrer quase há um ano, a (...) (que no “relato de diligência externa” que está a fls. 416 é referida, apenas, por “…”) é vista, pela primeira vez, pelos inspectores da P.J. no encontro ocorrido na Costa da Caparica (ver fotografias a fls. 419-424) entre ela, o seu companheiro (...) (“”) e outro indivíduo, o (...) (“”), que há bastante tempo era alvo de acções de vigilância e seguimento, como as que estão documentadas a fls. 409-415, por haver notícia de que tinha uma estreita ligação ao arguido (...).
Esse encontro, controlado pela P.J., como revelam as referidas fotografias e foi confirmado pelos inspectores (…), serviu para que o (...) (“”) entregasse o BMW 525 TDS, de matrícula (…), à (…), a qual, logo de seguida, seguiu, sozinha, em direcção ao norte do país, com passagem pela sua residência, em Alverca.
A (...), como a própria refere na carta que, através do seu ilustre defensor, fez chegar ao processo (documento a fls. 1514-1521, cujas letra e assinatura ninguém impugnou) vivia com dificuldades económicas (“ganhava o necessário para sobreviver”) e, a partir do início do ano de 2000, essas dificuldades agravaram-se, pois o seu filho mais velho precisou de acompanhamento psicológico, o que implicou um acréscimo de despesa de cerca de 7 000$00 por semana.
É neste contexto que a (...), como afirma na referida carta, aceita fazer uns serviços para o (...) (a pedido deste, em Junho de 2000, aceita conduzir o BMW de Vila do Conde até Lisboa para lhe trazer umas “amostras”, tendo entregue a viatura ao(…) no (…) (7), sendo remunerada por isso (“o (...) deu-me num encontro marcado por ele no Bar (…) na Póvoa de Varzim a quantia de 150 000$00, dizendo que tudo tinha corrido bem e que iria ganhar mais dinheiro caso continuasse a fazer estes serviços”, escreveu a (...) na mesma carta).
Essa colaboração, efectivamente, continuou e há elementos de prova que permitem, com segurança, concluir nesse sentido.
Na busca realizada na sua casa de residência (auto a fls. 477) logo a seguir à sua detenção, foram apreendidos vários papéis (que estão a fls. 478, 479 e 480) e (...)es são mencionados os quantitativos de 350 000, 400 000, 150 000, 60 0000, 250 000 e 300 000, seguidos dos nomes ou alcunhas “” e “”.
A fls. 479 está outro papel em que se mencionam as quantias de 13 000$, 16 000$ e 10 000$ seguidas das palavras “Gasóleo ((...))“.
Esta “contabilidade” rudimentar evidencia que a (...) recebeu ou tinha a receber aqueles montantes do “(...)” (uma das alcunhas do (...), a pessoa sobre quem incidem as primeiras diligências de investigação, conforme se pode constatar nas primeiras folhas do processo) e do “” (que, como veremos, é, indiscutivelmente, uma das alcunhas do arguido (...)) por serviços que lhes prestou e que implicaram a realização de despesas com combustível.
Da conversa telefónica (interceptada e gravada, constituindo a respectiva transcrição o apenso n.º 15, sem que tenha sido declarada nula tal intercepção e gravação) havida entre a (...) e o seu companheiro (...) ((...)) no dia 16.03.2001 pode concluir-se que aquelas quantias faziam parte do “haver” da (...) (fls. 7 do apenso):
 “…que recebam dinheiro, que façam o que eles quiserem. Que se vaiam empenhar, que vendam carros…que façam o que eles quiserem. Eu é que não tenho que estar aqui a gramar por ninguém. Para me calarem têm que pagar bem caro”, diz a (...).
 “Está bem”, concorda o (...) ((...)).
 “E não é só o dinheiro que me devem. Não é só dinheiro que me devem, isso é que era bom… é o tempo que eu aqui tiver”, acrescenta a (...).
Nessa mesma conversa, a (...) e o (...) ((...)) insurgem-se contra o facto de o (...) (a quem se refere como “o cá de baixo”, já que este reside na (…), em Loures, onde foram realizadas as primeiras diligências de investigação “no terreno”) e o (...) (a quem se refere como “o lá de cima”, já que, além de ser natural de Braga, tinha aí a sua residência, quando não estava em Espanha, na zona de Vigo ou em Sevilha) não lhe pagarem, apesar de terem uma boa vida, e ela estar mal, pois está presa (fls. 3 do mesmo apenso):
 “Não, vou é mandar recado pelo cunhado. Eu vou lá … à Póvoa… e vou falar com o cunhado e dizer-lhe olhe…”
 (…)
 “… passa-se isto assim assim…”, diz o (...) ((...)) referindo-se a um cunhado do (...) que reside na zona da Póvoa de Varzim.

 “Seja como for eu tou a gramar com tudo, não quero que os meus filhos passem mal, por causa de andarem aí fora a gozar. Porque eles tão na mesma com grandes vidas”, diz a (...).
 “Não, não tão. Está tudo igual”, corrobora o (...) ((...)).
A (...) ameaça mesmo denunciar o (...) e o (...) (fls. 3 e 4, ainda do mesmo apenso):
 “Leva tudo por tabela ! Dizes mesmo: ela sabe os sítios, mete-se no carro com a Judiciária e ela vem dizer onde é que vocês moram e tudo…”
 “… não pode ser assim ! Dizes mesmo: ela não tem peneiras nenhumas e que não se ponham com ameaços. Porque eu peço protecção ao Tribunal para a minha família e eu abro a boca. Eu não os conheço pelo nome verdadeiro, mas seja que nome for eu digo quem são. Mas deixa que eu tenho uma fisgada, eu agora quando o advogado aqui vier, eu tenho uma fisgada… se for preciso, eu meto isso”.
Esta “revolta” e esta predisposição da (...) para denunciar o (...) e o (...) chegam ao conhecimento destes, conforme resulta das seguintes conversas, também interceptadas e gravadas, sem que tenham sido declarados nulos os actos de intercepção e gravação.
A primeira é entre o (...) e a mulher (…), conhecida por “” (fls. 2 e 3 do apenso n.º 34):
 “Tou aqui à espera que o “(...)” me ligue”, diz o (...) para a mulher.
 “Ai pá, não vês que é coiso tar assim ?”, adverte-o a “”.
 “Mãe, que mal tem mulher ?”, pergunta, sem compreender, o (...).
 “Ai, agora o …”
 (…)
 “… teve aqui, tá aqui ao pé da gente…”
 (…)
 “… e esteve a dizer o mesmo, que a mãe dele lhe disse o mesmo…”
 (…)
 “…ai …, é perigoso andares assim agora para aí, pá”, responde a “”.
 “Que disse o quê, que disse o quê ?”, pergunta, ainda, o (...).
 “Que a (...), que queria “bucabar” (denunciar), que queria “bucabar”, responde a “(...)”.
 “A mim ?”, pergunta, de novo, o (…).
 “Pois !...Que não vê o (...), “bucabela-te” a ti”, responde a “(...)”.
 “Mãe !”, alarma-se o (...).
 “Diz que punha-se ao telefone, aquilo seria com ele…com o (...)”, continua a “(...)”.
 (…)
 “Amanhã, vamos falar com o (...)”
 (…)
 Tu vais dizer…dizer a “(...)” que… que tire isso da minha parte, pá…”
 (…)
 “… que eu te ponho lá a ti”, sugere a “(...)” ao marido, que responde:
 “Deixa estar que eu amanhã já vou falar com o (...)”.
 “Já vais falar com ele. A gente foi muito molinhos”, diz a “(...)”, que prossegue:
 “Se ela está assim… diz que está ao telefone a dizer: vou “bucabar e o outro lá do outro lado dizia… como quem diz…espera…”
 (…)
 “…e agora o menino … o Balelo disse que isto é mau. Já que estás no processo, andam a ver tudo o que tu “fazunchas”, Tonho”.

Na conversa entre o (...) e o irmão (...), este quer saber se o (…) (tratado por “careca” e a que já aludimos em nota (6) de pé de página) denunciou (“bucabou” ou “bucavou”, na linguagem cigana) alguém (fls. 47-48 do apenso 7.A):
 “O careca não bucabou ?”,pergunta o (...).
 “Quem ?”, pergunta, por sua vez, o (...).
 “O careca não bucabou ?”, repete o primeiro.
 “Não, quem disse isso ?”, responde e pergunta o (...).

