Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa
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    Jurisprudência da Relação Criminal
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 - ACRL de 19-06-2008   Notificação. Art.º 105, n.º 4 do RGIT
A notificação a que alude o art.º105.º n.º 4 do RGIT, na redacção introduzida pela Lei 53-A/2006, é bem feita se fôr efectuada pelo tribunal.
Proc. 5034/08 9ª Secção
Desembargadores:  Guilherme Castanheira - Margarida Veloso - Adelina Oliveira -
Sumário elaborado por Paulo Antunes
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Acordam na 9.a Secção Crimin do Tribunal da Relação de Lisboa:
1. RELATÓRIO:
Nos presentes autos, de processo comum n.º (...), que correram termos na 1ª Vara Criminal de Lisboa, sob acusação do Ministério Público, foi submetido a julgamento, perante Tribunal Colectivo, o arguido (…).

Efectuado o julgamento, foi proferida decisão, em 14 de Fevereiro de 2008, que:
- julgou “a acusação parcialmente procedente e, consequentemente, condenou aquele arguido como co-autor de um crime de abusao de confiança fiscal, na forma continuada, p. e p. pelo artigo 105.º, n.º 1 e 5, do RGIT, e artigo 30º, do C.P., na pena de 20 (vinte) meses de prisão”;
- decidiu “suspender a execução da pena ao arguido pelo mesmo período de tempo”;
- julgou “parcialmete procedente o pedido cível formulado pelo Estado e consequentemente decidiu condenar o arguido (…) a pagar a titulo de indemnização ao Estado a quantia de 162.208,36 euros, ou a quantia que até esse montante se mostrar em falta depois de ter sido dado pagamento ao Estado nos autos de falência supra mencionados, tudo acrescido de juros de mora à taxa legal, contados desde a data de vencimento de cada uma das liquidações, até integral pagamento'.
*
Inconformado, com a decisão condenatória, dela recorreu o arguido, concluindo a sua motivação do seguinte modo:
'A) Vem o presente recurso interposto da douta decisão de fls. que condenou o ora recorrente, como co-autor material de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, p. e p. pelo art° 105°, n°s 1 e 5 do RGIT, e art° 30° do CP, na pena de vinte meses de prisão, suspendendo a sua execução pelo mesmo período; e, ainda, no pagamento, a título de indemnização ao Estado, da quantia de €162,208,36.
B)Em virtude do 'devedor' ter declarado e comunicado à Administração Tributária as prestações tributárias em dívida, o ora recorrente deverá ser absolvido do crime pelo qual foi condenado, na sequência da alteração do n°4 do art° 105° do RGIT, introduzido pelo art° 95°, da Lei n°53-A/2006, de 29-12, em vigor desde 01-01-2007, a qual veio introduzir uma nova exigência de punibilidade criminal, a da notificação feita pela Administração Fiscal, o que não aconteceu nos presentes autos nos precisos termos exigíveis pelo nosso actual ordenamento jurídico.
C)O pedido de indemnização deduzido contra o recorrente, pelo qual foi condenado, viola as regras de competência dos tribunais e assenta numa interpretação das normas dos art°s 50° do CP e 14° do RGIT que, a confirmar-se, colide com as normas constantes nos art°s 209°, n° 1, al. b) e 212°, n° 3 da CRP, apreciação sobre a inconstitucionalidade que aqui se suscita no caso de não ser dado provimento ao recurso nessa parte;
D)Pelo exposto, a decisão recorrida erra por violação de lei, ao não ter considerado a legislação vigente, entre o plano das normas e princípios constitucionais e o da aplicação concreta, violando, entre outras do douto suprimento desse Tribunal da Relação, as normas contidas nos art°s 29°, n°4; 209°, n° 1, al. b) e 212°, n° 3, da CRP; art°s 14° e 105°, n°s 1, 4 e 5 do RGIT, e art°s 2°, 30° e 50°, do CP, e art° 95°, da Lei n°53-A/2006,de 29-12.'
Conclui, pedindo que 'proceda o recurso, revogando-se o acórdão e ordenando-se a sua substituição por outro que decida absolver o recorrente do crime pelo qual foi condenado ou, caso assim se não entenda, ser o mesmo absolvido do pedido de indemnização.' *
Em resposta à motivação do recurso interposto, o Ministério Público concluiu a sua motivação do seguinte modo:
'1) Por força do art° 95° da Lei n° 53-A/2006, de 29.12., que alterou o art° 105°, da Lei n° 15/2001, de 05.06., o arguido/recorrente foi notificado pelo Tribunal para, no prazo de 30 dias, pagar as prestações em dívida à Fazenda Nacional, acrescida dos respectivos juros e coimas devidas, o que não fez.
2) Pelo que, existindo a condição objectiva de punibilidade, foi o arguido julgado e condenado pelo Tribunal Colectivo pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, pp. pelo art. 105°, n°s 1 e 5, do R.G.I. T. e pelo art. 30°, do Código Pena e a pagar indemnização ao Estado.
3) O pedido de indemnização deduzido contra o recorrente não viola as regras de competência dos tribunais.
4) A notificação a que alude o legislador pode ser ordenada e efectuada pelo Mm° Juiz/Tribunal, a autoridade jurisdicional que superintende no processo, dado ser a fase de julgamento a pendente.
5) Deve negar-se provimento ao recurso interposto pelo arguido.'
*
Neste Tribunal, o Ex.° Procurador-Geral Adjunto teve vista dos autos.
Proferido despacho preliminar, foram colhidos os necessários vistos. Teve, de seguida, lugar a conferência, cumprindo decidir.
***
II. FUNDAMENTAÇÃO:
1 - Conforme entendimento pacífico nos Tribunais Superiores, são as conclusões extraídas pelo recorrente, a partir da respectiva motivação, que operam a fixação e delimitação do objecto dos recursos que àqueles são submetidos, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que, face à lei, sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer.
Mediante o presente recurso, o recorrente submete à apreciação deste
Tribunal Superior a questão de saber se 'o recorrente deverá ser absolvido do crime pelo qual foi condenado', face à actual redacção do art. 105°, n° 4, do Regime Geral das Infracções Tributárias, introduzida pelo artigo 95°, da Lei 53-A/2006 de 29-12 – por, como pugnado, aquela 'introduzir uma nova exigência de punibilidade criminal, a da notificação feita pela Administração Fiscal', e o arguido 'ter declarado e comunicado à Administração Tributária as prestações tributárias em dívida,' — e se 'o pedido de indemnização deduzido contra o recorrente viola as regras de competência dos tribunais, sob pena de inconstitucionalidade que se suscita'

2. Passemos, pois, ao conhecimento das questões alegadas. Para tanto, vejamos o conteúdo da decisão recorrida, no que concerne a matéria de facto:
a) O Tribunal declarou provados os seguintes factos (transcrição):
'A sociedade arguida exerceu de facto, durante os anos de 2002 e 2003 actividades de investigação e segurança, prestação de serviços de vigilância e segurança, serviços de saneamento e limpeza e produção e comércio de equipamentos eléctricos e electrónicos para segurança, incluindo a sua instalação, montagem e assistência técnica, transporte de valores, a que: corresponde código CAE 74600, tendo como sócio-gerente o arguido João Feliciano da, Guia.
A Polisegur, Lda., encontra-se tributada em IRC pelo regime geral e em IVA pelo regime normal de periodicidade trimestral, através da Repartição de Finanças do 13° Bairro Fiscal de Lisboa.
Durante o referido período temporal, o arguido João Feliciano, na qualidade de sócio-gerente de facto e de direito da empresa arguida, decidiu não cumprir as obrigações fiscais de apresentar as declarações de imposto e de entregar os montantes de imposto devido ao Estado.
Assim, no âmbito da actividade referida a sociedade arguida prestou serviços a título oneroso, sujeitos a IVA, nos termos dos artigos 1 °e ss do CIVA.--
IVA cujo o montante foi calculado aquando da facturação dos trabalhos efectuados e incluído no preço global dos mesmos, pago pelos seus clientes, nos termos do referido Código.