 “Foi a Nisa”, responde o (...).
 “O Careca… a (...) é que bucabou, e aquele menino (arguido ) não presta, percebes”, esclarece o (...).
 (…)
 “… a (...) que está estradum (presa)”, acrescenta o (...).
 “Pois. Essa (...) é que disse que tinha bucabado”, diz o (...).
A única arguida que estava, então, presa à ordem do processo era a (...) e por isso não pode restar qualquer dúvida que se referem a ela nestas conversas.
Como se pode verificar por uma das conversas transcritas, a (...) não sabe qual o verdadeiro nome do arguido (...) e por isso é que, quando é detida, diz que o veículo que conduzia e a droga (...)e transportada pertence a um cigano de nome “Zé”, que é da zona de Braga.
A (...) referia-se, inegavelmente, ao arguido (...) e sabia, ainda, que ele usava o nome de “(...)” e tinha a alcunha de “(...)”, conforme se vê pelos papéis que lhe foram apreendidos na busca realizada na sua casa de residência e pela carta que fez chegar ao processo.
“Zé (...)” é o nome/alcunha que consta da lista telefónica de um dos telemóveis (marca “…” e com um cartão da TMN com o n.º ) apreendidos à (...) na altura da sua detenção (cfr. auto de leitura da memória do referido telemóvel que está a fls. 541), sendo de notar que está seguido de um número de telefone de uma rede de telefones móveis de uma operadora espanhola.
O arguido, embora, na audiência, não tenha negado (porque não quis prestar declarações) que utilizava os nomes falsos e as referidas alcunhas, no requerimento de abertura de instrução negou tudo isso.
O arguido arrolou mesmo uma testemunha, (…), que veio depor, exclusivamente, sobre este ponto.
Do depoimento desta testemunha o que se pode retirar de útil é que os indivíduos ciganos usam, habitualmente, nomes falsos e alcunhas.
O arguido tinha razões acrescidas para usar nomes falsos e alcunhas: andava evadido e a traficar estupefacientes.
Quando, em 02.07.2002, foi detido em casa do seu cunhado (…), em Vila do Conde, o arguido usava a identidade falsa de (…), pois tinha em seu poder um bilhete de identidade e uma carta de condução com esse nome, documentos que viciou, apondo (...)es a sua fotografia no lugar da do legítimo titular.
Foi pela prática de dois crimes de falsificação de documentos que o arguido foi condenado no âmbito do processo comum n.º do Tribunal Judicial da Comarca de Póvoa de Varzim (e no qual estava pronunciado, também, por tráfico de estupefacientes, crime de que foi absolvido).
Conforme decorre da certidão que está a fls. 9226 e segs., provou-se que o arguido (...) era conhecido por “”. Aliás, de acordo com o despacho de pronúncia (cfr. certidão a fls. 9124 e segs.) proferido no mesmo processo, foi aquele cunhado de nome (…) quem chamou “” ao arguido (...).
É significativo que, no âmbito desse processo, um dos arguidos, (…), condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, tivesse em seu poder diversos papéis, entre os quais um com os nomes “” e “”, seguidos de números de telefone da rede daquela mesma operadora espanhola.
Na agenda que lhe foi apreendida (fls. 3069) tinha o (“…”) escrito, além dos nomes dos arguidos , o nome “(...)”, seguido do número de telefone, que esteve interceptado e era utilizado pelo arguido (...).
O (…), também arguido no processo principal, era um dos indivíduos das relações do arguido (...) e, pelo menos, uma vez, os dois encontraram-se na zona do Rego, em Lisboa, encontro esse que foi presenciado por inspectores da P.J. (cfr. depoimentos das testemunhas e relato de diligência externa de fls. 754).
“…” e “(...)” eram as únicas referências de que os inspectores que intervieram nas primeiras diligências de investigação dispunham acerca de um indivíduo que era visto na Calçada do Barro, em Loures, na companhia do (...) (“(...)” ou “”), o indivíduo que é referido na informação inicial como suspeito de ser traficante de estupefacientes e sobre o qual incidem essas diligências iniciais para recolha de informação (cfr. informação de fls. 14 e depoimentos dos inspectores (...)
Só na altura em que é elaborada a informação de fls. 45 é que os investigadores ficam a saber que o “” ou “(...)” é, na realidade, o (...), irmão de (…), contra os quais existem mandados de detenção por andarem evadidos.
Nessa altura, obtêm junto da Directoria do Porto da Polícia Judiciária a informação de que, da última vez em que foi detido, o arguido (...) usava a identidade falsa de (…) (cfr. documentos a fls. 49 e 50).
Antes disso, os inspectores da P.J. tinham a informação de que o arguido usava o nome de (...), com residência em Sevilha, pois era nesse nome que estava registado o “Mercedes 280”, de matrícula , por ele habitualmente conduzido. Tal informação está exarada a fls. 25 e 26 dos autos e, como a própria referiu em audiência, foi obtida pela inspectora (…) através de contacto telefónico com o Oficial de Ligação espanhol, única via célere de obter informações deste tipo.
(…) é, também, um dos nomes que o (…) diz ao (…) (ambos arguidos no processo principal) estar a ser usado pelo (...).
Isso aconteceu na conversa ocorrida entre os dois no dia 05.01.2001, interceptada ao abrigo de autorização judicial, e que está transcrita no apenso n.º 15 (fls. 3), escuta que não foi declarada nula:
 Olha lá…outra coisa.
 (….)
 isto agora à conclusão, embora prontos, à conclusão daquilo que me falaste há bocado, lá desse… desse guitano que te deve o prenom,
 (…)
 tu disseste que era lá dos castanholas lá de baixo ?, pergunta o (...).
 Daonde ? Sim, sim, sim, responde o (...).
 Lá das…. como é que ele se chama ?, pergunta, de novo, o (…).
 Uuuuh, ele tem vários nomes, ele tinha o nome agora que usava era (…), mas o nome dele mesmo é Zé, responde o (...).
 Não sabes o nome dele ?, admira-se o (...).
 Sim.
 Só Zé ?, insiste o (...).
 Zé, ele tem alcunhas… tás a ver, ele tem, ele anda com nomes marados, diz o (...).
 Pois, comenta o (...).
Na altura da detenção da (...) foram apreendidos, também, documentos relativos ao BMW 525, de matrícula (…), que conduzia e no qual transportava a heroína.
Vê-se pelos documentos que estão a fls. 472 que a matrícula é de 1993 e que existe uma autorização de circulação para o veículo em nome de (…).
Um dos nomes falsos utilizados pelo arguido era o de (…).
No entanto, é bem possível que se trate do anterior proprietário do veículo. Isto porque, juntos com aqueles documentos, foram encontrados e apreendidos os que estão a fls. 467 e 468.
O primeiro (fls. 467) é um pedido de registo de transmissão de um veículo automóvel que está por preencher e encontra-se assinado, apenas, pelo transmitente.
O segundo (fls. 468) é um escrito que serve para formalizar um contrato de compra e venda de um veículo automóvel usado e está, também, por preencher e, apenas, assinado pelo vendedor.
Mas, por muito que se tente esconder, há sempre algo que fica à vista e neste caso existe o documento que está a fls. 471.
Trata-se de uma proposta de contrato de seguro (ou pedido de modificação de apólice de seguro) da “Winterthur Seguros”, não completamente preenchida, mas com a menção de que se refere ao veículo BMW 525 TDS, de matrícula , e em que figura como tomador alguém que assina, nem mais nem menos, (…).
Da simples comparação dessa assinatura com a que foi aposta pelo arguido na acta de fls. 9114 chega-se, facilmente, à conclusão de que são da mesma pessoa.
Embora, na referida acta, o arguido tenha assinado com o seu nome verdadeiro, pode dizer-se, com toda a segurança, que o nome comum - José – não é, apenas, semelhante, é praticamente igual nas duas assinaturas.
Todo este material probatório permite concluir, sem margem para qualquer dúvida, que:
 a menção de “(...)”, constante dos papéis (fls. 478-480), antecedida dos quantitativos 350 000, 400 000, 150 000 e 300 000, refere-se ao arguido (...) e àquilo que a (...) tem a haver dele como contrapartida pela guarda e transporte de produto estupefaciente;
 quando a (...), na carta que fez chegar ao processo e está a fls. 1514-1521, escreve que, depois de trazer para ele, de Vila do Conde, no BMW, umas “amostras” que lhe entregou no “”, o (...) deu-lhe, num encontro na Póvoa de Varzim, a quantia de 150 000$00, dizendo que “tudo tinha corrido bem e que iria ganhar mais dinheiro caso continuasse a fazer estes serviços”, está a referir-se ao arguido (...) e aos serviços de guarda, transporte e entrega de produto estupefaciente que, por conta dele, vinha efectuando;
 quando, no momento da sua detenção, a (...) afirma que a viatura BMW 525 TDS, de matrícula …, que conduz, e o produto estupefaciente (...)e transportado, pertencem ao indivíduo cigano de nome “”, que é da zona de Braga, mais uma vez está a referir-se ao arguido (...);
O referido BMW 525 TDS era, manifestamente, uma viatura que estava especialmente adaptada e destinada ao transporte de produtos estupefacientes e não era por acaso que estava, habitualmente, na posse do (...) (“”).
Ele é visto pelos inspectores da P.J., várias vezes, na companhia do (...) e não surpreende que assim seja porque ele é uma espécie de “braço direito” deste arguido.
É, pois, normal que seja o (...) a ir entregar o BMW à (...), na Costa da Caparica, no dia 18.09.2000, para ela seguir (...)e até ao norte do país, mais exactamente até à zona da Póvoa de Varzim, onde a aguardava o (...).
Na mensagem escrita da (...) para o (...) (fls. 2642-2643), apreendida quando estava na posse do (...) ((...)), na passagem em que ela o aconselha a dizer que “conhecia o ((...)) que veio ter consigo, ou que é seu familiar, ou até dizer que o seu filho ia casar com a filha dele…”, esta última referência tem a sua razão de ser, já que, como referiu o inspector, o casamento entre um filho do (...) e uma filha do (...) chegou a estar combinado.
O casamento ter-se-á frustrado porque essa filha do (...) envolveu-se com o (...). Daí que o arguido (...) afirme no requerimento de abertura de instrução que conhecia o (...) porque este era “namorado” da filha (…)
Importantes na formação da convicção do tribunal foram os depoimentos dos inspectores da P.J. ( …) que participaram no seguimento e detenção da (...).
No que agora interessa, estas testemunhas relataram a reacção da (...) quando foi detida, nos seguintes termos: disse, imediatamente, que o carro não era dela, mas sim de um cigano de nome “”, da zona de Braga e negou que transportava, ou que fosse do seu conhecimento que transportava, algo de ilícito; depois que encontraram a heroína no compartimento adaptado para o efeito, a (...) disse que a droga era do dono do carro.
Nas suas alegações, o ilustre defensor sustentou que estes depoimentos não podiam ser valorados, por se tratar de depoimentos indirectos.
Obviamente, não o seguimos nesse entendimento e vamos dizer porquê.
Desde logo porque a lei não proíbe os depoimentos indirectos.
A regra é a de que a testemunha deve ser inquirida sobre factos de que possua conhecimento directo (art.º 128.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal), mas não é, de todo, proibido o testemunho de ouvir dizer, desde que se indique a pessoa a quem se ouviu dizer e que essa pessoa seja chamada a depor (art.º 129.º, n.º 1, do mesmo diploma legal).
É abundante a jurisprudência sobre este tema e, em particular, sobre a questão da admissibilidade dos depoimentos dos órgãos de polícia criminal.
É de primeira evidência que nada impede um inspector da Polícia Judiciária de depor sobre factos de que tomou conhecimento.
Por outro lado, é, igualmente, claro que não se questiona aqui a proibição de um órgão de polícia criminal depor sobre o conteúdo de declarações que recolheu, quer de testemunhas, quer de pessoas já constituídas arguidas, e que foram formalizadas em auto (n.º 7 do art.º 356.º do Cód. Proc. Penal).
A questão coloca-se em relação às declarações não formalizadas em auto prestadas perante um órgão de polícia criminal: é admissível e poderá ser valorado o depoimento de um agente da polícia que reproduz o que ouviu dizer à vítima de um crime ou a uma pessoa que depois vem a ser constituída arguida ?
Nenhum dos referidos inspectores da P.J. interrogou, formalmente, a (...) e por isso a questão está em saber se podem ser valorados os seus depoimentos na parte em que reproduziram o que ela lhes disse quando foi abordada e detida.
O Prof. Germano Marques da Silva(8) , a este propósito, pronuncia-se nos seguintes termos:
“Poder-se-á questionar se as pessoas referidas no art.º 356.º (órgãos de polícia criminal) poderão ser inquiridas sobre o conteúdo de declarações que não foram reduzidas a auto. Parece-nos que é de aplicar o princípio geral traduzido no brocardo quod non est in auto non est in mundo. Tudo o que for relevante deve constar do auto e se há declarações que do auto não constam não podem ser consideradas, tanto mais que o auto não pode ser lido em audiência”.
Se esta afirmação do autor tiver o sentido de excluir toda e qualquer hipótese de o depoimento de um órgão de polícia criminal poder ser considerado válido e como tal valorado desde que se refira a declarações de um arguido (não formalizadas em auto), mesmo antes de como tal ter sido constituído, então trata-se de uma afirmação inaceitável, que se insere numa corrente extremista sobre proibições (de valoração) de prova e que, como normalmente acontece com as posições extremas, é errada.
Suponhamos que o indivíduo A apresenta-se a um órgão de polícia criminal e diz-lhe que acabou de matar o vizinho.
Perante tal comunicação, o agente policial dirige-se ao local indicado por A como sendo o local do crime para verificar da veracidade do que lhe foi comunicado.
No local, A relata ao agente policial como executou o crime, designadamente que instrumento utilizou para tirar a vida ao seu vizinho.
Como se impõe, o agente policial trata de praticar os actos cautelares necessários e urgentes para preservar os meios de prova e, tendo verificado que a história de A é verosímil, detém-no, constitui-o arguido, elabora o respectivo auto de notícia e apresenta-o ao juiz de instrução.
Numa situação destas, mesmo que na audiência o arguido opte pelo silêncio, seria um absurdo considerar que o agente policial não pode contar no seu depoimento como obteve notícia do crime, que não pode relatar o que lhe foi transmitido pelo, então, suspeito do homicídio e que, fazendo-o, o depoimento não pode ser valorado como meio de prova.
É abundante a jurisprudência no sentido de que nada impede que os agentes policiais deponham sobre esses factos e que tais depoimentos podem e devem ser valorados pelo tribunal, estando sujeitos ao princípio da livre apreciação da prova.
Alguns exemplos para ilustrar esta afirmação:
Acórdão do S.T.J. de 20.11.2002 (C.J./Ac.s STJ, Ano X, Tomo III, 232. Relator: Cons. Virgílio de Oliveira).
O arguido respondeu pela prática de um crime de homicídio qualificado na forma tentada e, na altura do julgamento, o ofendido já está de boas relações com ele e por isso, em audiência, afirma não se ter apercebido por quem fora baleado.
Um agente da P.S.P. que foi ao local onde ocorreram os factos relata em audiência que a vítima, quando se encontrava baleada no chão, disse-lhe que quem o tinha atingido foi o “Zé do Barbeiro”, tendo um outro agente averiguado e apurado que esta era a alcunha do arguido.
O S.T.J. considerou que, não obstante o arguido ter optado por não prestar declarações, nada impedia o tribunal de valorar tal depoimento, já que, embora os órgãos de polícia criminal não possam ser inquiridos como testemunhas sobre o conteúdo de declarações que hajam recebido e cuja leitura não seja permitida, “nada impede que possam ser ouvidas sobre factos de que tomaram conhecimento por outra via, mormente em resultado de haver tomado conta da ocorrência”.
Acórdão do S.T.J. de 24.02.93 (C.J./Ac.s STJ, Ano I, Tomo I, 202. Relator: Cons. Armando Pinto Bastos).
O arguido respondeu, além do mais, pela prática de um crime de furto qualificado e, na sequência das declarações prestadas em interrogatório e com base (...)as, foi efectuada uma busca domiciliária.
Em audiência, apesar de o arguido ter optado pelo silêncio, aos agentes da P.J. foi perguntado se este, durante a busca, tinha referido que os objectos que não lhe pertenciam tinham sido por ele furtados.
O S.T.J. considerou que nada obstava a que os agentes fossem inquiridos nesses termos, porquanto “os agentes da PJ não ficam impedidos de depor sobre factos de que tiveram conhecimento directo por meios diferentes das declarações do arguido no decurso do processo, ainda que também as possam ter ouvido e que elas não possam ser lidas em audiência”.
Acórdão da Relação de Coimbra de 18.06.2003 (C.J. XXVIII, Tomo III, 51. Relator: Desembargador Oliveira Mendes).
O arguido respondeu pela prática de um crime de homicídio negligente cometido no exercício da condução automóvel e na audiência não prestou declarações.
O T.R.C. decidiu que “nada obsta à valoração e utilização dos depoimentos prestados em audiência por dois agentes da GNR na parte em que transmitiram ao tribunal aquilo que ouviram dizer ao arguido no Hospital onde ele havia sido conduzido após o acidente de viação objecto do processo”.
O mesmo Tribunal entendeu que são os princípios da investigação e da verdade material que impõem que se valorem os depoimentos indirectos: “tudo aconselha a que os tribunais, no cumprimento dos princípios da investigação e da verdade material, utilizem sem peias os depoimentos indirectos, obviamente, desde que validamente prestados, depoimentos que no Direito Alemão, segundo nos dá conta Costa Andrade, são considerados e valorados indiscriminadamente, em sede de livre apreciação da prova, sendo que a sua exclusão de acordo com os tribunais alemães seria inteiramente incompatível com uma jurisprudência capaz, tendo o Tribunal Constitucional alemão, sempre que foi chamado a tomar posição sobre a constitucionalidade daquele meio de prova, decidido no sentido da sua admissibilidade”.
No mesmo acórdão faz-se notar que “neste preciso sentido se tem pronunciado a jurisprudência dos nossos tribunais superiores, ao considerar que a prova por ouvir dizer, quando reportada a afirmações produzidas extraprocessualmente pelo arguido, é passível de livre apreciação por parte do tribunal, designadamente quando o arguido se encontra presente na audiência e, por isso, com plena possibilidade de a contraditar, isto é, de se defender”.
Acórdão do S.T.J de 22 de Abril de 2004 (C.J./Ac.s STJ, Ano XII, Tomo II, 165. Relator: Cons. Pereira Madeira).
O arguido respondeu pela prática de quatro crimes de incêndio e, tendo confessado a autoria dos crimes na fase de inquérito, na audiência remeteu-se ao silêncio.
O STJ decidiu que “são passíveis de valoração, em sede de julgamento, os testemunhos dos agentes da autoridade investigatória competente relativamente a factos que foram resultado da sua percepção directa, colhida durante a realização da reconstituição dos crimes de incêndio antes confessados pelo então suspeito”. Isto porque “tais depoimentos não versaram sobre autos de leitura proibida, uma vez que não se tratou de declarações de arguido, que o recorrente ainda não era, nem tinha ainda de ser”.
Só não será assim se se fizer “prova de que as autoridades da investigação tinham continuado a tomar declarações mesmo depois de surgida a fundada suspeita de que se falou (de ser o arguido o autor dos crimes), sem terem logo constituído o suspeito como arguido”.
Muito debatida tem sido a questão de saber se as chamadas “conversas informais” podem ou não ser valoradas pelo tribunal, ou melhor, se os agentes de investigação podem depor sobre o conteúdo dessas conversas.
Os termos da controvérsia estão expostos no Acórdão do S.T.J. de 11.07.2001 (C.J./Ac.s STJ, Ano IX, Tomo III, 166. Relator: Cons. Lourenço Martins), em que se decidiu que, apesar de ter confessado os factos em primeiro interrogatório judicial, se o arguido, em audiência, se remete ao silêncio, os órgãos de polícia criminal que recolheram, ou que ajudaram na recolha, de declarações do arguido não podem depor sobre o seu conteúdo, incluindo-se nesta proibição as chamadas “conversas informais”, “pois não há conversas informais com validade probatória à margem do processo, sejam quais forem os procedimentos de recolha admitidos por lei e por ela sancionados”.
É evidente que aos órgãos de polícia criminal não está vedado ter com determinadas pessoas conversas que não são formalizadas em auto.
Essas conversas podem reportar-se a factos que estão em investigação e a fonte de informação pode até ser um suspeito do crime investigado.
Aliás, ao abrigo do disposto nos artigos 55.º, n.º 2, 249.º e 250.º do Cód. Proc. Penal, os órgãos de polícia criminal podem e devem colher notícias do crime, descobrir os seus agentes e praticar os actos cautelares necessários e urgentes para assegurar os meios de prova, nomeadamente colher informações das pessoas que facilitem a descoberta dos agentes do crime e a sua reconstituição.
Nada impede que os agentes de investigação, em audiência, deponham sobre o conteúdo dessas diligências, incluindo sobre o conteúdo das conversas havidas com suspeitos que, entretanto, foram constituídos arguidos e mesmo que estes, na audiência, se remetam ao silêncio.
Essencial é, no entanto, que as conversas não visem contornar ou iludir a proibição contida no n.º 7 do art.º 356.º do Cód. Proc. Penal e que seja respeitado o comando do art.º 59.º do mesmo diploma legal.
Em suma, são válidos e podem (devem) ser valorados pelo tribunal como meios de prova os depoimentos dos órgãos de polícia criminal sobre factos de que adquiriram conhecimento no âmbito da realização das referidas diligências investigatórias, mesmo que incidam sobre o conteúdo de declarações prestadas por pessoas que vieram a ser constituídas arguidas e que, em audiência, optaram pelo silêncio, desde que não tivessem esse estatuto nem devessem, ainda, tê-lo.
Mas o caso que nos ocupa não se contém nos limites da controvérsia sobre a validade e valoração dos depoimentos que incidem sobre o conteúdo de “conversas informais”.
A situação que agora merece a nossa atenção é em tudo idêntica à que foi objecto de apreciação no Acórdão do S.T.J. de 08.01.2003 (C.J./Ac.s STJ, 2003, Tomo I, 149), também relatado pelo Sr. Cons. Lourenço Martins.
Um indivíduo, de nome Vasco Tomás, foi detido por agentes da P.S.P. quando procedia à venda de heroína, tendo na sua posse vinte embalagens desse produto estupefaciente.
Na altura, o indivíduo confidenciou aos agentes de autoridade que procederam à sua detenção, nomeadamente ao subchefe (…), que a droga era dos arguidos (nesse processo) e que eles, diariamente, lhe entregavam, para vender, cerca de 40 embalagens desse produto, que iam comprar a Espanha.
O STJ considerou que os depoimentos dos agentes da P.S.P., designadamente o do subchefe (…), que relatou o que ouviu do referido (…) (que não chegou a depor em audiência) eram depoimentos indirectos e como tal podiam ser valorados, desde que cumprida a exigência contida no art.º 129.º,n.º 1, do Cód. Proc. Penal.
Também no nosso caso temos os depoimentos de cinco inspectores da P.J. que, em audiência, relatam que seguiram a (...) que ia para o norte do país, abordaram-na e, depois de terem encontrado cerca de 13 quilos de heroína escondidos num compartimento especialmente preparado para o efeito, aquela disse-lhes que o produto estupefaciente, tal como a viatura onde era transportado, pertenciam a um indivíduo cigano de nome ””, da zona de Braga.
Não temos a menor dúvida que tudo se passou conforme foi relatado pelos inspectores da P.J. e os seus depoimentos, conjugados com os demais elementos de prova já indicados e analisados, permitem concluir, com total segurança, que, realmente, a heroína e a viatura apreendidas pertenciam ao arguido (...).
A (...) foi chamada a depor como testemunha, mas, no uso do seu direito, recusou fazê-lo (aliás, com indisfarçado contentamento da defesa).
Assim mesmo, foi cumprida a exigência legal e por isso nada obsta a que sejam considerados válidos e devidamente valorados os depoimentos dos referidos inspectores da P.J.
A concluir este ponto, tem interesse referir que já foi objecto de apreciação pelo Tribunal Constitucional a norma que permite ao tribunal valorar livremente este tipo de depoimentos, nas mesmas circunstâncias (ou seja, quando o arguido, em audiência, não presta declarações e a pessoa que é a “testemunha fonte” se recusa a depor).
Com efeito, no Acórdão de 08.07.99 (D.R. n.º 261, II Série, de 09.11.99), o Tribunal Constitucional faz notar que “não existe (…), entre nós, uma proibição absoluta do testemunho de ouvir dizer (hearsay evidence rule), o princípio hearsay is no evidence (ouvir dizer não constitui prova) sofre, assim, limitações”, sem que daí resulte prejuízo para as garantias de defesa, e que, como já se havia mostrado no Acórdão n.º 213/94, “…a regulamentação consagrada na norma do n.º 1 do artigo 129.º do Código de Processo Penal revela-se proporcionada, (...)a se precipitando uma adequada ponderação dos interesses do arguido em poder confrontar os depoimentos das testemunhas de acusação, os da repressão penal, prosseguidos pelo acusador público e, por último, os do tribunal, preocupado com a descoberta da verdade através de um processo regular e justo (due process of law)”.
A concluir, o Tribunal Constitucional pondera:
“Há, assim, que concluir que o artigo 129.º, n.º 1 (conjugado com o artigo 128.º, n.º 1) do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de que o tribunal pode valorar livremente os depoimentos indirectos de testemunhas que relatam conversas tidas com um co-arguido que, chamado a depor, se recusa a fazê-lo no exercício do seu direito ao silêncio, não atinge, de forma intolerável, desproporcionada ou manifestamente opressiva, o direito de defesa do arguido”.

Mas existem outros elementos de prova que, inequivocamente, revelam que o arguido (...) se dedicava ao tráfico de droga, designadamente que era quem fornecia de produtos estupefacientes o seu irmão (...).
Referimo-nos às transcrições das conversas telefónicas interceptadas e gravadas que não foram declaradas nulas.
Essas transcrições são, fundamentalmente, as que constituem os Apensos n.ºs 1.B, 7.A e 7.B e foram indicadas, quer na acusação, quer na pronúncia como meio de prova e a elas teve acesso irrestrito o arguido que, assim, sobre as mesmas pôde pronunciar-se, quer na fase de instrução, quer na fase de julgamento.
O arguido não pôs em causa o critério que presidiu à selecção das conversas gravadas para serem transcritas e juntas ao processo.
Por outro lado, existe total correspondência entre as transcrições e as conversas gravadas, aspecto que o arguido, também, não pôs em causa.
Como quase sempre acontece, também neste caso o arguido nega que seja dele a voz de qualquer dos intervenientes nas conversas interceptadas e gravadas (não o fez na audiência, mas di-lo no requerimento de abertura de instrução), mas não é necessário ter especiais conhecimentos técnicos para se concluir, com total segurança, que os interlocutores das conversas gravadas e transcritas são mesmo as pessoas identificadas nos respectivos autos de transcrição.
Em muitos casos são os interlocutores que se identificam, umas vezes pelos nomes próprios, outras vezes pelas alcunhas ou pelos diminutivos.
Assim aconteceu, por exemplo, na conversa havida, em 08.12.2000, entre (...) (que se identifica como “(...)”) e um dos seus clientes do tráfico de droga, o (...) (também conhecido por “(...) Cigano”), a quem o primeiro se propõe fornecer produto estupefaciente que vai buscar, respondendo-lhe este que está à espera que lhe paguem o pernum (dinheiro) que lhe devem para ir ter com aquele (fls. 24 e 25 do apenso 1.B).
No dia 29 de Dezembro de 2000, o “(...)” ((...)) contacta, de novo, por telefone, o (...), a quem oferece, para venda, produto estupefaciente (heroína ou cocaína) ao preço de 4.600 contos o quilo, produto este que se preparava para ir buscar a Espanha.
 “Olha uma coisa, daquilo, não há nada ? O lote ?”, pergunta o “(...)”.