Cabia pois ao 2° arguido liquidar trimestralmente o IVA devido ao Estado e entregar na respectiva Repartição de Finanças, juntamente com as declarações periódicas, o correspondente meio de pagamento, até ao dia 15 do segundo mês a seguir ao trimestre, nos termos do art. 40° do CIVA.
Sucede porém que o segundo arguido não cumpriu as obrigações supra referidas, e embora tenha liquidado IVA aos clientes da empresa arguida, decidiu não entregar os respectivos meios de pagamento, passando a usar em proveito próprio e da sociedade arguida as disponibilidades monetárias e financeiras dali resultantes.
Em concreto, em sede de IVA, a sociedade arguida enviou aos SIVA, dentro do prazo legal, as declarações trimestrais, as importâncias de imposto apuradas, mas sem o respectivo meio de pagamento, (cfr. Cópias dos microfilmes das declarações de IVA, Modelo A, a fls. 133 a 145).
Fê-lo durante o ano de 2002, com valores que totalizam a importância de €162.208,36, descriminados no quadro seguinte.
IVA LIQUIDADO E NÃO ENTREGUE EM 2002 1
Períodos Valor em e Prazo de entrega
0205 - Maio de 2002 24.334,45 1OJUL2002

0206 - Junho de 2002 24.970, 31 IOAG02002
0207 - Julho 2002 27.056, 64 10SET2002
0208 - Agosto de 2002 26.387,94 100UT2002
0209 - Setembro de 2002 29.401,33 10N0V2002
0210 - Outubro de 2002 30.057, 69 IODEZ2002
Total 162.208,36

O IVA relativo ao ano e nos montantes atrás indicados não foi pelo 2° arguido entregue nos cofres do Estado no prazo legal, como era sua obrigação, nem nos 90 dias seguintes ao termo dos respectivos prazos.
Assim de IVA deduzido e não entregue, obteve o arguido para si e para a firma arguida o montante global de E 162.208,36, bem sabendo que não lhe pertencia mas ao Estado.
Agiu o 2° arguido, livre, deliberada e conscientemente, não pagando ao Estado o imposto de IVA, que havia recebido e assim obter vantagem patrimonial a que sabia não ter direito, com o consequente prejuízo em termos de pretensão fiscal do Estado.
Bem sabia o 2° arguido ser a sua conduta era proibida por lei.
O 2° arguido tinha ao seu serviço um director financeiro, uma tesoureira e um contabilista, tendo o director financeiro, em Outubro de 2001, abandonado a empresa sem dar qualquer explicação.
Somente em Outubro de 2001, depois de uma auditoria que contratou, é que o 2° arguido se apercebeu do estado financeiro da empresa.
O 2° arguido deu instruções à tesouraria para dar prioridade ao pagamento aos seus trabalhadores.
0 2° arguido não tem antecedentes criminais.
Trabalha por conta própria deste 1975, tendo desde então constituído diversas empresas. Desde 2002 que o arguido está reformado, auferindo uma pensão de 1.300 euros mensal. Vive numa casa arrendada, estando numa situação de debilidade económica.
É casado e ter dois filhos, estando bem inserido socialmente.' *
b) Factos declarados não provados:
'Não se provou que:
Apesar da mencionada situação de débito à Administração Fiscal, a firma arguida tinha lucros operacionais, conseguia gerar receitas, continuou a receber pagamentos de clientes e a proceder a pagamentos a fornecedores.


.

Porém, a não entrega de declarações e de impostos integrou-se na forma de actuação usual da 'Polisegur, Lda'; no período de tempo em questão, nomeadamente em termos e para efeitos contabilísticos e fiscais.
Forma de actuação baseada num laxismo quanto ao cumprimento cabal e nos termos da lei de obrigações fiscais, sentidas como um fardo económico e até contabilístico e administrativo, face aos beneficios derivados do seu incumprimento.