 “Há”, responde o (...).
 “E…quanto custa para mim ?”, quer saber o (...).
 “Ah, posso fazer a quatro e seiscentos”, diz o (...).
O (...) acha que está caro o produto:
 “Está, então, está, há quem venda mais….”.
 “Mas não é nada como esta pá, cala-te, há dela uma a hoy, há dela a hoy que fizeram a quatro e quatrocentos, mas não balachim (não presta)”, atalha o (...).
O (...) diz que ainda tem um bocadinho e que não tem dinheiro suficiente, na altura, para comprar um quilo de produto (“eu tenho à média de uns três mil e seiscentos, três mil e setecentos, para aí”), mas como o “(...)” planeia ir para Espanha, acabam por fechar negócio (fls. 46)
 “Olha, pões aí, prontos deixo-te a quatro papires e meio, prontos”, remata o (...).
Na sequência de tal acordo, o (...) ((...)o ou (...)) deslocou-se a Espanha, na tarde do dia 29 de Dezembro de 2000 (“eu já vou andando, sabes? Para onde tenho que ir buscar isso”, diz ele para (…), mulher do (...)) onde obteve do seu irmão (...) um quilo de produto estupefaciente (heroína ou cocaína), que transportou para Portugal, tendo chegado a sua casa, em Braga, com o produto, por volta das 20:04 horas (“eu já estou quase mesmo a chegar a casa, sabes”, diz o “(...)” para o “(...)” em contacto telefónico efectuado a essa hora), acabando por combinar com o “(...)” que, no dia seguinte, iria à Gafanha da Nazaré, acompanhado de um correio (“rambo”) que efectuaria o transporte do produto (fls. 46 a 54 do mesmo apenso 1.B).
Em 13 de Janeiro de 2001, o (...) fez novo contacto telefónico em que comunicou à esposa do (...) a deslocação que ia fazer a Espanha e perguntou se este precisava de produto estupefaciente (heroína ou cocaína) para ele trazer.
A (…) respondeu-lhe que não tinha o dinheiro («pernum») suficiente, afirmando ter apenas 2.500 contos, tendo-lhe retorquido o ((...)o ou (...)) que não fazia mal, pois ele esperava pelo pagamento do resto (fls. 58 a 60 do apenso 1.B):

 “Não sabes se ele quer alguma coisa já, porque eu vou agora…”, pergunta o (...) à (...).
 “Eu, olha…”
 (…)
 “Mas o…não tenho o pernum todo”, responde a (...).
 “Quanto é que falta”, inquire o (...).
 “Falta muito, só tenho dois e meio, ainda falta”, diz-lhe a (...).
 (….)
 (…)
 “Não faz mal…”
 (…)
 “Eu espero, não faz mal…”, responde o “(...)”.
Em conversa efectuada no dia seguinte (cfr. transcrição de fls. 62-63 do mesmo apenso), o (...) diz que, logo à tarde, já tem produto estupefaciente, mas não tem quem o leve ao (...) que diz que vai ver se encontra um lacorrilho de confiança, dizendo, então, o (...):
 “É que ontem, sabes, foram dois paílhos”
 (…)
 “…a estradum, sabes”.
 (…)
 “E foi um calon”, continua o (...).
 “Aonde”, pergunta o (...).
 “Em Lisboa”, responde o (...) que se refere à detenção do (…) e do (…) (os “”) e ao “ (o ).
As conversas transcritas a fls. 50 do Apenso 7.A e fls. 6-7 e 7-9 do Apenso 7.B são aquelas que, de forma mais cristalina, revelam que o arguido (...) era o fornecedor dos produtos estupefacientes que o irmão (...) comercializava.
Na primeira, o arguido pergunta ao irmão se não tinha aí ninguém que comprasse meio quilo («meia peçazinha») de produto estupefaciente a pronto pagamento («com o pernum na mão») respondendo o ((...)o ou (...)) que, nesse momento, não tinha ninguém interessado:

 “Tu não tens ninguém que te compre aí meia peçazinha com o prenom à mão”, pergunta o arguido.
 “Não…”
 (…)
 “Não, a outra vez eu tinha mas… mas como não tinhas, agora não”, responde o (...) que alude à conversa transcrita a fls. 30 do mesmo Apenso 7.A.
Na conversa havida no dia 10 de Maio de 2001, é o (...) que contacta o arguido (...), pedindo-lhe que lhe fornecesse produtos estupefacientes (heroína ou cocaína), que pagaria a pronto pagamento (com o «pernum» na mão), por ter comprador para o adquirir imediatamente (fls. 6 e 7 do Apenso 7.B):
 “Há alguma coisa por aí ?”, inquire o (...).
 “Deixa lá ver, liga mais tarde…já te digo”, responde-lhe o (...).
 “Pois, porque … eu tenho alguém … estás a compreender ?”, diz o (...), sem querer adiantar mais.
 “Sim, sim…”, responde o arguido.
 (…)
 “Pernum à mão ?”, pergunta o (...).
 “(…) tu, tu já sabes que sim, que eu, que eu sem isso não”, responde o “(...)”.
No dia 13 de Maio de 2001, o arguido (...) informa o (...)o ou (...)) de que, no dia seguinte, lhe forneceria o produto, por já ter quantidade suficiente para o efeito (fls. 8 e 9 do Apenso 7.B):
 “Ah, então ainda não tens nada ?”, pergunta o “(...)”.
 “Amanhã podes dizer que já tens, sem falta”, responde o arguido (...) que, mais adiante, esclarece:
 “E amanhã conta com isso que já aí estou com fazenda bastante”.
Antes disso, estava o arguido (...) com dificuldades financeiras, provavelmente, pelas “perdas” que sofreu, e equacionava a hipótese de vender o carro (verdum) se não arranjasse “fazenda” para vender (conversa transcrita a fls. 14-15):
 “Prontos…e eu nem que venda o verdum a perder dinheiro entendes ?”
 (…)
 “Mas se houvesse aí… se houvesse aí alguém que quinasse dois tapetezinhos…”, diz o arguido ao “(...)”, que pergunta:
 “A quem ?”
 “Não há ?” pergunta o (...) que, face à resposta negativa do “(...)”, comenta:
 “Pois é sempre assim, mas não há fazenda aí pá”.
Escusado seria dizer, por ser mais que sabido, que os vocábulos “peças”, “peçazinhas”, “meias peças”, “tapetes”, “tapetezinhos”, “fazenda” faz parte de uma linguagem codificada, normalmente utilizada pelos traficantes, e designam quantidades de produtos estupefacientes.
Em conclusão, considerar que todo este material probatório não é mais que suficiente para a condenação, seria desprezar a evidência dos factos.
Os factos que se referem às condições pessoais do arguido e a alguns aspectos do seu percurso de vida tiveram por base o relatório social elaborado pelo IRS.
Uma palavra final para indicar as razões por que não se deu como provado o que vem alegado na contestação.
Quando o arguido alega que é “pessoa considerada” na zona da sua residência, não sabemos, exactamente, a que se refere. Se quer dizer que é pessoa bem conceituada, tida em boa consideração na sua zona da sua residência, não ofereceu qualquer prova sobre isso.
O “trabalho garantido” que diz ter não se sabe qual seja porque, também, nenhuma prova foi feita.
Quem já antes foi condenado na pena de 8 anos de prisão por crime de tráfico de estupefacientes e que, depois destes factos por que está a ser julgado, foi condenado em nova pena de prisão por falsificação de documentos, só por ironia pode afirmar: “tem bom comportamento anterior e posterior aos factos”.
Não é, certamente, de modesta condição económica quem tem um “Mercedes 280” e um “BMW 525 TDS”.

Valoração jurídico-penal dos factos provados
O consumo de substâncias estupefacientes e, em geral, de drogas susceptíveis de provocar toxicomania assumiu no século XX uma extensão e gravidade que o tornaram motivo de especial atenção e cuidado dos Estados e organizações internacionais.
Desde o início do século que as nações se têm vinculado a tratados multilaterais, ao princípio voltados para a repressão da difusão do ópio e depois para as substâncias estupefacientes e psicotrópicas, em geral.
Esses instrumentos mais importantes são hoje a Convenção Única de 1961 sobre os Estupefacientes, emendada pelo Protocolo de 1972 e a Convenção das Nações Unidas Contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e de Substâncias Psicotrópicas de 1988.
O fenómeno (tráfico, consumo e criminalidade associada) da droga em Portugal foi praticamente inócuo até 1974 e é com o regresso dos colonos das então províncias ultramarinas que o problema começa a manifestar-se com acuidade.
Pese embora a circunstância de Portugal ser, pela sua situação geográfica, um país de “trânsito” da droga que aflui à Europa, só nos princípios da década de 80 é que as apreensões de produtos estupefacientes começaram a ser significativas.
É neste contexto que surge o Dec. Lei n.º 430/83, de 13 de Dezembro, que, além de adaptar algumas das estruturas à luta internacional contra o flagelo da droga, introduziu no nosso ordenamento jurídico as normas da Convenção Única de 1961 e da Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas.
A aprovação da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e de Substâncias Psicotrópicas de 1988 determinou a aprovação do Dec. Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, que actualmente define o regime jurídico aplicável ao tráfico e consumo de estupefacientes.
O tipo base ou fundamental dos crimes de tráfico de estupefacientes vem assim definido (art.º 21.º, n.º 1):
“Quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40.º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos”.
Como, facilmente, se constata, a antecipação da tutela penal do bem jurídico é tal que mesmo aqueles actos que representam um perigo mais ou menos remoto para a saúde individual são susceptíveis de consubstanciar crimes de tráfico de estupefacientes.
Condutas há que envolvem grandes riscos e por isso a lei penal basta-se com a produção do perigo (concreto ou abstracto) para que dessa forma o tipo legal esteja preenchido. O dano que se possa vir a desencadear não tem interesse dogmático imediato. Pune-se logo o perigo, porque tais condutas são de tal modo reprováveis que merecem imediatamente censura ético-social. Devido à natureza dos efeitos altamente danosos que estas condutas ilícitas podem desencadear, o legislador penal não pode esperar que o dano se produza, tem de fazer recuar a protecção penal para momentos anteriores, isto é, para o momento em que o perigo se manifesta (do Preâmbulo do Código Penal, n.º 31).
Outra constatação evidente é a de que da estrutura do tipo não faz parte a lesão de qualquer bem jurídico concreto e individualizado.
A primeira característica do modelo penal de resposta às condutas de tráfico de drogas está, com efeito, na antecipação repressiva ao limiar da perigosidade abstracta.
Por isso se diz, com geral aceitação, que o crime de tráfico de estupefacientes é um crime de perigo abstracto (na jurisprudência, cfr., entre outros, o Ac. do S.T.J., de 02.05.90, B.M.J. 397.º, 128; na doutrina, pode ver-se A.G. Lourenço Martins, “Droga e Direito”, 124).
De perigo, porque não se exige, como nos crimes de dano ou de resultado, uma efectiva lesão, mediante a destruição ou diminuição do bem jurídico. Basta o perigo de lesão, o dano provável, a potencialidade da acção para ocasionar a perda ou diminuição de um bem, o sacrifício ou restrição de um interesse.
De perigo abstracto, porque o perigo não entra na estrutura do ilícito típico, é a razão motivante da lei incriminadora.
O legislador parte da presunção, juris et de jure, de que qualquer dos actos ou actividades exaustivamente descritos na previsão do art.º 21.º encerra o risco de difusão e consumo por um número indeterminado de pessoas e, portanto, implica o perigo de lesão da saúde pública, “entendida como conjunção e síntese das boas condições físicas e psíquicas dos cidadãos” (Soto Nieto, “El Delito de Tráfico Ilegal de Drogas”, citado por Lourenço Martins, loc. cit., 122).
A estrutura do tipo penal que analisamos, bem como a do descrito no subsequente art.º 22.º, patenteia que eles estão vocacionados para abarcar eficazmente, em toda a variedade das suas possíveis representações, as múltiplas formas e momentos em que se manifesta o complexo processo que vai dos precursores ao panfleto e de algum campo do sudoeste asiático ou do planalto andino a qualquer meio urbano ou até rural do primeiro mundo .
O crime de tráfico de estupefacientes é necessariamente doloso, já que, ao contrário do que sucedia no Dec. Lei n.º 430/83, de 13 de Dezembro (e no Dec. Lei n.º 420/70, de 03 de Setembro, que o precedeu) deixou de se prever o seu cometimento por negligência.
O elemento subjectivo do tipo basta-se com o dolo genérico, ou seja, a vontade de praticar qualquer dos actos descritos na previsão normativa (elemento volitivo) e o conhecimento ou representação, por parte do agente, do facto ilícito que realiza (elemento cognitivo ou intelectual).
Na sua configuração base, o crime de tráfico de estupefacientes prescinde de qualquer propósito específico, designadamente do escopo lucrativo do agente, embora este, a existir, não seja indiferente, nomeadamente em termos de punição.
Feita esta perfunctória análise do tipo legal definido no art.º 21.º, n.º 1 do Dec.Lei n.º 15/93, de 22/1, vejamos se o arguido praticou actos que configurem o tipo objectivo deste ilícito.
Ao arguido vem imputada a prática de inúmeros actos de tráfico de produtos estupefacientes. É, seguramente, ao arguido (...) que é atribuída uma actividade mais intensa neste âmbito(9).
Não há muito tempo que se discutia se a prática de vários actos de tráfico configurava um concurso real de crimes, uma continuação criminosa ou, simplesmente, um só crime de tráfico ilícito de estupefacientes.
Impôs-se, facilmente, o entendimento de que estas situações – de pluralidade de actos executivos da mesma espécie, produto de uma vontade unitária – podem ser reconduzidas àquilo que a doutrina designa por “unidade de acção típica em sentido amplo” (H.H. Jescheck, “Tratado de Derecho Penal”, vol. 2.º, 998).
Hoje, é pacificamente aceite que, mesmo que o agente tenha praticado vários actos de tráfico, só um crime lhe pode ser imputado, mas também não se questiona que basta um só dos actos descritos no citado art.º 21.º, n.º 1, do Dec. Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, para que se mostre preenchido o tipo legal.
Ora, do extenso rol de actos de tráfico imputados ao arguido, considerou-se provado que, no dia 22 de Setembro de 2000, possuía cerca de 13 quilos de heroína que se preparava para comercializar e que era o fornecedor dos produtos estupefacientes que o irmão (...), também, comercializava.
Com efeito, era do (...) a droga que, naquele dia, a (...), vinda do norte do país e acatando as instruções do arguido, veio buscar à sua casa de residência, em Alverca, onde estava armazenada.
Como atrás se disse, mas não é demais frisar, a simples posse ou a detenção de produtos estupefacientes para venda já constitui crime de tráfico, independentemente de o agente vir ou não a praticar o projectado acto de venda (cfr., entre outros, os Acórdãos do S.T.J. de 28.03.96, C.J., Ano VI, Tomo I, 240, de 27.06.91, C.J., 1991, Tomo III, 40, e de 08.03.90, C.J., 1990, tomo I, 35).
Alem disso, pelos menos, nos dias 29 de Dezembro de 2000, 13 de Janeiro de 2001, 23 de Março de 2001 e 13 de Maio de 2001, o arguido vendeu e ofereceu para venda ao irmão (...) produto estupefaciente (heroína ou cocaína) que este, por seu turno, vendeu a (...).
Vejamos se ocorrem as circunstâncias qualificativas indicadas na acusação.
O art.º 24.º do Dec. Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, contém um elenco de circunstâncias cuja verificação agrava em um terço os limites mínimo e máximo das penas previstas para o crime base.
É sabido que uma das finalidades precípuas, no campo da normatividade penal, é a de operar com elementos que desencadeiem um mínimo de variação interpretativa, de forma a que os valores da certeza e da segurança se cumpram.
No entanto, embora se reconheça que tal desiderato é incapaz de se realizar completamente, o legislador penal recorre, com frequência, a conceitos indeterminados(10).
É o que acontece com os conceitos de “grande número de pessoas” e de “avultada compensação remuneratória” contidos nas agravantes previstas nas alíneas b) e c) do citado art.º 24.º
Cabe à doutrina e, sobretudo, à jurisprudência fixar o sentido e alcance de tais conceitos.
No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 26.04.89 entendeu-se que a entrega de estupefacientes, durante mais de quatro anos, a um número indeterminado de pessoas, mas, comprovadamente, superior a onze, integra a primeira das aludidas agravantes.
É de perfilhar o entendimento de que, visando a norma da al.b) do art.º 24.º do Dec. Lei n.º 15/93 a tutela de uma situação de perigo acrescido, “a sua repercussão dependerá das circunstâncias concretas do próprio meio social, cujos membros foram destinatários da droga” e, nesta perspectiva, “venda de heroína a cem pessoas, por exemplo, é algo de axiologicamente diverso, consoante ocorra numa pequena cidade do interior, ou na capital”(11).
Seja como for, não é legítimo extrapolar uma conclusão nesse sentido - de que se verifica a circunstância agravante da difusão por um grande número de pessoas - a partir da quantidade de droga sobre a qual incidiu a actividade de tráfico (12).
Quanto à circunstância da al.c) do art.º 24.º, inicialmente, formou-se uma corrente que preconiza que o conceito indeterminado “avultada compensação remuneratória” deve ser aproximado do de “valor consideravelmente elevado”, ou seja, o que exceder 200 unidades de conta, avaliadas no momento da prática do facto (cfr. Ac. do S.T.J. de 02.07.92, cujo sumário vem transcrito em “Droga e Direito”, 142).
Mais recentemente, tem prevalecido a ideia de que, embora os valores a que alude o art.º 202.º do Cód. Penal possam servir como quadro de referência, na determinação do conceito de “avultada compensação remuneratória” deve lançar-se mão de um critério mais maleável do que aquele, simplesmente aritmético, que está previsto para os crimes contra o património, dada a diferente natureza dos bens jurídicos em presença(13) .
Se os bens ofendidos no crime de tráfico de estupefacientes são, indiscutivelmente, mais relevantes do que aqueles que são lesados com os crimes contra o património, então - diz-se - “é coerente uma interpretação que se baste com uma “avultada compensação” integrando um conceito de menor amplitude do que, por exemplo, o de valor consideravelmente elevado do Código Penal”(14) .
A necessidade de serem encontradas contra-motivações ao móbil do lucro fácil que, normalmente, norteia os traficantes de droga, sem dúvida que justifica uma menor exigência do intérprete quanto ao montante desse lucro.
Debrucemo-nos agora sobre a terceira das circunstâncias agravantes indicadas na acusação: a actuação em bando.
O Dec. Lei n.º 430/83, de 13/12, que precedeu o diploma legal que actualmente define o regime jurídico do tráfico e consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, no seu art.º 27.º, al.h), previa o “concurso de duas ou mais pessoas” como circunstância qualificativa do crime de tráfico de estupefacientes.
Agora, a al.j) do art.º 24.º do Dec. Lei n.º 15/93, de 22/1, que lhe sucedeu, é bem mais exigente, pois não só requer que o agente actue como membro de bando e com a colaboração de, pelo menos, outro membro do bando, mas também que este (bando) se haja formada para a prática reiterada de crimes de tráfico de estupefacientes e de percursores.
Com a revisão do Cód. Penal operada pelo Dec. Lei n.º 48/95, de 15 de Março, esta circunstância agravante foi introduzida como qualificativa dos crimes de furto e está formulada em termos perfeitamente idênticos.
Dela, ou melhor sobre o conceito de “bando”, disse(15) (apenas) o Prof. Figueiredo Dias que é “uma forma de comparticipação”, “uma forma especial de co-autoria”.
Dizer-se que o “bando” é algo mais do que o concurso de pessoas (nomeadamente a co-autoria) e menos que a “associação criminosa”(16) ou que se trata de um tertium genus entre estas duas realidades(17) é afirmação que não suscita reservas, mas que, também, pouco ou nada elucida sobre a essência desta figura.
O “bando”, para o efeito que aqui nos interessa, é seguramente um conjunto (dois ou mais) inorgânico de indivíduos, porventura agregados em torno de um líder, unidos pelo mesmo propósito de praticar, de forma reiterada, crimes (de tráfico de estupefacientes), mas sem que esta convergência de vontades dê origem a uma realidade autónoma, referenciável e que transcenda a vontade dos seus membros(18), como é próprio da “associação criminosa”.
É dessa mais estreita colaboração a diferentes níveis, de uma mais intensa conjugação de vontades dos membros que resulta um acréscimo de perigosidade e justifica uma maior censurabilidade.
A verificação da circunstância a que vimos aludindo exige os seguintes pressupostos:
• que o agente seja membro de um bando;
• pré-determinação do bando à prática reiterada de crimes de tráfico de estupefacientes e/ou de precursores;
• actuação do agente como membro desse bando e com a colaboração de, pelo menos, outro membro do mesmo bando.
A factualidade descrita nos despachos de acusação e de pronúncia enquadra-se, perfeitamente, na definição de “bando” que deixámos exposta, pois evidencia uma actuação em grupo e uma intensa conjugação de vontades entre os membros do grupo.
No entanto, a factualidade apurada não permite ir além da conclusão de que estamos perante uma união ocasional para o cometimento de um crime de tráfico de estupefacientes.
O arguido (...) recrutou a (...) para lhe armazenar a droga em sua casa e para a transportar de Alverca até ao norte do país, mas esta colaboração intersubjectiva não é mais que a realidade que subjaz à co-autoria.
É muito grande a quantidade de heroína apreendida, pertencente ao arguido (...), e por isso seria, necessariamente, muito elevado o lucro almejado.
Importa fazer notar que a lei não exige que seja muito elevado o lucro obtido.
Basta que o agente procurasse obter avultada compensação remuneratória.
Ora, a comercialização dos cerca de 13 quilos de heroína apreendidos à (...) e pertencentes ao (...) proporcionaria um lucro de vários milhares de contos.
O tráfico de estupefacientes a este nível de grandeza é, necessariamente, muito lucrativo, proporciona aos traficantes elevadíssimos rendimentos.
Esta é uma afirmação que não carece de demonstração, pois é do conhecimento geral, pode considerar-se um facto notório.
Voltemos à circunstância qualificativa da al.b) do art.º 24.º do Dec. Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro.
Já tivemos oportunidade de referir que não se pode concluir, automaticamente, pela verificação da circunstância agravante da difusão por um grande número de pessoas, apenas, a partir da quantidade de droga sobre a qual incidiu a actividade de tráfico(19).
Importa ter em conta que neste caso não está em causa o tráfico de umas dezenas ou centenas de gramas de produto estupefaciente.
Do que aqui se trata é da comercialização de quilos de heroína.
Com um grama de heroína, é sabido, fazem os “dealers” de rua ou de apartamento dez doses individuais (os conhecidos “panfletos”).
Um quilo desse produto, normalmente, acaba por ser dividido em cerca de 10 000 “panfletos” e atingirá centenas de consumidores.
Mas a previsão normativa reporta-se a uma situação já concretizada (“foram distribuídas”) e não (também) a uma situação virtual ou potencial (poderiam ser distribuídas ou estavam destinadas a ser distribuídas).
Ora, nada permite afirmar (repare-se que a fórmula verbal é a mesma que já constava da al.b) do art.º 27.º do Dec. Lei n.º 430/83, de 13 de Dezembro) que a letra do texto fica aquém do espírito da lei, que se disse menos do que aquilo que se pretendia dizer. Aliás, o princípio da legalidade sempre afastaria, no caso, a hipótese de recurso à interpretação extensiva.
Deste modo, concluímos que o arguido (...) cometeu um crime de tráfico de estupefacientes agravado, resultando a qualificação, apenas, da circunstância prevista na al.c) do art.º 24.º do Dec. Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro.
A escolha e a medida da pena
1.1 A medida legal da pena ou moldura penal.
Feito o enquadramento jurídico-penal dos factos apurados, importa proceder à determinação da pena.
Se ao legislador compete estatuir as molduras penais cabidas a cada crime, valorando para o efeito a gravidade máxima e mínima que o ilícito de cada um dos tipos pode assumir, e oferecer ao juiz uma directriz, tanto quanto possível precisa, sobre os critérios de que este deve socorrer-se na escolha e na determinação concreta da pena, ao juiz cabe a tarefa de, por um lado, determinar a moldura penal abstracta cabida aos factos provados e, por outro, dentro desta moldura penal, encontrar o quantum concreto de pena a cominar ao arguido.
O crime de tráfico de estupefacientes, na sua configuração base, é punível com pena de prisão de 4 a 12 anos.
Ocorrendo a agravação do art.º 24.º, o crime de tráfico de estupefacientes passa a ser punível com pena de prisão de 5 anos e 4 meses a 16 anos.
Importa verificar se ocorre alguma circunstância capaz de alterar, elevando ou baixando, esta moldura penal.
A única circunstância capaz de alterar, elevando, a medida legal da pena seria a reincidência, que faz elevar de um terço o respectivo limite mínimo (art.º 76.º, n.º 1 do Cód. Penal).
A reincidência exige, antes de mais, que estejamos perante crimes dolosos. Ela não opera entre crimes negligentes ou entre crimes dolosos e negligentes.
Em segundo lugar, é necessário que o(s) crime(s) anterior(es) tenha sido punido e o(s) novo(s) crime(s) deva(m) ser punido(s) com pena de prisão efectiva superior a seis meses.
Em terceiro lugar, exige a lei que entre a data da prática do crime anterior e a do crime seguinte não tenham decorrido mais de cinco anos, não se computando o tempo em que o agente esteve a cumprir pena ou medida de segurança ou detido (em prisão preventiva ou em prisão domiciliária).
É este pressuposto formal que não se verifica no caso: mesmo não computando o tempo de cumprimento da pena, já decorreram mais de cinco anos, visto que, apesar de o arguido ainda estar a cumprir pena, a condenação é de 1990.
Mas se não ocorre qualquer circunstância agravante comum ou especial, também é manifesto que não há razões para concluir pela verificação de qualquer circunstância modificativa atenuante.
1.2 A medida concreta (judicial) da pena
Conforme se dispõe no art.º 71.º, n.º 1 do Cód. Penal, é em função do binómio prevenção-culpa que se há-de encontrar a medida da pena, assim se satisfazendo a necessidade comunitária da punição do caso concreto e a exigência de que a vertente pessoal do crime limite de forma inultrapassável as exigências de prevenção.
O momento inicial, irrenunciável e decisivo da fundamentação da pena repousa numa ideia de prevenção geral, uma vez que ela (pena) só ganha justificação a partir da necessidade de protecção de bens jurídicos.
Prevenção geral positiva ou de integração, tendo-se em vista uma concepção integrada de intimidação que actue dentro do campo marcado por padrões ético-sociais de comportamento que a ameaça da pena visa justamente reforçar.
São as exigências de prevenção geral que hão-de definir a “moldura da prevenção”, dentro da qual cabe à prevenção especial (de ressocialização) determinar a medida concreta.
Escusado seria dizer que são muito prementes as exigências de prevenção geral e por isso se impõe severidade no doseamento das penas.
Continua a prevalecer a ideia de severidade das penas, sobretudo pelos efeitos altamente perniciosos que o tráfico ilícito de drogas acarreta.
O caso que se julga situa-se numa zona intermédia do circuito de comércio e distribuição de estupefacientes, em que não há, ainda, contacto com os consumidores.
Não há aqui pequeno ou médio tráfico.
É fácil de imaginar quão danosas para a saúde pública seriam as consequências da distribuição, pelos consumidores, dos cerca de 13 quilos de heroína apreendidos.
Como atrás se disse, se tivesse sido comercializada, essa droga chegaria a milhares de consumidores e, não podendo considerar-se essa circunstância para qualificar o crime, pode e deve, no entanto, ser tida em conta na determinação da medida concreta da pena.
No entanto, há que ter sempre presente que, mais que a gravidade das penas, intimida e tem uma alta função pedagógica o grau de probabilidade de elas virem a ser aplicadas.
Em vez de medidas legislativas erradas, ou, no mínimo, de duvidosa eficácia, importa que se crie condições para a aplicação rápida da lei, de modo a que se instale a certeza de que não haverá impunidade.
No primeiro julgamento realizado aludimos a sinais de que, em relação a alguns arguidos, estava a instalar-se um sentimento de impunidade.
Com a decisão de anular um dos mais importantes meios de prova recolhidos na fase de investigação, não é difícil calcular que esse sentimento se generalizou.
Mas este tribunal não pode contemporizar com a violação de um bem tão importante como é a saúde pública, que se visa proteger com a incriminação do tráfico de drogas.
Este tribunal não abdica da sua função de contribuir para uma adequada protecção dos bens jurídicos que as incriminações contidas no regime jurídico-penal do tráfico de estupefacientes visam tutelar.
Em suma, sendo muito prementes as exigências de prevenção geral, a necessidade de estabilização das expectativas comunitárias na validade das normas jurídicas violadas também é sentida e essa exigência terá de reflectir-se na medida da pena a aplicar.
Um dos princípios a que obedece o Código Penal é o princípio da culpa, segundo o qual não pode haver pena sem culpa, nem pena superior à medida da culpa.
Relevantes para avaliar da medida da pena necessária para satisfazer as exigências de culpa verificada no caso concreto são os factores elencados no art.º 71.º, n.º 2, do Cód. Penal e que, basicamente, têm a ver, quer com os factos praticados, quer com a personalidade do agente que os cometeu.
É muito elevada a ilicitude da conduta do arguido.
Embora o legislador não tenha aderido à distinção entre drogas duras e drogas leves e tenha até eliminado a alusão (que o Dec. Lei n.º 430/83, de 13 de Dezembro continha no seu art.º 3.º, n.º 2) aos critérios gerais de elaboração das tabelas, o certo é que a distribuição das drogas pelas várias tabelas anexas ao Dec. Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro não deixa de valorar gradativamente a sua perigosidade intrínseca e social.
Neste quadro, e porque são óbvias as incidências em sede de ilicitude, tem interesse uma breve referência às características e efeitos do estupefaciente traficado e apreendido, ou seja, a heroína.
Pelo seu forte poder adictivo (com instalação de dependência fisica e concomitante síndroma de privação), a heroína é, de longe, a mais intrinsecamente perigosa.
É entre os heroinómanos que a taxa de mortalidade é mais elevada.
Continua a ser a droga mais disseminada entre os toxicodependentes e o seu potencial criminógeno é muito forte, sendo um dado da experiência comum que o consumo imoderado de heroína é factor de ampla criminalidade conexa ou indirecta, nomeadamente contra o património.
São, por demais, conhecidas as devastadoras consequências (a nível pessoal, familiar e social) associadas ao tráfico de estupefacientes e o arguido agia com soberana indiferença pelos riscos que criava com a sua actividade criminosa.
O arguido agiu sempre com dolo directo que, por norma, é a forma mais intensa do dolo.
A motivação foi a de obter compensações remuneratórias.
Salvo raríssimas excepções, a motivação dos traficantes de produtos estupefacientes é sempre a mesma, em todo o lado: o lucro fácil, o enriquecimento rápido, a obtenção, sem esforço, de bens materiais.
A favor do arguido não militam quaisquer circunstâncias com valor atenuativo.
Não teve qualquer demonstração de que interiorizou a censurabilidade do seu comportamento e, face aos seus antecedentes, não parece que possa concluir-se que será sensível à pena que lhe vai ser imposta e que o seu cumprimento terá o desejado efeito inibitório no futuro.
A admonição contra o crime resultante da condenação anterior foi, pelo arguido, ignorada, atitude que não pode deixar de ser censurada.
O juízo de prognose que fazemos quanto ao seu comportamento futuro é, decididamente, negativo: voltará a delinquir.
Com efeito, os elementos de que dispõe o tribunal permitem afirmar que o arguido revela uma personalidade com propensão para delinquir.
Neste tribunal, é constante o esforço no sentido de uma certa harmonização das penas, por forma a evitar, na medida do possível, grandes discrepâncias entre as penas aplicadas para casos semelhantes.
Ora, no âmbito do referido processo comum n.º … do Tribunal Judicial da Comarca de Póvoa de Varzim, em que também o (...) respondeu, o arguido (…), por ter traficado cerca de 4 quilos de heroína, foi condenado na pena de 10 anos de prisão.
Neste caso, tendo o arguido (...) traficado uma quantidade muito superior, não ocorrendo qualquer circunstância que atenue a sua culpa, que é muito elevada, mostra-se perfeitamente adequada a pena de 11 anos de prisão.

***
Justifica-se agora uma brevíssima alusão ao destino dos bens apreendidos, mais exactamente, ao veículo automóvel apreendido na posse da (...) quando esta o conduzia, (...)e transportando a heroína.
A norma matricial nesta matéria é a contida no art.º 109.º, n.º 1 do Cód. Penal:
“São declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico, ou que por este tiverem sido produzidos, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos”.
O art.º 110.º, n.ºs 1 e 2 dispõe sobre os objectos pertencentes a terceiro:
Não tem lugar a sua perda a favor do Estado se, à data do facto, não pertencerem a nenhum dos agentes ou beneficiários, ou não lhes pertencerem no momento em que a perda foi decretada.
No entanto, mesmo os bens pertencentes a terceiros podem ser declarados perdidos a favor do Estado se os seus titulares tiverem concorrido, de forma censurável, para a sua utilização ou produção, ou do facto tiverem retirado vantagens, ou ainda quando os objectos forem, por qualquer título, adquiridos após a prática do facto, conhecendo os adquirentes a sua proveniência.
O regime jurídico do tráfico de produtos estupefacientes aprovado pelo Dec. Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, contém normas específicas sobre este ponto.
O art.º 35.º, n.º 1, na sua formulação primitiva, continha norma idêntica à do citado art.º 109.º, n.º 1 do Cód. Penal.
Em 1996, através da Lei n.º 45/96, de 3 de Setembro, foi introduzida uma alteração radical.
Para serem declarados perdidos a favor do Estado, basta que os objectos tenham servido ou estivessem destinados a servir para a prática de uma infracção prevista no Dec. Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, ou que por essa infracção tenham sido produzidos.
Esta matéria da perda de bens está proficientemente tratada no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 14.03.2002 (C.J./Ac.s STJ, Ano X, Tomo I, 234).
Aí se salienta que, para serem declarados perdidos a favor do Estado, é necessário que haja um nexo de instrumentalidade entre a utilização do objecto e a prática do crime, ou seja, é indispensável que “do factualismo provado resulte que, entre a utilização do objecto e a prática do crime, em si próprio ou na modalidade, com relevância penal, de que se revestiu, exista uma relação de causalidade adequada, por forma a que, sem essa utilização, a infracção em concreto não teria sido praticada, ou não o teria na forma, com significação penal relevante, verificada”.
Está, claramente, reunido o condicionalismo legal necessário para ser declarado perdido a favor do Estado o veículo automóvel “BMW 525 TDS”, de matrícula (…), apreendido à (...), mas propriedade do (...).
Com efeito, trata-se de um veículo que foi especialmente adaptado para o transporte de produtos estupefacientes e era um transporte de cerca de 13 kgs de heroína que (...)e se fazia quando foi apreendido, ou seja, mostra-se, claramente, verificado aquele nexo de instrumentalidade de que se fala no citado aresto.
DECISÃO:
Pelo exposto, decide-se:
A) Julgar parcialmente procedente a acusação deduzida contra o arguido (...) e, em consequência, condená-lo pela prática, em autoria material, de um crime de tráfico ilícito de estupefacientes agravado previsto e punível pelos art.ºs 21.º, n.º 1, e 24.º, alínea c), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, com referência às tabelas I-A e I-B anexas ao mesmo diploma, na pena de 11 (onze) anos de prisão.
B) Por ter sido utilizado e estar destinado a servir para a prática de crimes de tráfico de estupefacientes, nos termos dos art.ºs 35.º, n.º 1 e 36.º, n.ºs 2 e 5 do Dec. Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, declarar perdido a favor do Estado o veículo automóvel da marca “BMW”, modelo “525 TDS”, de matrícula (…).
(…)

V – Cumpre decidir.