Sendo que o arguido João Feliciano manteve, por tanto tempo, a situação descrita no que se refere às dívidas ao Fisco referidas nesta acusação, face à esperada morosidade da actuação da Administração Fiscal e a pouca frequência prática de tais actuações, tendo este arguido persistido em manter a firma em situação de incumprimento por isso a beneficiar e em nada a prejudicar no imediato.
Nota: Conforme resulta da matéria que se passa a transcrever padece a acusação e consequentemente a pronúncia de erro manifesto, confundindo a obrigação legal de entrega do chamado modelo 22 (declaração anual de rendimentos da pessoa colectiva) com o pagamento das retenções na fonte do IRS dos trabalhadores da arguida, razão pela qual entendeu o Tribunal Colectivo dar como não assente a seguinte factualidade:
' No que diz respeito à retenção de imposto sobre o rendimento, a sociedade Polisegur, Lda., através do 2° arguido, não apresentou ao Fisco as declarações modelo 22 de IRC dos anos de 2002 e 2003, no prazo legal nem posteriormente quando a empresa foi sujeita a fiscalização, bem sabendo que a tal estava obrigado.
Ao não entregar as aludidas declarações de rendimento o 2° arguido visou ocultar os proventos recebidos através da actividade da firma arguida e assim impedir a liquidação do respectivo imposto, por forma a obter vantagem patrimonial em seu proveito e da própria sociedade.
Atenta a não apresentação ao Fisco dos dados relativos ao lucro tributável da actividade da firma arguida a Administração Fiscal, através da análise de dados contabilísticos juntos aos autos e que lhe foram apresentados apurou que, apesar da firma arguida ter pago as remunerações e efectuado o registo contabilístico das retenções efectuadas, não entregou as quantias retidas nos Cofres do Estado.
Assim, ao longo de 2002, a empresa arguida através do 2° arguido reteve e não entregou nos Cofres do Estado a quantia total de e 51.084, 72 (de Maio até Dezembro) conforme quadro que segue:
Períodos Trabalho/Dep Trabalho/Indep Prediais/IRC Prazo Entrega
Maio 76,99 20/06/2002

Junho 7.605, 21 20/07/2002
Julho 7.005,46 20/08/2002
Agosto 7.548, 37 20/09/2002
Setembro 6.693,80 20/1 0/2002

Outubro 9.425, 49 -------- 20/11/2002
Novembro 5.107, 00 ------- 20/12/2002
Dezembro 7.413,00209,40 20/01/2003
Total 50.798,33 209,40 76,99

Ao não entregar as aludidas declarações de rendimento, o 2° arguido visou ocultar os proventos recebidos através da actividade da firma arguida e assim impedir a liquidação do respectivo imposto no valor total de E 51.084, 72, por forma a obter vantagem patrimonial em seu proveito e da própria sociedade, bem sabendo que não lhe pertencia mas ao estado.
Relativamente à contestação do 2° arguido, e para além daqueles que o Tribunal deu como assentes e que foram anteriormente descritos, não se apuraram os restantes e que aqui, por economia
processual não se descrevem.'
*
c) Em sede de motivação da decisão de facto, escreveu-se no acórdão recorrido:
'Fundou o Tribunal a sua convicção nas declarações do arguido que confessou os factos, bem
como nas declarações das testemunha de acusação António Júlio Roda Marques, e Júlio António Oliveira Prata, inspectores das Finanças que descreveram a situação contabilística da 1 ° arguida e que recolheram a prova documental junta aos autos e reveladora de que esta entregou as declarações referentes ao IVA e que não procedeu ao seu pagamento.
Fundou ainda o Tribunal a sua convicção, quanto à matéria assente da contestação, nas testemunhas arroladas pela defesa do 2° arguido que, conheciam a empresa e que referiram a existência de quadros de pessoal afectos à parte administrativa e financeira, e que o seu responsável abandonou a empresa em Outubro de 2001, tendo sido então levado a cabo uma auditoria, sendo que o arguido privilegiou o pagamento aos seus trabalhadores.
Fundou ainda o Tribunal a sua convicção no relatório do IRS e certificado de registo criminal
do 2° arguido.'