1. O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente (cf., entre outros, os Acs. do STJ de 16.11.95, de 31.01.96 e de 24.03.99, respectivamente, nos BMJ 451° - 279 e 453° - 338, e na CJ (Acs. do STJ), Ano VII, Tomo I, pág. 247, e cfr. ainda, arts. 403° e 412°, n° 1, do CPP).
2. O recurso será julgado em audiência, atento o disposto no art.º 419.º n.º 3 alínea c) do C.P.Penal
3. O arguido (...) veio levantar as seguintes questões/recorreu:
a) Do despacho que declarou a excepcional complexidade do processo.
b) Do despacho de indeferiu a irregularidade “pelo facto de não ter sido lido em audiência os meios de prova e convicção do Tribunal de forma correcta”.
c) Relativamente à falta de fundamentação da decisão recorrida.
d) O arguido veio ainda invocar erro de julgamento.
e) Do Depoimento Indirecto.
f) Sobre a validade das escutas telefónicas.
g) Sobre a valoração de depoimentos e declarações quando excederam 30 dias entre a sua realização e a leitura do acórdão condenatório.
4. Relativamente ao despacho que declarou os autos como de especial complexidade.
Por despacho de 03 de Outubro de 2007 (fls.10180 a 10182), foi declarado o processo como de especial complexidade.
O arguido encontra-se acusado da prática de um crime de tráfico de estupefacientes p.e p. pelo artigo 21.°, n.° 1e 24.º alínea c) do Decreto-Lei n.° 15/93, de 22.1, com referência às tabelas I-A e I-B anexas a este diploma
Face á entrada em vigor da Lei n.° 48/2007, de 29.VIII, que procedeu à 15.ª alteração ao Código de Processo Penal aprovado pela Lei n.° 78/87, de 17 de Fevereiro, revogou o artigo 54.° do Decreto-Lei n.° 15/93, de 22.1 – cfr. artigo 5.°, alínea b).
Desta forma, caducou o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.° 2/2004, de 11.2.2004 (DR IS-A de 2.4.2004), com o seguinte teor: «Quando o procedimento se reporte a um dos crimes referidos no 12. ° 1 do artigo 54.º do DL n.º 15/93, de 22 de Janeiro, a elevação dos prazos de duração máxima da prisão preventiva nos termos do n. ° 3 do artigo 215. ° do Código de Processo Penal, decorre directamente do disposto no n.º 3 daquele artigo 54.º, sem necessidade de verificação e declaração judicial da excepcional complexidade do procedimento».
Do facto resulta que apenas que possam ser declarados de excepcional complexidade os processos respeitantes a crime de tráfico de estupefacientes, não ope legis, mas sim nos termos gerais aplicáveis aos demais crimes, ou seja, com verificação e declaração judicial.
O recorrente (...) está detido à ordem dos presentes desde 8 de Junho de 2007 e refere que “a excepcional complexidade só tem sentido em caso de dificuldades do procedimento, sendo que no caso concreto, as mesmas não se verificam, já que na fase de julgamento, fase em que a mesma foi decretada, não houve qualquer dificuldade de procedimento, tendo a mesma tido apenas 3 sessões que foram gravadas em 6 cassetes , inexistindo em consequência qualquer razão para a declaração de excepcional complexidade”.
O artigo 215.°, n.° 4, do Código de Processo Penal, actualmente em vigor, prescreve que é necessária a audição do arguido, o que foi cumprido.
Relativamente à substância do despacho, i.é, se se verificam os pressupostos para a declaração de especial complexidade, o mesmo mostra-se correctamente efectuado sustentado.
Dispunha o Artigo 215.º do C.P.Penal (Prazos de duração máxima da prisão preventiva), em vigor à data dos factos:
1 - A prisão preventiva extingue-se quando, desde o seu início, tiverem decorrido:
(…)
2 - Os prazos referidos no número anterior são elevados, respectivamente, para 8 meses, 1 ano, 2 anos e 30 meses, em casos de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, ou quando se proceder por crime punível com pena de prisão de máximo superior a oito anos, ou por crime:
(…)
3 - Os prazos referidos no n.º 1 são elevados, respectivamente, para 12 meses, 16 meses, 3 anos e 4 anos, quando o procedimento for por um dos crimes referidos no número anterior e se revelar de excepcional complexidade, devido, nomeadamente, ao número de arguidos ou de ofendidos ou ao carácter altamente organizado do crime.
Relativamente ao actual C.P.Penal foram apenas alterados, na parte que aqui interessa, os prazos de prisão preventiva, bem como à necessidade da “audição” do arguido, mantendo-se os pressupostos de carácter substantivo.
Como refere o Acórdão do S.T.J de 26-01-2005, Processo: 05P3114 , Relator: HENRIQUES GASPAR in www.dgsi.pt :
“1. A noção de 'excepcional complexidade' do artigo 215º, nº 3 do CPP está, em larga medida, referida a espaços de indeterminação, pressupondo uma integração densificada pela análise e ponderação de todos os elementos do respectivo procedimento; a integração da noção exige uma exclusiva ponderação sobre todos os elementos da configuração processual concreta, que se traduz, no essencial, em avaliação prudencial sobre factos.
2. A especial complexidade constitui, no rigor, uma noção que apenas assume sentido quando avaliada na perspectiva do processo, considerado não nas incidências estritamente jurídico-processuais, mas na dimensão factual do procedimento enquanto conjunto e sequência de actos e revelação interna e externa de acrescidas dificuldades de investigação com refracção nos termos e nos tempos do procedimento.
3. O juízo sobre a especial complexidade constitui um juízo de razoabilidade e da justa medida na apreciação das dificuldades do procedimento, tendo em conta nomeadamente, as dificuldades da investigação, o número de intervenientes processuais, a deslocalização de actos, as contingências procedimentais provenientes das intervenções dos sujeitos processuais, ou a intensidade de utilização dos meios.
4. O juízo sobre a excepcional complexidade depende do prudente critério do juiz na ponderação de elementos de facto; as questões de interpretação e aplicação da lei, por mais intensas e complexas não podem integrar a noção com o sentido que assume no artigo 215º, nº 2 do CPP.
O despacho recorrido avaliou a complexidade da investigação conexionada com o número de arguidos (44), tendo sido efectuada instrução requerida pelo arguido recorrente.
Nos presentes autos, as diligências de prova prolongaram-se por muitos meses envolviam todos os arguidos (44 – quarenta e quatro), incluindo o ora recorrente. Em verdade, depois de vigilâncias e intercepções telefónicas para identificar e caracterizar a actividade de tráfico de estupefacientes desenvolvida pelos vários suspeitos, foram realizadas buscas domiciliárias, apreensões, exames toxicológicos. Como apontou o despacho recorrido “os crimes imputados aos arguidos terão sido cometidos na área de jurisdição de várias comarcas desde Braga a Almada, tendo os autos transitado para o DCIAP e Tribunal Central de Instrução Criminal”.
E durante o decurso do processo foram proferidos vários despachos no sentido de considerar estar-se perante “uma poderosa organização de tráfico de estupefacientes, com diversas ramificações de funcionamento bastante complexas” (vd. v.g. fls. 2392 e verso).
De qualquer forma, a declaração de excepcional complexidade respeita ao processo na sua globalidade, com todo o seu objecto, ou seja, às actividades de tráfico de estupefacientes desenvolvidas por todos os arguidos (vd. Acórdão da Relação de Lisboa de 28-03-95, proc.º 0002325,Relator: Aragão Barros, in www.dgsi.pt: A elevação do prazo de prisão preventiva, correlato da declaração de especial complexidade do processo, aplica-se a todos os arguidos, independentemente da sua comparticipação nos actos delituosos investigados).
Pelo exposto o despacho recorrido foi correctamente proferido, estando verificados os pressupostos de facto e de direito para a declaração dos mencionados autos como de excepcional complexidade.
Ora, e como sustentou o Ministério Público nas suas alegações'...esse despacho é plenamente válido e legal, contrariamente à opinião dos requerentes: 1.° porque foi proferido ainda na 1.a instância pelo juiz competente; 2.°, porque, se estava esgotado o poder jurisdicional em relação à matéria da causa, não o estava em relação à situação dos arguidos, que, como se sabe, pode e deve ser revista sempre que necessário e obrigatoriamente em determinados períodos, nos termos do art. 213.°, n. °s 1 e 2 do CPP. E não o estava, nomeadamente em relação à declaração de especial complexidade, que não tem a ver com a decisão de fundo proferida pelo Colectivo, mas apenas com a circunstância de o processo se mostrar de complexidade fora do normal e isso exigir um alargamento dos prazos de prisão preventiva. Acresce que a lei não fixa nenhum momento especial até ao qual deva ser declarada a especial complexidade. Apenas exige que ela ocorra 'durante a 1.ª instância' ...' (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20/08/07, Processo n° 07P3476, já supra citado).
Improcede, assim, o recurso interposto relativamente à declaração do processo como de excepcional complexidade, que se mostra correcta e fundadamente decidida.
5. A leitura do acórdão decorreu 30 após a audiência da última produção da prova.
Concorda-se com o decidido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30-03-2006, proc.º 06P780 Relator: PEREIRA MADEIRA , in www.dgsi.pt, aplicável ao caso sub júdice, mutatis mutandis:
“Sumário :
(…)
II - Nada obsta a que a leitura de sentença ocorra depois de decorridos trinta dias da última sessão de audiência de julgamento - art. 328.º, n.º 6, do CPP.
III - A simples leitura da sentença, em regra, não contenderá com a eficácia da prova, a qual já foi oportunamente registada aquando da pressuposta elaboração daquela, e por isso, pouco importará, para tal efeito, que a leitura venha a ter lugar depois dos falados trinta dias.
IV - O mesmo sucederá quando confrontados que sejam os momentos de produção da prova e da elaboração e/ou prolação da sentença, por um lado, e da deliberação que a precede, por outro, já que, independentemente da data em que aquela seja proferida, a deliberação é logo seguida (art. 365.º, n.º 1) e ninguém pode garantir que o não foi no caso sub judice.
V - A perda de eficácia da prova está ligada a uma presunção legal implícita, segundo a qual o decurso de tal prazo apagará da memória do julgador os pormenores do julgamento, prejudicando desse modo a base da decisão factual, de tal modo que, aí sim, será possível o entendimento de que o único remédio para um tal esquecimento presumido passará pela repetição da audiência.
VI - Aliás, sintomaticamente, o art. 328.º citado, insere-se no título relativo à audiência, perfeitamente autonomizado da disciplina da sentença a qual integra um título autónomo - arts. 365.º e ss. do CPP.
VII - Aquele art. 328.º dispõe é certo que a audiência é contínua, decorrendo sem qualquer interrupção ou adiamento até ao seu encerramento, salvas as interrupções estritamente necessárias (...), e que se a audiência não puder ser concluída no dia em que tiver sido iniciada é interrompida para continuar no dia útil imediatamente posterior».
(…)
Dispõe o nº6 do art. 328 do Código de Processo Penal, sob a epígrafe (Continuidade da audiência): 6 - O adiamento não pode exceder trinta dias. Se não for possível retomar a audiência neste prazo, perde eficácia a produção de prova já realizada.
E o art. 373 do Código de Processo Penal, sob a epígrafe (Leitura da sentença) prescreve: 1 - Quando, atenta a especial complexidade da causa, não for possível proceder imediatamente à elaboração da sentença, o presidente fixa publicamente a data dentro dos dez dias seguintes para a leitura da sentença.
2 - Na data fixada procede­-se publicamente à leitura da sentença e ao seu depósito na secretaria, nos termos do artigo anterior.
3 - O arguido que não estiver presente considera-se notificado da sentença depois de esta ter sido lida perante o defensor nomeado ou constituído
O recorrente arguiu duas nulidades: uma decorrente do facto de o acórdão ter sido lido para além dos 30 dias consignados no nº6 art. 328 do Código de Processo Penal; e outra decorrente do facto de o acórdão não ter sido depositado na data da sua leitura.
Cominará a lei as referidas ocorrências como nulidades (?). Com efeito, a desconformidade do acto com o modelo legal, o vício, não acarreta sempre a nulidade, podendo acarretar mera irregularidade.
O sistema legal português não se limita a decretar a invalidade e ineficácia de todo o acto desconforme ao modelo estabelecido em abstracto. Exigências de economia processual impõem, de facto, que a lei não considere todas as imperfeições sob o mesmo plano e antes gradue os efeitos dos vícios em razão da sua gravidade – cfr. Germano Marques da Silva – Curso de Processo penal II, pág. 75.
O art. 118 nºs 1 e 2 do Código de Processo Penal, dispõe que a violação ou inobservância das disposições da lei só determina nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei. Nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o acto ilegal é irregular.
Se para que o acto possa ser declarado nulo é necessário que a lei expressamente comine a nulidade, também para que a nulidade seja considerada insanável importa que a lei expressamente o preveja. Na verdade, o art. 120 nº1 do Código de Processo Penal, dispõe que qualquer nulidade diversa das referidas no art. 119, que prevê as nulidades insanáveis, deve ser arguida. Ou seja, quando a lei expressamente comina a nulidade de um acto sem dispor que se trata de nulidade insanável ela é uma nulidade dependente de arguição, no prazo que a lei prescreve, sob pena de se considerarem sanadas.
Quid juris em relação às duas situações verificadas nos autos, já que as mesmas não constam do elenco do art. 119 do Código de Processo Penal.
O nº6 do art. 328 refere que “Se não for possível retomar a audiência neste prazo, perde eficácia a produção de prova já realizada” e o art. 373, não prevê especialmente qualquer cominação para a sua inobservância.
Alega o recorrente que a sentença tinha de ser proferida no referido prazo de 30 dias e só o foi passados 99 dias.
Mas aplicar-se-á também aquele prazo à leitura da sentença, quando existe uma norma específica para aquele acto, fixando-lhe prazo (?). Cremos que não.
A interpretação literal da norma do nº6 do art. 328, dá-nos conta que a audiência está a decorrer com a produção de prova. Daí o falar em “retomar a audiência” e em “perde eficácia a produção de prova já realizada”. Pretende a referida norma não quebrar a continuidade da oralidade e da imediação que a produção de prova vem seguindo em sede de audiência de julgamento, presumindo a lei que com um interregno superior a 30 dias aqueles princípios ficam descaracterizados e violados.
Mas quando se trata da leitura da sentença, aquele normativo não se lhe dirige. De notar que a expressão “retomar a audiência” pressupõe que aquela se encontra pendente e quando se aguarda a leitura da sentença, a audiência já teve os formalismos dos arts. 360 e 361 do Código de Processo Penal, referindo esta disposição legal (nº2) “Em seguida o presidente declara encerrada a discussão … e o tribunal retira-se para deliberar”.
À deliberação e elaboração da sentença seguem os trâmites dos arts. 372 e 373, não havendo que voltar ao disposto no art. 328 do Código de Processo Penal.
De notar que é o próprio art. 373 que impõe prazos para a leitura da sentença, prevendo a possibilidade de a causa poder ser de especial complexidade.
Ora no caso dos autos, a causa é de especial complexidade e é humanamente impossível deliberar-se e elaborar acórdão nos prazos previstos na referida norma – “10 dias em causas de especial complexidade”.
Entendemos que tal situação não pode acarretar a invalidade nem do acórdão nem da prova levada a efeito.
Aliás cairíamos num impasse processual porque a impossibilidade de elaborar o acórdão em tão curto espaço de tempo ir-se-ia sempre repetir.
Acompanhamos, pelo exposto a posição de Manuel Simas Santos, Leal Henriques e Borges Pinho, Código de Processo Penal, Anotado, nota ao art. 373, segundo a qual a inobservância do prazo fixado no art. 373 constitui mera irregularidade, a qual não pode afectar o valor da sentença e, portanto é inócua (também neste sentido o Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 15-10-1997, Colectânea de Jurisprudência, Ano V, III, 197).
Não se aplicando à situação dos autos o nº6 do art. 328 mas o disposto no art. 373, ambos do Código de Processo Penal, temos assim que a inobservância do prazo imposto por este último não acarreta qualquer consequência jurídica. Tudo se passando no âmbito do princípio da celeridade processual, analisado caso a caso, e eventualmente susceptível de apreciação disciplinar.
E sendo assim, também a inobservância do disposto no art. 373 nº 2, depósito da sentença na data da leitura, nenhuma consequência jurídica acarreta.
Pelo exposto, nega-se nesta parte provimento ao recurso do recorrente.»
Este entendimento das coisas não merece censura.
Com efeito, «enquanto a simples leitura da sentença, em regra, não contenderá com a eficácia da prova a qual já foi oportunamente registada aquando da pressuposta elaboração daquela, e por isso, para tal efeito, pouco importará, para tal efeito, que a leitura venha a ter lugar depois dos falados trinta dias; e o mesmo sucederá quando confrontados que sejam os momentos de produção da prova e da elaboração e ou prolação da sentença, por um lado, e da deliberação que a precede, por outro, já que, independentmente da data em que aquela seja proferida, a deliberação é logo seguida (art.º 365.º, n.º1) e ninguém pode garantir que o não foi no caso sub judice. A perda de eficácia da prova está ligada a uma presunção legal implícita, segundo a qual o decurso de tal prazo apagará da memória do julgador os pormenores do julgamento, prejudicando desse modo a base da decisão factual, de tal modo que, aí sim, será possível o entendimento de que o único remédio para um tal esquecimento presumido passará pela repetição da audiência.
Aliás, sintomaticamente, o artigo 328.º citado, insere-se no título relativo à audiência, perfeitamente autonomizado da disciplina da sentença a qual integra um título autónomo – art.ºs 365.º e segs., do Código de Processo Penal.» (7)
Aquele artigo 328.º dispõe é certo que a audiência é contínua, decorrendo sem qualquer interrupção ou adiamento até ao seu encerramento, salvas as interrupções estritamente necessárias (...), e que se a ausência não puder ser concluída no dia em que tiver sido iniciada é interrompida para continuar no dia útil imediatamente posterior» (8)
O adiamento da audiência só seria admissível nos casos previstos no n.º 3 do art. 328.º
Todavia, «a violação de tais regras constitui mera irregularidade» (9) mormente as relativas ao prazo de leitura da sentença, que não propriamente de interrupção de audiência, e que, não tendo sido arguida pelos interessados «no próprio acto», já não será susceptível de «determinar a invalidade do acto e dos termos subsequentes» (art.º 123.º, n.º 1, do CPP).
Com efeito, e porque «qualquer intervenção menos conseguida seria capaz de alterar o difícil equilíbrio do sistema, gerando injustiças ou disfuncionalidades», «o legislador português não ficou alheio a esta problemática, criando um sistema responsabilizador e progressivo, onde os sujeitos processuais são convidados a participar na marcha processual e a denunciar, com prontidão, as infracções cometidas» (10)
É assim improcedente aquela segunda questão.”
Como se pode ver do processo, após as alegações e designada data (vd fls.9708) para a leitura da decisão do Tribunal Colectivo para 18 de Novembro de 2004, no dia 16 de Novembro de 2004 foi pedida recusa do Juiz do processo, pelo que foi dada sem feito a leitura do acórdão. Só em 30 de Julho de 2007 baixaram os autos de recusa de Juiz (vd fls 10077, apenso J ).
Seguindo a jurisprudência acima citada e tendo por base a ratio da norma do art.º 328.º n.º 6 do C.P.Penal que é evitar que não existam lapsos temporais entre cada sessão de produção da prova para garantir a coerência da decisão, no caso vertente até pela complexidade do processo e da extensão ao acórdão, é de aceitar até que a sua redacção estivesse concluída.
Assim, não se constata qualquer nulidade, já que apenas a leitura do acórdão foi sustada, por ter sido invocada recusa do Juiz presidente.
5. Sobre a irregularidade da leitura por súmula do acórdão recorrido.
Dispõe o Artigo 372.º do C.P.Penal(Elaboração e assinatura da sentença):
1 - Concluída a deliberação e votação, o presidente, ou, se este ficar vencido, o juiz mais antigo dos que fizerem vencimento, elaboram a sentença de acordo com as posições que tiverem feito vencimento.
2 - Em seguida, a sentença é assinada por todos os juízes e pelos jurados e se algum dos juízes assinar vencido, declara com precisão os motivos do seu voto quanto à matéria de direito.
3 - Regressado o tribunal à sala de audiência, a sentença é lida publicamente pelo presidente ou por outro dos juízes. A leitura do relatório pode ser omitida. A leitura da fundamentação ou, se esta for muito extensa, de uma sua súmula, bem como do dispositivo, é obrigatória, sob pena de nulidade.
4 - A leitura da sentença equivale à sua notificação aos sujeitos processuais que deverem considerar-se presentes na audiência.
5 - Logo após a leitura da sentença, o presidente procede ao seu depósito na secretaria. O secretário apõe a data, subscreve a declaração de depósito e entrega cópia aos sujeitos processuais que o solicitem.
O recorrente indica a fls .10200 na sua conclusão 1.: “… o Sr Juiz se limitou em sede de fundamentação de facto, a dizer o seguinte : os meios de prova e as razões de convicção do tribunal são muito extensos pelo que vou referi-los por súmula. E acrescentou, segundo os apontamentos que o signatário recolheu, logo na altura: A prova reside na prova testemunhal produzida em audiência, essencialmente, nos depoimentos dos senhores agentes da P.J. e nas escutas telefónicas não declaradas nulas”.
Não diz a lei em rigor, dependendo do caso concreto, saber se o juiz cumpriu a exigência legal de indicar por súmula a fundamentação da decisão. Tomando como boa a descrição do que o Exmo Advogado do arguido faz do que sucedeu na audiência de leitura do acórdão consideramos, com o devido respeito, que não lhe assiste razão.
Como se pode constatar pela decisão dos autos (acórdão) a mesma, na parte da fundamentação, é muito extensa tendo 24 (vinte e quatro) páginas, pelo que não nos merece censura o facto de o Senhor Juiz presidente do tribunal colectivo ter feito aquela e apenas a mencionada (pelo Exmo. Advogado do arguido) referencia à fundamentação.
Não procede, assim, a invocada nulidade.
6. Relativamente à falta de fundamentação da decisão recorrida.
Invoca ainda o recorrente falta de fundamentação da decisão recorrida, entendendo que da mesma não consta, “de forma concretizada, quais os passos que permitiram a formação da convicção assim como os dados objectivos onde assentou, para que se concluísse ter sido o recorrente que efectivamente praticou os factos”.
É entendimento jurisprudencial de que o dever de fundamentação se não basta com a mera indicação dos meios de prova, não dispensando a explicitação do processo de formação da convicção do tribunal de 1ª instância, sob pena de violação do artº 205º, da CRP e do direito ao recurso (Acs. do Tribunal Constitucional nº 680/98, Pº 456/95, de 02-12-98, DR, II Série, nº 54, de 05-03-99 e do STJ, de 15-03-00, CJ, Acs. do STJ, Ano VIII, Tomo I, pág. 227).
Mas se a motivação não pode limitar-se, sem mais, à indicação simples dos meios de prova, também é certo que não se exige uma enumeração exaustiva, amplamente documentada de todos meios de prova, argumentos e processos de raciocínio que levam o tribunal a decidir de um dado modo, justificando o processo decisório, porque ela não pode transformar-se num substituto não consentido legalmente dos princípios da oralidade e imediação, transformando a oralidade em documentação- Ac. do STJ de 30-06-99, BMJ 488º- 272.
Alega o recorrente que a sentença não se encontra devidamente fundamentada ( pelo que violaria os artºs 374º nº 2, 375º nº 1 e 410º nº 2 do C.P.P. sendo nula em consequência a decisão -vd. artº 379.º nº 1 alínea a) do mesmo código).
Não se alcança que a decisão recorrida não tenha fundamentado devidamente os factos que deu como assentes e a que estava obrigado por força da própria lei, nos termos e para os efeitos do disposto no art.° 412° n.° 2 al. a) CPP. Nem que o Tribunal tenha apreciado a prova produzida em julgamento de forma discricionária e subjectiva.
Da leitura da mesma alcança-se sem esforço qual o fio lógico que levou à condenação do arguido, pelo que não se trata de uma decisão arbitrària e contrària às regras da experiência.
Como refere o Ac. do S.T.J. de 12 de Abril de 2000,no proc.º 141/2000-3ª, “(…)Não dizendo a lei em que consiste o exame crítico das provas, esse exame tem de ser aferido com critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita avaliar cabalmente o porquê da decisão e o processo lógico-formal que serviu de suporte ao respectivo conteúdo”.
Da fundamentação da decisão de facto resulta que o Tribunal aliás de forma exaustiva sendo que indica e analisa os meios de prova determinantes para a sua convicção, bem como as razões pelas quais os considerou relevantes e em que medida: sob a epígrafe dos meios de prova e convicção do Tribunal, o tribunal a quo em 24 (vinte e quatro) páginas explanou quer a convicção quer os meios de prova ( apontado as escutas, os exames toxicológicos e autos de busca e apreensão de 13 Kgs de droga, e depoimentos dos inspectores da P.J.).
Além do mais, o Tribunal a quo faz, para além da referência aos meios de prova, uma interligação entre os mesmos e conjuga-os críticamente.
Pelo exposto, não procede a nulidade invocada (vd. art.ºs 374.º n.º 2 e 379.º nº 1 alínea a), ambos do C.P.Penal).
7. Do Depoimento Indirecto.
O Tribunal, de uma forma clara e exaustiva, esclareceu a razão da utilização do “depoimento indirecto”.Tal respeita ao depoimento dos agentes relativamente ao que a (...) lhes disse aquando da sua detenção. Em nosso entender , não ocorreu qualquer depoimento indirecto mas antes a reprodução do que a mesma disse na altura da detenção e que ouviram de viva voz.
Os depoimentos dos Inspectores da Polícia Judiciária foram valorados como meio de prova ao abrigo do disposto no art.° 129.° do C.P.P.
Entendemos que não ocorreu depoimento indirecto e que por isso os depoimentos são perfeitamente válidos, como aliás decidiu o Acórdão do S.T.J. de 19 de Dezembro de 2007 ,proc.º nº 07P4203 , Relator: SANTOS CABRAL, in www.dgsi.pt, aplicável mutatis mutandis ao caso vertente:
“ Importa aqui sinalizar questão colocada pelo recorrente AA em relação á valoração de depoimento indirecto de agente policiais.
A invocação incorre em manifesto erro conceptual, considerando que falamos de agentes de autoridade que relataram a sua intervenção em actos processuais, ou inscritos na investigação criminal a que procederam e que se inscreveram directamente na percepção directa que tiveram (falamos de vigilâncias; seguimentos; abordagens ou buscas).
Testemunho directo na acepção mais básica do termo.
Na verdade, no testemunho indirecto não se afere de um testemunho puro e simples. Trata-se de um testemunho não dos factos, mas do testemunho dos factos, pois quem testemunha declarando o que sabe sobre estes não se encontrava presente quando os mesmos ocorreram. Rigorosamente falando, não se pode testemunhar, enquanto declaração, um facto que outra pessoa disse que viu ou ouviu acontecer, assim como também não se pode testemunhar que a mesma viu ou ouviu, pois a pessoa que testemunha um facto através de uma outra que lho contou não se encontrava presente na ocorrência deste.
Manifestamente que o agente policial que relata as diligências a que procedeu em sede de investigação dá nota de algo que é um facto pessoal por si protagonizado e não algo que só tenha conhecimento por intermédio de outrem.
Encontramo-nos, assim, perante a questão da definição e relevância do depoimento indirecto.
*.
A essência da prova testemunhal é a de que a mesma se refere ás declarações que efectua uma pessoa sobre aquilo que percebeu pessoal e directamente. A prova testemunhal caracteriza-se pela sua imediação com o acontecimento que se presenciou visual ou auditivamente.
Perante tais características essenciais da prova testemunhal não admiram as reservas suscitadas pelo depoimento indirecto em que está ausente a relação de imediação entre a testemunha e o objecto por ele percebido. Tais reservas não se situam apenas nos sistemas processuais penais contemporâneos e já no direito romano não se admitia a testemunha de ouvir dizer.
O direito anglo-americano, em que ainda prevalece, em larga medida, o sistema de provas legais, declara igualmente inadmissível o testemunho por ouvir dizer (hearsay). Segundo Kenny a desvalia desse tipo de prova foi reconhecida na Inglaterra desde 1202, encontrando-se em velhos textos de Bracton, do século XIII. a desaprovação do testemonium de auditu alieno. O testemunho por ouvir dizer ainda hoje não é admitido (salvo em poucos casos excepcionais) não por sua irrelevância mas por sua insegurança (hearsay is forbidden for unreliability, not for irrelevancy) Tal proibição da prova por “ouvir dizer” flui também de certos princípios do processo penal conforme à common law, nomeadamente a regra da oralidade do testemunho. Não é admissível a prova que não for produzida diante do juri.
Pronunciando-se sobre o tema, e de uma forma radical, Manzini, afirma que 'as atestações indirectas, os conhecimentos reflexos, as deposições por ter ouvido dizer, não têm carácter de testemunho, senão que apenas podem ser consideradas como elementos inseguros de informação, através dos quais se pode eventualmente chegar ao verdadeiro testemunho” E, resumindo as objecções fundamentais, acrescenta: 'Com efeito, em tais depoimentos a percepção sensorial que interessa à prova, não é do depoente, senão de quem a manifestou ao mesmo depoente. E o confidente, que seria a verdadeira testemunha, se não é imaginário, escapa à responsabilidade do que disse se o outro não o revela, e se subtrai também à valoração de sua credibilidade; além do fato de que o que se conta de boca em boca se altera e se deforma progressivamente.”
*
A questão em apreço, a já citada relevância do depoimento indirecto-artigo 129.º do Código de Processo Penal - mereceu do legislador português uma solução restritiva que passa pela necessidade de confirmação por parte da pessoa indicada como transmitente. Em termos de direito comparado tal norma tem correspondência em ordenamentos tão diversos como o italiano-artigo 195 do respectivo Código- ou mexicano- artigo 289 do Código Federal de Procedimientos Penales.
Apesar de tal princípio existem excepções representadas por aquelas pressuposições de indisponibilidade do testemunho presencial.Entre as excepções admitidas cabe mencionar aquelas que derivam da antiga doutrina conhecida como res gestae termo que, como indica Hendler, faz referência ás expressões produzidas no momento em que teve lugar o facto que é objecto de litigio.
Se atendermos á jurisprudência do TEDH (caso Kostovski c. Holanda e caso Wundisch contra a Austria) encontra-se hoje largamente sedimentada a ideia de que os elementos de prova devem ser produzidos diante do acusado em audiência pública tendo em conta a necessidade do exercício do contraditório pelo que a regra é, em princípio a não admissão do depoimento indirecto.
*
No caso vertente as testemunhas, que são agentes policiais, e se encontravam no exercício das suas funções, relatam os factos de que tiveram a percepção directa.
Não apresentam uma versão percepcionada por outrem dos factos imputados ao arguido mas elucidam o tribunal sobre aquilo que viram e ouviram na altura.
Entende-se, assim, que a proibição de valoração do depoimento indirecto deve ser entendida nos exactos termos propostos pelo artigo 129.º do Código de Processo Penal e quando, como no caso vertente, a referência a terceiro assume natureza meramente instrumental, e explicativa do próprio depoimento directo, não existem razões para a proibição constante daquele normativo.
Não tem fundamento a invocada nulidade.”
Resulta assim que o mesmo sucedeu no caso vertente, já que os agentes da Polícia Judiciária foram ouvidos sobre factos de que tiveram percepção directa, não se tratando por isso de um depoimento indirecto.
Improcede, assim, a invocada nulidade.
8. Sobre a validade das escutas telefónicas.
O arguido recorrente de fls .9374 a 9379 veio expor :
“…No processo mãe, o Tribunal da Relação decidiu (cfr fls. 62 e 63 do respectivo acórdão), por inexistência de acompanhamento judicial efectivo:
a) declarar a nulidade das escutas que integram os apensos n° 1, 2, 3, 4, 5, 21, 24, 36, 38, 41, 42 e 44 do processo principal, com a consequente proibição de valoração da prova assim obtida;
b) declarar a nulidade das sessões n° 75 a 170 (fls. 22 a 43) do apenso n° 1-A do processo n° (…).
c) considerar proibida a valoração da prova resultante da certidão extraída do inquérito n° … junta ao processo n° … e do auto de fls. 4279.
4 – Como resulta de fls. 33 do aludido acórdão, também o apenso n° 6 do processo principal tem de ser considerado nulo, pois, só por manifesto lapso de escrita o mesmo não consta da alínea a) supra referida em 3.
E requereu:
“1) Se digne declarar, desde já, que não podem ser utilizadas como meio de obtenção de prova as escutas que o Tribunal da Relação de Lisboa declarou nulas no seu acórdão de 10 de Dezembro de 2003, já que este acórdão tem naturalmente de ter efeitos práticos no processo mãe ou naqueles que aí tiveram tido origem.
2) Se digne declarar, outrossim, desde já, nulas todas as outras escutas dos autos, por os despachos que as autorizaram não terem justificado, na altura da sua prolacção, a sua necessidade.”
Vem o arguido considerar que há nulidade das escutas telefónicas por falta de fundamentação da necessidade das escutas, por falta de controlo jurisdicional das intercepções e transcrições.
A este propósito, diga-se, em primeiro lugar, que o art. 187° do C.P.Penal consagra a admissibilidade da intercepção e a gravação de conversações ou comunicações telefónicas, como meio de prova, desde que ordenadas ou autorizadas por despacho judicial e relativamente aos crimes enumerados nas als. a) a e) do n°1 do citado normativo, 'se houver razões para crer que a diligência se revelará de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova'. Por seu turno, o art. 188° do mesmo diploma legal determina as formalidades a que estão sujeitas as intercepções e gravações como meio de recolha de prova.
Tais normativos estabelecem um regime de autorização e controlo judicial, e um 'sistema de catálogo', em que a escuta telefónica é reservada exclusivamente a tipos criminais que pelas suas características tornam tal meio de recolha de prova particularmente apto à investigação, ou que, pela gravidade dos interesses em jogo (expressa numa moldura penal abstracta qualificada), podem justificar a adopção de uma medida consensualmente vista como portadora de um elevado potencial de 'danosidade social'(vide Manuel da Costa Andrade, in 'Sobre Proibições de Prova em Processo penal, Coimbra, 1992, págs. 272, 275, 281, 283 e 285).
Estas normas estão em consonância com o disposto no art. 34°, n°1 da C.R.P., segundo o qual 'O domicílio e o sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação privada são invioláveis', bem como o disposto no n°4 do mesmo preceito constitucional, no qual se consagra que 'é proibida toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação social, salvo os casos previstos na lei em matéria de processo penal.'
Do referido normativo constitucional resulta que só em matéria de processo penal é admissível a limitação do direito fundamental do sigilo da correspondência e nas telecomunicações pelas autoridades públicas, corporizando os arts. 187° a 190° do C.P.Penal, precisamente tal excepção indicada no segmento final do comando constitucional.
Como sublinha Costa Andrade, in ob. cit., pág. 286-287: 'O teor particularmente drástico da ameaça representada pela escutada telefónica explica que a lei tenha procurado rodear a sua utilização das maiores cautelas. Daí que a sua admissibilidade esteja dependente do conjunto de exigentes pressupostos materiais e formais previstos nos arts. 187° e seguintes da lei processual portuguesa(...)'.
O legislador português procurou, assim, 'inscrever o regime das escutas telefónicas sobre a exigente ponderação de bens entre: por um lado, os sacrifícios ou perigos que a escuta telefónica traz consigo, e, por outro lado, os interesses mais relevantes da perseguição penal. Trata-se, como Knauth pertinentemente assinala, de uma 'ponderação vinculada', (...) de que o intérprete e aplicador do direito não estão legitimados a desviar-se.
Aqui, no imperativo da fidelidade estrita do paradigma da ponderação legalmente codificada, residirá uma razão decisiva e abono da exigência de uma interpretação restritiva das normas atinentes às escutas telefónicas'.
A este propósito decidiu o Tribunal Constitucional no Ac. n° 407/97, de 21 de Maio de 1997, publicado no BMJ n° 467-199 que ' a existir ingerência nas telecomunicações, no quadro de uma previsão legal atinente ao processo criminal ( a única constitucionalmente tolerada), carecerá sempre de ser compaginada com uma exigente leitura à luz do princípio da proporcionalidade subjacente ao art. 18°, n°2 da Constituição, garantindo que a restrição do direito fundamental em causa(de qualquer direito fundamental que a escuta telefónica, na sua potencialidade danosa possa afectar) se limite ao estritamente necessário à salvaguarda do interesse constitucional na descoberta de um concreto crime e punição do seu agente.
Nesta ordem de ideias, a imediação entre o juiz e a recolha da prova através da escuta telefónica aparece como o meio que melhor garante que uma medida com tão específicas características se contenha nas apertadas margens fixadas no texto constitucional'. Refere-se, ainda, no citado acórdão, a propósito do efectivo controlo judicial das escutas telefónicas, que 'a intervenção do juiz é vista como uma garantia que assegure a menor compressão possível dos direitos fundamentais afectados pela escuta telefónica, assegurando que tal compressão se situe nos apertados limites aceitáveis e que tal intervenção, para que de uma intervenção substancial se trate, pressupõe o acompanhamento da operação de intercepção telefónica. Com efeito, só acompanhando a recolha de prova, através desse método em curso, poderá o juiz ir apercebendo os problemas que possam ir surgindo, resolvendo-os, e assim, transformando apenas em aquisição probatória aquilo que efectivamente pode ser.
Por outro lado, só esse acompanhamento coloca a escuta a coberto dos perigos de uso desviado'.
Aplicando estes princípios ao caso sub judice, vemos, pois, que o arguido não tem razão no que vem de alegar.
No início da investigação destes autos,como resulta de fls.18 a 19 , a P.J. entendeu que face aos métodos clássicos de investigação (vigilâncias e seguimentos) não era possível avançar no apuramento dos factos e seus responsáveis. E de fls. 20 a 22, o Ministério Público, em despacho muito fundamentado, entendeu que se justificava proceder-se a escutas telefónicas, justificando a sua necessidade. E ainda dando acolhimento ao promovido pelo M.P., o Sr. JIC ordenou se procedesse a escutas (fls 32 e 33). Tendo como base o mencionado despacho até por se tratar de uma rede de tráfico de estupefacientes, estava justificada a necessidade de se proceder a escutas não tendo de se repetir em todos os despachos a mesma fundamentação.
O legislador português procurou, assim, 'inscrever o regime das escutas telefónicas sobre a exigente ponderação de bens entre: por um lado, os sacrifícios ou perigos que a escuta telefónica traz consigo, e, por outro lado, os interesses mais relevantes da perseguição penal. Trata-se, como Knauth pertinentemente assinala, de uma 'ponderação vinculada', (...) de que o intérprete e aplicador do direito não estão legitimados a desviar-se.
Aqui, no imperativo da fidelidade estrita do paradigma da ponderação legalmente codificada, residirá uma razão decisiva e abono da exigência de uma interpretação restritiva das normas atinentes às escutas telefónicas'.
A este propósito decidiu o Tribunal Constitucional no Ac. n° 407/97, de 21 de Maio de 1997, publicado no BMJ n° 467-199 que ' a existir ingerência nas telecomunicações, no quadro de uma previsão legal atinente ao processo criminal ( a única constitucionalmente tolerada), carecerá sempre de ser compaginada com uma exigente leitura à luz do princípio da proporcionalidade subjacente ao art. 18°, n° 2 da Constituição, garantindo que a restrição do direito fundamental em causa(de qualquer direito fundamental que a escuta telefónica, na sua potencialidade danosa possa afectar) se limite ao estritamente necessário à salvaguarda do interesse constitucional na descoberta de um concreto crime e punição do seu agente.
Nesta ordem de ideias, a imediação entre o juiz e a recolha da prova através da escuta telefónica aparece como o meio que melhor garante que uma medida com tão específicas características se contenha nas apertadas margens fixadas no texto constitucional'. Refere-se, ainda, no citado acórdão, a propósito do efectivo controlo judicial das escutas telefónicas, que 'a intervenção do juiz é vista como uma garantia que assegure a menor compressão possível dos direitos fundamentais afectados pela escuta telefónica, assegurando que tal compressão se situe nos apertados limites aceitáveis e que tal intervenção, para que de uma intervenção substancial se trate, pressupõe o acompanhamento da operação de intercepção telefónica. Com efeito, só acompanhando a recolha de prova, através desse método em curso, poderá o juiz ir apercebendo os problemas que possam ir surgindo, resolvendo-os, e assim, transformando apenas em aquisição probatória aquilo que efectivamente pode ser.
Por outro lado, só esse acompanhamento coloca a escuta a coberto dos perigos de uso desviado'.
Aplicando estes princípios ao caso sub judice, vemos, pois, que o arguido não tem razão no que vem de alegar.
Senão, vejamos.
Tendo em consideração o ambiente fáctico evidenciado nos autos, sempre se dirá que dos mesmos resulta a necessidade, aliàs fundamentada no início do processo, face à natureza e complexidade da investigação do crime em causa, da utilização das intercepções e gravações telefónicas – os factos dizem respeito á prática de tràfico de estupefacientes por uma estrutura organizada, maxime associação criminosa , com conexões fora do território naciaonal (vd. art.º 187.º n.º 2 alínea b) do C.P.Penal).
Note-se ainda que o despacho judicial de fls 32 e 33, de 12 de Novembro de 1999, remete para as promoções de fls 20 e 22,bem como para as informações e solicitação de fls.18 a 19 da Polícia Judiciária. Não se vê que não esteja devidamente fundamentado.
E todos os pedidos subsequentes têm por base esta mesma necessidade de investigação - com recurso a escutas telefónicas - já que se mostra o método adequado a fazer face a este tipo de criminalidade (vd .v.g fls 1467).
A ingerência das autoridades públicas na correspondência e nas telecomunicações, só é constitucionalmente admissível no quadro de uma previsão legal atinente ao processo penal, uma vez que constitui um limite a um direito fundamental, que a escuta telefónica estará sempre sujeita ao princípio da proporcionalidade, subjacente ao art. 18°, n.° 2 da Constituição, o que garante que a restrição do direito fundamental em causa, se limite ao estritamente necessário à salvaguarda do interesse constitucional na descoberta de um concreto crime e punição do seu agente.
A nossa lei exige expressamente que haja razões para crer que a diligência se revelará de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, ou seja, a lei exige não um mero interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, mas que esse interesse seja grande, não sendo legítimo ordenar as escutas telefónicas nos casos em que os resultados almejados possam, sem dificuldades particulares acrescidas, ser alcançados por meio mais benigno de afronta aos direitos fundamentais. (vide Prof. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal,Tomo II, pág. 201-202 e Costa Andrade in ob. cit. Pág. 291).
De todo o exposto, podemos afirmar que dos autos não resulta terem sido violados os princípios da proporcionalidade e da necessidade, mostrando-se adequada ao caso concreto a intercepção e gravação das escutas autorizadas por despacho, atenta a natureza da actividade delituosa objecto da investigação em causa e a dificuldade subjacente à mesma de apurar a exacta identificação e participação dos autores dos crimes.
Não se irá analisar outras escutas efectuadas mas apenas as que serviram de fundamento ao acórdão dos autos ( Apensos 1-B, 7-A ,7-B, e 15).

E registe-se que não vislumbramos qualquer lapso de escrita no Acórdão da Relação de Lisboa de 10 de Dezembro de 2003, constante de fls.9379 a 9441, já que no mesmo aresto se considera que as escutas telefónicas sob os Apensos 1-B, 7-A 7-B, constituem prova válida tendo a mesma a força de caso julgado nestes autos:
“A audição dessas cassetes apenas veio a ser feita pela Sra Juíza do Tribunal Central de Instrução Criminal que, por despacho de 11 de Janeiro de 2001, confirmou a fidedignidade das transcrições efectuadas (fls. 551).
As intercepções e gravações a esse mesmo cartão vieram também a dar origem ao Apenso 1-B que contém a transcrição de conversas através dele efectuadas entre 3/11/2000 (sessão n° 222) e 14/1/2001 (sessão n° 669).
Tal intercepção apenas foi feita cessar, por despacho datado de 19/12/2000 (fls. 492), a partir de 31 de Janeiro de 2001 (ver fls. 655), sendo expressamente determinado que o OPC apresentasse no tribunal, no termo do prazo estabelecido, o apontamento para a transcrição e os suportes auditivos.
O determinado veio a ser cumprido no próprio dia 31 de Janeiro (fls. 558), tendo a sra juíza do Tribunal Central de Instrução Criminal procedido à audição do grande número de suportes entregues. No final dessa audição proferiu o despacho de fls. 820, datado de 19 de Março de 2001, no qual fez a selecção dos elementos relevantes para a prova, determinando a sua transcrição.
Tendo por base os factos que se descreveram não se pode deixar de considerar como nulas as intercepções e gravações abrangidas pelo despacho proferido em 31 de Outubro uma vez que ele não foi precedido da audição das cassetes apresentadas, o que acarreta a proibição da valoração da prova constante de fls.22 a 43 do Apenso 1-A.
O mesmo não acontece com a 1.ª parte desse mesmo apenso e com o apenso 1-B, relativamente aos quais nenhuma nulidade se verifica.
(…)
“33- Apreciemos agora o que se passou com o apenso 7-A.
Do primeiro desses apensos constam as transcrições das comunicações efectuadas através do cartão com o n°…, indicado como alvo 9978, realizadas entre 17/3 (sessão n° 8) e 7/4/2001 (sessão n° 846).
A intercepção e gravação foi, mediante proposta da Polícia Judiciária (fls. 741) e requerimento do Ministério Público (fls. 743), autorizada por despacho judicial de 14/3/2001 (fls. 746), tendo sido estabelecido como data limite o dia 30/4.
O aparelho utilizado por esse cartão, identificado através do … (fls. 781), veio a ser apreendido em 15/5.
A transcrição das sessões n°s 8, 88, 188 e 293 foi ordenada por despacho de 17/5 (fls. 952), sendo as restantes, relativamente às quais tinha existido uma deficiência de gravação, sido feitas na sequência do despacho de 17/7/2001 (fls. 1228), que apreciou a nova cópia apresentada em 20/6.
Todas as transcrições resultaram de selecção efectuada pela sra juíza de instrução, sendo a demora verificada o resultado da existência de um efectivo controlo judicial das escutas e não de um alheamento em face delas.
Não existe, por isso, qualquer vício no procedimento adoptado.
34 - O apenso 7-B contém as transcrições das comunicações efectuadas através do cartão de acesso n° …9, indicado como alvo n° 10503, utilizado no aparelho com o IMEI …(fls. 875).
A intercepção e gravação desse cartão foram autorizadas, até 31/5, pelo despacho proferido em 17/4/2001 (fls. 835).
Iniciadas em 18/4 (fls. 1017), vieram, no entanto, a cessar em 15/5, data em que o referido aparelho foi apreendido (fls. 914).
A transcrição das gravações foi, depois de ouvidas, determinada por despacho de 17/5 (fls. 952), despacho esse que foi complementado por um outro despacho de 17/7 (fls. 1228).
Não se detecta, assim, qualquer nulidade no procedimento adoptado quanto a este apenso.”
X
Relativamente ao apenso n.º 15, que não foi analisado naquele acórdão, vejamos.
Contém as transcrições das comunicações efectuadas através do cartão de acesso n° … indicado como alvo n° 9079.
A intercepção e gravação desse cartão foram autorizadas, por sessenta dias 31/5, pelo despacho proferido em 19/12/2000 (fls. 1033).
Em 20 de Dezembro de 2007 foi oficiado à TMN para proceder á mencionada escuta (vd fls 1155 e 1166).
A 3 de Janeiro de 2001, foi iniciada intercepção e gravação telefónica (vd. fls. 1159).
A transcrição das gravações foi, depois de ouvidas, determinada por despacho de 12 de Julho (fls. 1475 a 1477). A fls . 1734 consta a cessação da intercepção do telemóvel….
Não se detecta qualquer nulidade no procedimento adoptado quanto a este apenso.”
Assim, nada resulta que as escutas telefónicas efectuadas e que fundamentaram o acórdão recorrido não tenham respeitado os requisitos legais.
X
De todo o exposto, não assiste razão ao arguido quando alega que os despachos que estiveram na base da efectivação das escutas não tenham procedido á avaliação da sua necessidade, sendo que resulta que o Juiz a quo controlou a legalidade das escutas, não ocorrendo qualquer violação da lei,maxime do disposto nos art. °s 187.º, 188.° e os art.ºs 32.º e 34.° da Constituição da República Portuguesa.