***
3. Apreciação dos fundamentos do recurso:
3.1. Escreve-se na decisão revidenda, em sede de 'fundamentação de direito':
'Atenta a matéria assente por provada, pode concluir-se ter o 2° arguido, enquanto sócio gerente da 1 ° arguida, permitido que aquela deixasse de liquidar juntom,do Estado o IVA cobrado aos seus clientes durante o período a que se referem as declarações periódicas supra descritas.
Tal comportamento integra a prática do crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105°, n° 1, do RGIT, sendo este na forma continuada, nos termos do disposto no artigo 30° do C.P. pois, tal prática foi repetida ao longo do ano de 2002, referente aos meses de Maio a Outubro, registando-se a entrega de 6 declarações mensais sem o correspondente pagamento da prestação tributária devida, comportamento este em tudo homogéneo e cometido no quadro da mesma situação exterior, ou seja, em virtude da mesma dificuldade financeira que a 1 ° arguida conhecia.
O crime deverá ser agravado, nos termos do disposto no n° 5 do preceito supra mencionado, pois o valor das prestações em dívida ultrapassam em muito os 50 mil euros previstos no referido preceito, ficando o arguido sujeito a uma pena de 1 a 5 anos de prisão.
Importa referir que, tendo o Tribunal efectuado a notificação a que se refere o artigo 95° da Lei 53-A/2006, de 29 de Dezembro, mostram-se reunidas as condições de punibilidade exigíveis pelo n° 4, do artigo 105°, do RGIT.
A pena em concreto haverá de ser determinada tendo em atenção a medida da culpa do arguido, as exigências de prevenção e todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo de crime deponham contra e a favor do mesmo, (cf artigos 40° e 71 ° do C.P)
No caso o arguido agiu com dolo directo, sendo sua vontade, concretizada, deixar de pagar ao Estado os valores de IVA cobrados aos seus clientes.
O arguido agiu com médio grau de ilicitude, tendo utilizado esses montantes retidos e não entregues para pagar salários aos seus trabalhadores, não se vislumbrando qualquer enriquecimento do mesmo por esse seu comportamento.
Mostra-se arrependido, tendo confessado os factos.
O arguido encontra-se reformado e numa situação de debilidade económica.
A 2°arguida foi declarada falida e estão os seus credores graduados para serem pagos pela massa falida.
A conduta do arguido é uma conduta reprovável e merecedora de censura, utilizando o arguido os valores cobrados aos seus clientes a título de IVA para financiar a sua actividade empresarial o Estado deixou de receber essa importância, que lhe pertencia, ficando assim em causa os seus fins. '
3.2.Ao recorrente foi, pois, imputado, em co-autoria material, e na forma continuada (Código Penal, artigo 30°), o crime de abuso de confiança fiscal previsto no artigo 105°, n°s 1, e 5, do Regime Geral das Infracções Tributárias (Lei n° 15/2001, de 5 de Junho), com referência à alteração levada a cabo pela Lei n° 53-A/2006, de 29 de Dezembro.
Escreve em resposta à motivação do recurso interposto pelo arguido, o Ministério Público que 'por força do art. 95° da lei n° 53-A/2006, de 29.12., que alterou o art. 105°, da lei n° 15/2001, de 05.06., foi o ora arguido/recorrente notificado pelo Tribunal para, no prazo de 30 dias, pagar as prestações em dívida à Fazenda Nacional, acrescida dos respectivos juros e coimas devidas (cfr. entre muitos, Ac. S.T.J. para fixação de jurisprudência, de 09.04.08, Pc. n ° 07P4080), dando-lhe, assim, possibilidade para regularizar a sua situação tributária, possibilidade essa, da qual, o arguido não quis fazer uso, pelo que, verificando-se a condição objectiva de punibilidade, prosseguiram – e bem – os autos para julgamento.'
Acrescenta-se, ali, adequadamente, que 'tal notificação pode ser ordenada e efectuada pelo Mm° Juiz/Tribunal, autoridade jurisdicional que superintende no processo, dado ser a fase de julgamento a pendente, não tendo obrigatoriamente que sê-lo pela própria Administração Fiscal.'