9. Sobre a violação do disposto nos art.ºs 138.º n.º 4 e 355.º a 357.º , todos do C.P.Penal, relativamente ao depoimento de testemunhas.
Consta da acta de julgamento,a fls 9482:
(…), já identificado(a) nos autos. Prestou juramento legal e aos costumes disse nada.
No decurso do depoimento, a testemunha foi confrontada com o documento de folhas 25 e 26 dos autos.
(Declarações da testemunha registadas em fita magnética, cassete n. 2 lado A).
Neste momento pelo ilustre defensor foi pedida a palavra e, tendo-lhe sido concedida no uso dela disse:
À testemunha depois de interrogatório inicial foi permitido que lesse, para continuar o depoimento, o constante de fls. 25 e 26 dos autos. Não sendo o conteúdo de fls. 25 e 26 dos autos peça processual cuja analise ou leitura seja permitida em audiência de julgamento (cfr. Art. 355.º a 357.º do Código de Processo Penal) vem arguir a irregularidade de tal permissão.
O Sr. Juiz presidente proferiu, então, o seguinte:
DESPACHO ( na parte que aqui interessa):
Como se pode constatar pela gravação, ao contrário do que refere o ilustre defensor, nesta audiência não se procedeu a qualquer leitura de qualquer auto do processo. O que aconteceu foi que a testemunha (…), depois de referir que se recordava de ter feito um telefonema para a competente autoridade espanhola para averiguar do registo de propriedade de 1 ou vários veículos automóveis, disse que não se recordava exactamente quais as viaturas cuja propriedade se pretendia apurar. Por isso, ao abrigo do n.º 4 do artigo 138° do Código de Processo Penal, a Sr. Procuradora facultou os autos à testemunha para que esta visse ou lesse a informação de folhas 25 e 26.
Indefiro, por isso, a arguição de nulidade.
Notifique.
E da acta consta a fls.9483 e 9484:
(…)
(…), já identificado(a) nos autos.
Prestou juramento legal e aos costumes disse nada.
No decurso do depoimento, a testemunha foi confrontada com o documento de folhas 45 dos autos.
(Declarações da testemunha registadas em fita magnética, cassete n. 2 lado A e B) .
Nesta altura foi pedida a palavra pelo ilustre defensor, e tendo-lhe sido concedida no uso dela disse:
Com o argumento de que a lei o permite, sem referência a qualquer norma específica foi colocada nas mãos da testemunha o 1° volume do processo aberto a fls. 45. Após, a testemunha pode ler essa folha e folhear algumas das seguintes. Não sendo tal permitido por lei. E permite-nos de fazer a afirmação sem indicação de qualquer normativo porquanto, como resulta de folhas 9454 tal nem sequer é necessário na Comarca vem arguir a irregularidade do processado após o acesso da testemunha a folhas 45.
De imediato o Sr. Juiz presidente proferiu o seguinte:
DESPACHO
Tendo a testemunha afirmado que uma das diligências que realizou no âmbito deste processo e que formalizou em auto foi a de fazer a pesquisa informática nos competentes serviços da Policia Judiciaria sobre o indivíduo que até então só conheciam por '', foi a testemunha confrontada com o auto de folhas 45 porque se considerou conveniente para um melhor esclarecimento da situação que avivasse a memória acerca do resultado dessa diligência. Tal procedimento tem cobertura legal e por isso indefiro a arguição de nulidade.
Notifique.
Nesta altura, pelo ilustre defensor foi novamente pedida a palavra, e perguntado sobre a finalidade do pedido disse que era para exigir ou requerer que o Sr. Juiz presidente fundamentasse de Direito o anterior despacho. Foi então comunicado que para esse efeito não lhe era concedida a palavra e de novo ilustre defensor pediu a palavra, agora para formular um protesto.
Dada a palavra ao ilustre defensor no uso dela disse:
Não tendo a decisão anterior sido fundamentada de Direito, condição básica para que a mesma seja impugnada como o irá fazer, deixa exarado protesto, nos termos do art. 64° do estatuto da Ordem Advogados, por tal requerimento não lhe ter sido permitido.
Vejamos.
Pese embora ter ocorrido irregularidade por não ter sido devidamente fundamentada, de direito, o sentido da decisão está correcto.
Sobre a inquirição de testemunhas, refere o Artigo 138.º do C.P.Penal (Regras da inquirição)
1 – O depoimento é um acto pessoal que não pode, em caso algum, ser feito por intermédio de procurador.
2 – Às testemunhas não devem ser feitas perguntas sugestivas ou impertinentes, nem quaisquer outras que possam prejudicar a espontaneidade e a sinceridade das respostas.
3 – A inquirição deve incidir, primeiramente, sobre os elementos necessários à identificação da testemunha, sobre as suas relações de parentesco e de interesse com o arguido, o ofendido, o assistente, as partes civis e com outras testemunhas, bem como sobre quaisquer circunstâncias relevantes para avaliação da credibilidade do depoimento. Seguidamente, se for obrigada a juramento, deve prestá-lo, após o que depõe nos termos e dentro dos limites legais.
4 – Quando for conveniente, podem ser mostradas às testemunhas quaisquer peças do processo, documentos que a ele respeitem, instrumentos com que o crime foi cometido ou quaisquer outros objectos apreendidos.
5 – Se a testemunha apresentar algum objecto ou documento que puder servir a prova, faz-se menção da sua apresentação e junta-se ao processo ou guarda-se devidamente.
E em anotação diz Maia Gonçalves, in Código de Processo Penal anotado pag.339 : “…entendemos que o princípio da imediação da prova impõe que as peças do processo e documentos só sejam em regra mostrados ás testemunhas após os seus depoimentos, para que os completem ou esclareçam .Trata-se, porém de questão que fica ao critério do inquiridor, segundo as conveniências de cada caso”.
Assim, era perfeitamente válido mostrar às testemunhas peças do processo até para avivar a memória, já que não é aceitável que as mesmas se recordem de determinados pormenores após terem decorrido quatro anos, sobretudo quando fazem da sua profissão (investigação criminal) a intervenção em casos semelhantes.
O despacho recorrido aquando da inquirição da testemunha (…), podia e devia ter fundamentado de direito, de forma explícita, com o disposto no art.º 138.º n.º 4 do C.P.Penal, mas entende-se que sendo a situação idêntica à anteriormente ocorrida – inquirição de (…) –quando se disse que tinha fundamento legal seria a mesma norma do art.º 138.º n.º 4 do C.P.Penal. No entanto esta disposição legal permite mostrar ás testemunhas documentos do processo ( registe-se que relativamente á testemunha (…), o Sr. Juiz Presidente fundamentou de direito, sendo a situação análoga e tendo ocorrido imediatamente a seguir).
De qualquer modo, o que o arguido quer discutir é se na inquirição foram observadas as normas legais para o efeito, sendo certo que não ocorreu qualquer nulidade na inquirição das mencionadas testemunhas, tendo sido observadas as normas legais (vd., ainda, o art.º 348.º do C.P.Penal, sendo certo que não se opõe ao procedimento atrás mencionado o disposto no art.º 356.º do mesmo código).
10. De acordo com o acórdão do STJ de 19/10/95 –DR I Série de 28/12/95, a existência de algum dos vícios do art.° 410 n.° 2 do C.P.P. é de conhecimento oficioso.
Recorde-se que a norma respeita aos vícios da decisão, verificáveis pelo mero exame do seu (dela, decisão) próprio texto, ou por esse exame conjugado com as regras da experiência comum. Por outras palavras, elementos estranhos à decisão não podem ser invocados ou chamados a fundamentar esses vícios que , repete-se, têm de resultar do próprio texto, e apenas deste.
Da leitura do acórdão recorrido ressalta a enorme clareza do texto e do sentido da decisão, não existindo a mais ténue obscuridade ou contradição. Trata-se de um texto integralmente lógico, bem estruturado e devidamente fundamentado.
Do erro notório na apreciação da prova - trata-se, como pacificamente tem vindo a ser considerado, de um erro (ignorância ou falsa representação da realidade) evidente, facilmente detectado, e resultante do texto da decisão ou do encontro deste com a experiência comum.
É manifesta a ausência de tal erro.
Da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada - verifica-se este vício quando a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a decisão de direito. E só existe quando o tribunal deixar de investigar o que devia e podia, tornando a matéria de facto insusceptível de adequada subsunção jurídica, concluindo-se pela existência de factos não apurados que seriam relevantes para a decisão da causa.
É por demais evidente que todos os factos à boa decisão foram devidamente apreciados pelo tribunal, sendo os demonstrados, objectiva e subjectivamente típicos, e suficientes para a conclusão de direito.
Da contradição insanável da fundamentação e da fundamentação e da decisão – nada na fundamentação da decisão recorrida aponta no sentido de decisão oposta à tomada, ou no sentido da colisão entre os fundamentos invocados. Pelo contrário, a decisão de facto encontra-se devidamente fundamentada e suportada pelas declarações do arguido, e por prova testemunhal e documental, que o tribunal devidamente valorou, numa forma clara e perceptível, sendo facilmente perceptível o seu processo lógico-mental de formação da convicção.
Com efeito, a decisão não enferma de qualquer dos vícios do n.° 2 do art. 410° do CPP.
11. O arguido veio ainda invocar erro de julgamento.
Procedemos à audição das cassetes de gravação da prova, e sobretudo as que respeitam às sessões de 14 e 21 de Outubro de 2004, nos termos do disposto no art.º 412.º n.º 6 do Código de Processo Penal, aprovado pela Lei n.º48/2007 de 29 de Agosto.
Ora, não se descortina qualquer erro de julgamento. A argumentação e elementos constantes da decisão sob recurso mostram-se suficientes para sustentar a matéria de facto provada, dando aqui por reproduzida, com excepção do que se indica relativamente á carta/ confissão que consta de fls escrita pela (...).
As escutas são um elemento de prova extremamente importante relativamente aos factos provados, e como se viu supra as escutas utilizadas para a fundamentação do acórdão são perfeitamente válidas. No caso de tráfico de droga em média/grande escala, é extremamente importante a utilização de escutas telefónicas, sabendo que nessas situações os donos da droga praticamente não têm contacto directo com a substância estupefaciente.
O depoimento dos agentes da PJ que procederam á detenção de (...) é concludente no sentido de fazer a ligação entre a droga apreendida e o arguido (...). Ela disse-lhes que a droga e o carro pertenciam ao (…) (vd. depoimentos na sessão de julgamento de 14 de Outubro de 2004,do inspector da (…),cassete 2, e do inspector da P.J….,cassete 3 lado A). A droga apreendida para além de fazer a ligação com o arguido (...) a quantidade de droga transaccionada (13 kgs de heroína) acentuam a gravidade da conduta do arguido.
A matéria factica provada está conexionada com o arguido destes autos, enquadrando a sua conduta no âmbito de uma situação de tráfico de estupefacientes.
Entendemos no entanto que o tribunal a quo não poderia utilizar como meio de prova a carta de fls. 1541 e segs. em que a (...) faz uma confissão já que a mesma se recusou a prestar declarações em audiência (vd arts 355.º e 356 ambos do C.P.Penal), pelo que se consideram não escritos os parágrafos 3.º e 4.º constantes de fls.21 deste acórdão ( e aqui a fls 23). No entanto, tal não invalida a restante fundamentação, que se considera correcta, suficiente e conforme ás normas legais sobre a validade das provas em julgamento.
Não ocorreu qualquer erro de julgamento.
Assim, a matéria de facto encontra-se definitivamente fixada.
12. Qualificação jurídica dos factos e medida da pena.
12.1. Estão preenchidos os elementos objectivos e subjectivos que permitiram condenar o arguido, em autoria material, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo artº s 21º, nº 1 e 24.º alínea c) do DL nº 15/93 de 22.1, com referência às tabelas I-A (Heroína) e I-B (Cocaína), na pena de 11 (onze) anos de prisão.
Incorre na prática do crime de tráfico previsto no artº 21º “quem, sem para tal se encontrar autorizado, (...) produzir, comprar, vender, ceder ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III...” sendo a moldura penal abstracta de 4 a 12 anos de prisão.
E constitui jurisprudência actualmente pacífica que o crime de tráfico de estupefacientes, em qualquer das suas modalidades, é um crime de perigo abstracto ou presumido, pelo que não se exige, para a sua consumação, a existência de um dano real e efectivo. O crime consuma-se com a simples criação de perigo ou risco de dano para o bem protegido (a saúde pública).
Conforme resultou apurado, o arguido comercializava HEROÍNA e COCAÍNA que, entre as substâncias estupefacientes, são consideradas drogas duras, gerando dependência e habituação, e com consequências nefastas tanto para o consumidor, sobretudo os jovens , como para a sua família e a própria sociedade.
O arguido conhecia a natureza e as características estupefacientes daquele produto, agiu deliberada, livre e conscientemente, conhecendo bem a ilicitude da sua conduta, e mesmo assim determinou-se a empreendê-la, agindo com dolo directo (cfr. Art.º 14º, do C.P.).
O artigo 21º, nº 1, do Decreto-Lei nº 15/93 contém a descrição fundamental - o tipo essencial - relativa à previsão e ao tratamento penal das actividades de tráfico de estupefacientes.
O art.º 24.º do D.L. 15/93 prevê a agravação nas seguintes circunstâncias, além de outras, quando as substâncias ou preparações foram distribuídas por grande número de pessoas (al.b)), ou o agente obteve ou procurava obter avultada compensação remuneratória (al.c)) ou, ainda o agente actuou como membro de bando(al.j.)).
Contudo, como de forma evidente resulta da letra da lei, a agravação da alínea b), não ocorre quando os produtos se destinem a ser distribuídos por grande número de pessoas, mas tão só quando se prova que já foram, efectivamente, distribuídos, dessa forma contribuindo o agente para a disseminação da droga, o que justifica agravamento da censura (vd. Ac. do STJ, de 7.Out.04 in Proc.04P828, Relator Santos Carvalho, acessível em www.dgsi.pt : 'A lei não considera como agravante a intenção de distribuir as substâncias ou preparações por grande número de pessoas, mas a sua efectiva distribuição a grande número de pessoas').
O estupefaciente que foi apreendido era, de facto, susceptível de ser distribuído por muitas pessoas, no entanto, exigindo o tipo criminal, para a verificação desta agravante, como vimos, a distribuição efectiva, teremos de concluir que os factos não preenchem esta alínea do art.24.º, em relação ao arguido.
Relativamente á agravante constante da alínea j) do art.º 24.º ,como bem decidiu o acórdão recorrido, não se encontra verificada a circunstancia aí descrita já que o conceito de bando exige uma certa permanência e não uma união ocasional para a prática de crimes.
No que diz respeito à agravação da alínea c), do art.24.º, de forma clara resulta da letra da lei que preenche a respectiva previsão o agente que 'obteve ou procurava obter avultada compensação remuneratória'.
A dificuldade reside na definição do que seja 'avultada compensação remuneratória'.
Não definindo a lei esse conceito, deve o mesmo ser apurado caso a caso, pelas circunstâncias concretas que permitam concluir por uma acentuada ilicitude face à subjacente ao tipo base. Na verdade, o crime base do artigo 21.º está projectado para assumir a função típica de acolhimento dos casos de tráfico de média e grande dimensão, tanto pela larga descrição das variadas acções típicas, como pela amplitude dos limites da moldura penal, que indiciam a susceptibilidade de aplicação a todas as situações, graves e mesmo muito graves, de crimes de tráfico. Por isso, as circunstâncias susceptíveis de conduzirem à agravação desse tipo, terão de ser preenchidas por circunstâncias susceptíveis de revelar uma especial ilicitude, em particular no caso em causa da alínea c), terão de ser significativas as quantidades transaccionadas, apreendidas ou os valores obtidos com a actividade, de forma a se estar inequivocamente perante 'grande tráfico', situado já na parte superior da cadeia que tem na base inferior o traficante de rua, com ligações internacionais ou pelo menos relações com agentes do tráfico internacional.
Como decidiu o Ac. da Relação de Lisboa de 11.Fev.03 , P°00102645, Relator: Simões de Carvalho,in www.dgsi.pt)' : I- A integração do conceito indeterminado de 'avultada compensação remuneratória' que constitui a circunstância agravante qualificativa do tráfico de estupefacientes prevista na alínea c) do art. 24° do Dec. Lei n° 15/93, de 22 de Janeiro, deve fazer-se de uma forma intra-sistemática e autónoma em relação à equivalência com os escalões de valor previstos no art. 202° C. Penal. II - Com recurso à hermenêutica jurídica, a ponderação do circunstancialismo próprio que gira à volta do tráfico de droga, com os pormenores e frequentes 'nuances' da cada caso, impõe ao julgador que se determine mais pela ponderação global dos diversos factores em jogo do que pela simples atenção à aritmética dos exames que permitem os valores em causa. III - O que não quer dizer que se afaste in limine' toda e qualquer menção aos montantes do citado art. 202° C. Penal e que podem e devem servir como quadro de referência'.
O juízo do Tribunal a quo fundado nas regras da experiência comum não permite tirar outra conclusão que não seja a de que os factos dados como provados só permitem o seu enquadramento na norma agravativa do art° 24°, alínea c), de todo estando excluída a sua subsunção no tipo legal do art° 21°, esse destinado a outras quantidades de droga e portanto valores.
Constitui mesmo um facto notório para que a venda de 13 Kgs. de heroína são altamente lucrativos, podendo gerar lucros de larguíssimas dezenas de milhares de euros.
Não restam pois dúvidas de que a conduta do arguido preenche os elementos objectivos e subjectivos do crime de tráfico previsto no citado art. 21º, n.º 1 e 24.º alínea c) do D.L.n.º 15/93, com referência às Tabelas I-A e I-B, anexas ao citado diploma, a que corresponde a moldura penal abstracta de 5 anos e 4 meses a 16 anos de prisão.
12.2. Da análise do acórdão sob recurso consideramos que a matéria de facto dada como provada na decisão recorrida, é clara e incontroversa.
O acórdão em recurso, na sua bem elaborada e suficiente fundamentação de facto - em consonância com o principio da livre apreciação da prova, enunciado no art.º 127.º do C.P.P. - e de direito, analisou todos os pressupostos que permitiram tipificar a matéria fáctica dada como provada.
Relativamente ao acórdão dos autos entende-se pela fundamentação qual o raciocínio lógico que levou o Tribunal a dar como assentes os factos provados.
Registe-se que a explicitação dos motivos que levaram à decisão sobre a matéria de facto e à formação da convicção do julgador, tem de ser feita globalmente, tendo em atenção os factos dados como provados, o que no caso é completamente perceptível.
A ilicitude dos factos deve ser apreciada de uma forma global ponderando a qualidade da droga, a quantidade em causa e bem assim os “meios, modalidades e circunstâncias da actividade do tráfico, como por exemplo, se é ou não sistemático, sua amplitude, a existência de estruturas organizativas ainda que rudimentares, o papel desempenhado nesse tráfico, a disponibilidade económica correlativa a essa actividade, a quantidade de estupefacientes destinada ao tráfico em comparação com a detida para consumo pessoal” (cfr. Lourenço Martins, Droga – Comentários ás Decisões de 1ª Instância, 1993, p.271 e nota 4, citando a Rivista Penale).
Tendo o arguido praticado facto típico, ilícito e culposo e não se encontrando reunidos os pressupostos da dispensa de pena, impõe-se a aplicação de pena, como consequência jurídica da prática do crime.
A determinação da medida da pena continua compreendida dentro da faculdade discricionária do juiz (Cavaleiro Ferreira, “Boletim dos Institutos de Criminologia”, 64) após a subsunção dos factos aos preceitos penais e respeitando os pressupostos a que se refere o artigo 71.º do Código Penal.
E um dos princípios basilares do Direito Penal reside na compreensão de que toda a pena tem como suporte axiológico-normativo uma culpa concreta.
A medida da pena não é pura matemática, antes uma operação complexa desenrolada em três fases:
- escolhem-se os fins das penas, pois só a partir deles se podem ajuizar os factos do caso concreto relevantes para a determinação da pena e a valoração que lhes deve ser dada (o n.º 1 indica a culpa do agente em primeiro lugar, mas no mesmo nível situa as exigências de prevenção), lembrando que agora dispõe o art. 40.º, n.º 1 sobre as finalidades da punição - protecção dos bens jurídicos e reintegração do agente na sociedade;
- fixam-se os factores que influem no doseamento da pena, as circunstâncias concorrentes no caso concreto que, em relação com os fins das penas, têm importância para a determinação do tipo e gravidade da pena (indicados, exemplificativamente, no n.º 2);
- tecem-se os considerandos que fundamentam a determinação efectuada (de acordo com o n.º 3).
É conhecida a severidade do ordenamento jurídico português contra os traficantes de produtos estupefacientes.
As exigências de prevenção geral, não é despiciendo salientá-lo, são elevadas, atenta a natureza do ilícito em causa, que, hodiernamente, dentro da panóplia de tipos legais de crimes, é seguramente dos que maior repulsa social concita em decorrência dos malefícios que potencia, sobejamente conhecidos e referidos pelo acórdão recorrido.
Igualmente são patentes as necessidades de prevenção especial.
Escreve-se num recente relatório elaborado pelas Nações Unidas:'...a luta contra o abuso de drogas é, antes de mais e sobretudo um combate contra a degradação e a destruição de seres humanos. A toxicomania priva ainda a sociedade do contributo que os consumidores de drogas poderiam trazer à comunidade de que fazem parte. O custo social e económico do abuso de drogas é, pois, exorbitante, em particular se se atentar nos crimes e violências que origina e erosão de valores que provoca'.
O Acórdão do S.T.J. de 01.07.1993, Processo n.º 43022, expressa que o crime de tráfico de droga é '...um dos crimes mais repugnantes e flageladores da sociedade actual.'.
Sendo finalidades das penas, a protecção de bens e valores jurídicos e a reintegração do agente delituoso na sociedade (prevenção geral e prevenção especial, respectivamente), há que buscar um ajustado equilíbrio entre elas, equilíbrio esse que não inibe que, perante o caso concreto, uma dessas finalidades possa e deva prevalecer sobre a outra.
Ora, os bens e valores jurídicos protegidos e tutelados no e pelo art. º 21 ° n.º.1, do DL n.º.15/93 são indiscutívelmente muito valiosos - o que explica a severidade das sanções e a amplitude do horizonte típico -pelo que não podem ficar indefesos por via de uma eventual supremacia (ou prevalência) do escopo da ressocialização sobre o da sua eficaz salvaguarda: quando assim suceda ou seja, quando a prevenção especial deva ceder o lugar à prevenção geral, competirá ao arguido, na fase da execução penal, demonstrar que o desiderato reintegrador venha ou possa vir a ser assegurado.
No entanto, face às finalidades das penas, em caso algum pode a pena ultrapassar a medida da culpa (art. 40.º n.º 2 do C.Penal).
Relativamente à medida da pena, atente-se naquilo que a esse respeito se refere no Ac. do S.T.J. de 6/05/1998 in B.M.J. n°477, p.100:
' 1 — Sendo a culpa, o juízo de censura dirigido ao agente pela conduta que livremente assumiu, na definição da medida da pena cumpre ter presente que não há pena sem culpa e que a medida da pena não pode ultrapassar a da culpa.'
'2 — As exigências da prevenção geral, considerada esta como prevenção positiva ou de integração, definem o limite mínimo da medida concreta da pena'
' 3 — A prevenção especial, no sentido positivo de reintegração do agente na sociedade determina a fixação da medida concreta da pena num 'quantum' situado entre o limite mínimo exigido pela prevenção geral e o máximo ainda adequado à culpa .
O arguido cometeu um crime de tráfico de estupefacientes, p.e p. pelo artigo 21° e 24°, al. c) do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à tabela 1-A, anexa àquele diploma, correspondendo ao mesmo a moldura penal abstracta de 5 anos e 4 meses a 16 anos de prisão.
São elevadas as exigências de prevenção geral e especial, positivas e negativas.
Actuou com um grau de ilicitude muito elevado.
O grau de culpa é acentuado pois o arguido já cumpriu pena por crime de tráfico de estupefacientes, bem conhecendo os efeitos nefastos de tais substâncias na saúde de seres humanos.
Não podemos deixar de sublinhar a danosidade social do ilícito praticado pelo arguido, pois graves são as consequências do facto, no que se refere à saúde física e psíquica de todos aqueles que consomem heroína e os malefícios que causa igualmente às respectivas famílias e à própria comunidade.
O arguido não demonstrou qualquer arrependimento (vd. Ac STJ de 21-06-2007,proc.º 07P2042, Relator: Cons. SIMAS SANTOS,in www.dgsi.pt: “2–Há arrependimento relevante quando o arguido mostre ter feito reflexão positiva sobre os factos ilícitos cometidos e propósito firme de, no futuro, inflectir na sua conduta anti-social, de modo a poder concluir-se pela probabilidade séria de não recair no crime. O arrependimento é um acto interior revelador de uma personalidade que rejeita o mal praticado e que permite um juízo de confiança no comportamento futuro do agente por forma a que, se vierem a deparar-se-lhe situações idênticas, não voltará a delinquir. Revela uma reinserção social, consumada ou prestes a consumar-se, pelo que as exigências de prevenção, na determinação da medida judicial da pena, são de diminuta relevância.”).
Partindo da factualidade apurada, à ausência de arrependimento, o elevado grau de ilicitude dos factos, a intensidade do dolo do agente, o grau de violação dos deveres impostos, as consequências relevantes da conduta do arguido, os antecedentes criminais, e sua situação pessoal e familiar (tem a 4.ª classe como habilitações, o apoio da mulher e filhos, e bom comportamento prisional) bem como as especiais exigências de prevenção geral e especial, nos termos dos art.º s 70.º 71.º, e 40.º , todos do Código Penal, afigura-se-nos equilibrada a pena de 10 (dez) anos de prisão a aplicar ao arguido, alterando-se assim a pena aplicada na 1.ª Instância .