Na sua anterior redacção, dispunha o n° 1, do, citado, artigo 105°, que:
'Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.
E o n° 4, que:
'Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se tiverem recorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação'.
O artigo 95°, da citada Lei n° 53-A/2006, de 29 de Dezembro, apenas alterou este n° 4, o qual passou a ter a seguinte redacção:
'Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se:
a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação;
b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito'.
Daí que, como salientado em acórdão da 5.8 Secção Criminal, deste Tribunal da Relação de Lisboa, no processo n° 10227/06.5, datado de 2007.04.24, sendo relator o Ex.° Sr. Juiz-Desembargador, Dr. Nuno Gomes da Silva, 'in' www.dgsi.pt, 'isto significa que, face à versão anterior, foi dada uma outra oportunidade ao infractor de evitar o procedimento criminal mediante o pagamento que faça em 30 dias após uma notificação que para o efeito lhe deve ser expressamente dirigida'.
Tal como se expressa no acórdão do STJ, de 2007.03.21, sendo relator o Ex.° Sr. Juiz-Conselheiro, e, actual, Vice-Presidente daquele Supremo Tribunal, Dr. Henriques Gaspar, 'in' www.dgsi.pt, o tipo legal do crime de abuso de confiança fiscal configura conduta 'que consiste na não entrega à administração fiscal de uma prestação tributária que o agente deduziu nos termos da lei como substituto tributário, e que estava, também nos termos da lei, obrigado a entregar em determinado prazo – o prazo de entrega que a lei fixa para cada tipo e espécie de prestação deduzida – cf. artigo 105 °, n.° 1, do RGIT –, traduzindo-se, assim, em omissão na não entrega, nos termos e nos prazos estabelecidos'.
Ou seja, esse tipo legal 'esgota-se no não cumprimento de um dever, previsto na lei, de entrega das prestações deduzidas', e sendo uma infracção omissiva pura, consuma-se, nos termos do artigo 5.°, n.° 2, do, com a não entrega, dolosa, nos termos, e no prazo da entrega, fixados para cada prestação.
Todavia, face ao disposto no artigo 105.°, n°s 1 a 4, do RGIT, os factos aí descritos só são puníveis:
- se tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação (al. a)); ou
- se a prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos respectivos juros e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após a comunicação para o efeito (al. b)) – condição prevista 'ex novo' na redacção introduzida pela 'Lei de Orçamento' para 2007.
A punibilidade da conduta – 'os factos (...) só são puníveis' – depende de condições que constituem, pela sua natureza, na estrutura da norma, e pela função e finalidades que, aí, estão determinadas, 'elementos que não integram a tipicidade, a ilicitude ou a culpa, mas que se ligam apenas, por circunstâncias adjacentesnatureza relevantemente funcionalista da infracção, à finalidade da pena, diminuindo a intensidade ou eliminando as necessidades da punição' — cf., citado, acórdão do STJ, de 2007.03.21 — e diversamente dos pressupostos de que parte o recorrente, quanto à notificação efectuada pelo Tribunal (e a que se refere o artigo 95° da Lei 53-A/2006, de 29 de Dezembro).
Como citado naquele acórdão, (cf., também, Susana Aires de Sousa, Os Crimes Fiscais, 2006, pág. 136), 'são sobretudo razões de política criminal que sustentam o artigo 105.°, n.° 4 do RGIT — desde logo e em primeiro lugar, o legislador terá atendido ao facto de a entrega, ainda que fora de prazo, pôr fim ao prejuízo patrimonial do Estado provocado pelo agente; por outro lado, aquela norma constitui um incentivo ao pagamento das prestações em falta e permite ainda evitar custos que o procedimento criminal acarreta para a administração fiscal; por último, esta alteração legislativa foi sensível à necessidade de um certo lapso temporal que permita à administração fiscal o tratamento das informações fiscais relevantes, designadamente as que dizem respeito ao cumprimento dos deveres fiscais'.