VI - Termos em que concedendo parcial provimento aos recurso interpostos pelo arguido, nos termos acima descritos:
1. Nega-se provimento aos recursos descritos em V. 3.a),b) c) d) e),f) e g);
2.Confirmando-se o acórdão recorrido nos termos acima descritos, condena-se o arguido, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes agravado p. e p. pelos art.ºs 21.º e 24.º alínea c) do D.L. n.º 15/93, na pena de 10 (dez) anos de prisão.
3. Custas a cargo do recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 9 UC’s
( tendo em consideração, nomeadamente, a complexidade do processo).
(Acórdão elaborado e revisto pelo relator- vd. art.º 94 º n.º 2 do C.P.Penal)
Lisboa,

NOTAS
______________

(1)Nas palavras do Prof. Figueiredo Dias (Direito Processual Penal, I vol, 199 e ss.), “uma liberdade de acordo com um dever - o dever de perseguir a chamada “verdade material”.
(2)Cfr. Prof. Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil Anotado”,. Vol. III, 239
(3)A ideia, ultimamente muito difundida a propósito de um processo muito mediático, de que, quando um tribunal superior (ou o Tribunal Constitucional) revoga uma decisão de um tribunal de 1.ª instância é porque este decidiu mal, é profundamente errada. A decisão proferida em 1.ª instância é, não raro, sobretudo em processo penal, a decisão mais justa e mais correcta. A diferença está em que a decisão do tribunal superior prevalece e tem de ser acatada pelo juiz do tribunal inferior. Mas este não tem que concordar com ela !...
(4)Cfr, por todos, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.01.2001, C.J./Acs. do STJ, Ano IX, Tomo I, 210 (Relator: Cons. Lourenço Martins).
(5)No mesmo sentido, cfr. Tolda Pinto, “A Tramitação Processual Penal”, 2.ª ed., 2001, pág. 431.
(6)Paulo de Sousa Mendes (“As proibições de Prova no Processo Penal”, Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Organização da FDL e do C.D. de Lisboa da Ordem dos Advogados, Almedina, 149-150) que manifesta a sua concordância com as seguintes considerações da Sra. Dra. Fátima Mata-Mouros (“Sob Escuta”, 72):

Na maior parte dos casos (provavelmente mesmo na totalidade) de nulidade de escutas telefónicas arguidas nos nossos tribunais, o que tem sido discutido é, tão-só, a verificação, ou não, da nulidade na sua vertente sanável. A questão essencialmente apreciada consiste em saber se as intercepções telefónicas realizadas nos respectivos processos contaram, ou não, com efectivos acompanhamento e controlo judiciais.
A ideia de que uma prova adquirida sem o adequado controlo do juiz possa configurar uma prova absolutamente proibida tem desvirtuado estas regras, levando à repetição, a meu ver excessiva, de prolação de decisões sucessivas sobre a mesma questão num mesmo processo, mesmo antes de se atingir a instância de recurso. Sei tarefa fácil pesquisar em processos pendentes ou nos arquivos dos tribunais casos em que esta mesma questão tenha sido alvo de
diversas, e por vezes também contraditórias, decisões proferidas sempre em primeira instância, ainda que nas diversas fases em que se divide o processo.
As proibições de prova geram prova absolutamente nula e, por isso, podemser declaradas a qualquer momento, argumenta-se. Prática, a meu ver, excessiva e a revelar, de facto, falta de maturidade na apreciação destas questões. Indefinição, imprecisão, enfim, hesitação característica de quem não encontrou ainda a segurança que só a experiência permite atingir.
Nada disto ajuda no combate ao crime. Tão-pouco na defesa dos inocentes”.

(7)Curiosamente, o mesmo hotel em que se hospedaram os arguidos(…) (sobrinho do (...)) e (…) uns dias antes de este ter sido detido, na zona de Belém, em flagrante delito, quando veio a Lisboa fazer uma entrega de cerca de 3 quilos de heroína (cfr. documentos de fls. 1373-1374, 1175, 1433-1437).
(8)'Curso de Processo penal, 1993', II, pág. 139
(9)“Omnicompreensividade descritiva do tipo” lhe chama, com alguma propriedade, Eduardo Lobo num dos comentários a “Decisões de Tribunais de 1.ª Instância”, edição do Gabinete de Planeamento e de Coordenação do Combate à Droga”.
(10)E que leva alguns autores a defenderem que a utilização de tais conceitos não satisfaz as exigências do princípio da legalidade que reclama uma definição clara e taxativa dos comportamentos proibidos (vd., a este propósito, o artigo “Drogas e Estado de Direito” de Patrícia L. Copello, publicado na Revista do Ministério Público, n.º 64, 39 e seg.s).
(11)Eduardo Lobo, Loc. Cit., 48
(12) Assim , o Ac. do S.T.J. de 12.03.92, Proc. n.º 42 335, citado a pág.s 142 de “Droga e Direito”, de Lourenço Martins.
(13)Cfr. os Acórdões do Supremo Tribunal de Justiça, de 17.05.2000 (C.J./Ac.s STJ, VIII, Tomo II, 193) e de 04.10.2001 (C.J./Ac.s STJ, IX, Tomo III, 178).
(14)Citado Acórdão do STJ de 17.05.2000.
(15)“Actas e Projecto da Comissão de Revisão” do Código Penal, 329-330
(16)Assim, Miguel Pedrosa Machado “Decisões de Tribunais de 1.ª Instância - Comentários”, 254.
(17)Cfr, v.g., o Ac. do S.T.J. de 29.06.94, C.J./Ac.s STJ, II, Tomo II,258.
(18)Que pode traduzir-se na subordinação à vontade do líder.
(19) Neste sentido, o Ac. do S.T.J. de 12.03.92, Proc. n.º 42 335, citado a pág.s 142 de “Droga e Direito”, de Lourenço Martins.