Mais se refere que 'os elementos que não fazem parte do tipo, da ilicitude ou da culpa, isto é, que não integram nem contendem com a dignidade penal do facto, mas apenas com a admissibilidade do procedimento ou com a (des)necessidade circunstancial da punição, constituem ou pressupostos processuais ou condições objectivas de punibilidade' — sendo que, em determinados casos, para que possa ter lugar o efeito sancionador, levam-se em conta outros elementos para além daqueles que integram o ilícito que configura o tipo.
'Por vezes, essas inserções ocasionais da lei entre a prática do facto ilícito e a sanção concreta, inscrevem-se no direito material, hipótese em que se fala de condições objectivas ou externas de punibilidade; noutros casos, constituem parte do direito processual e denominam-se pressupostos processuais'.
E, citando-se os Acs. do STJ, de 7-02-2007 — proc. n.° 4086/06 —, e de 21-02-2007 — proc. n.° 4097/05-, conclui-se que 'as condições objectivas de punibilidade são aqueles elementos situados fora da defmição do crime, cuja presença constitui um pressuposto para que a acção antijurídica tenha consequências penais'.
Apesar de integrarem uma componente global do acontecer, e da situação em que a acção incide, não são, não obstante, parte desta acção. São elementos situados fora do tipo, cuja presença constitui um pressuposto da actuação das consequências penais de uma acção típica e antijurídica; sendo componentes globais da situação sobre que incide a acção, não são, porém, propriamente parte da acção.
Ou, como aludido, por alusão ao Prof. Figueiredo Dias, 'in' Direito Penal, Parte Geral, 2004, pág. 622, 'as condições de punibilidade tomam, no rigor das coisas, um sentido de funcionalismo normativo, como elemento de ligação entre a dogmática do facto e a política criminal:
- não fazendo parte da acção, integram, todavia, o complexo facto-condições de que depende a aplicação de uma sanção penal (a punição), mas estão fora do perímetro de delimitação da infracção penal enquanto categoria autónoma de tipo de ilícito e de culpa;
- integrando o complexo facto-condições, assumem, ainda, dimensão material, pela influência ou consequência que têm na construção e integração dos pressupostos da punição, mas não contendem com a natureza do crime, nem com implicações, sequências e consequências no plano das relações e criminalização-descriminalização quando se sucedam diversas condições de punibilidade;
- a projecção material das condições de punibilidade no complexo acção-qualificação penal-aplicação da pena (necessidade de pena) determina que a categoria seja ainda inerente ao regime de sancionamento e, por aí, aos princípios aplicáveis quanto aos efeitos da sequência temporal de normas de conteúdo material penal.'
Sendo a regra a do artigo 2.°, n.° 4, do CP, com aplicação do regime que concretamente se mostre mais favorável ao agente, no caso de as 'disposições penais' vigentes no momento da prática do facto punível serem diferentemente estabelecidas em leis posteriores, não se trata de caso de modificação que tenha a ver com a definição do crime, pois não existiu alteração dos elementos da infracção – a não entrega da prestação tributária retida no prazo legalmente fixado –, que se mantém tal como se definia anteriormente à Lei 53-A/2006, de 29-12 – sendo que, como provado: -
'cabia arguido liquidar trimestralmente o IVA devido ao Estado e entregar na respectiva Repartição de Finanças, juntamente com as declarações periódicas, o correspondente meio de pagamento, até ao dia 15 do segundo mês a seguir ao trimestre, nos termos do art. 40° do CIVA'; - 'o arguido não cumpriu as obrigações supra referidas, e embora tenha liquidado IVA aos clientes da empresa arguida, decidiu não entregar os respectivos meios de pagamento, passando a usar em proveito próprio e da sociedade arguida as disponibilidades monetárias e
financeiras dali resultantes'; - e 'em concreto, em sede de IVA, a sociedade arguida enviou
aos SIVA, dentro do prazo legal, as declarações trimestrais, as importâncias de imposto apuradas, mas sem o respectivo meio de pagamento'.
Inexiste, assim, eliminação do número das infracções ou modificação dos respectivos elementos constitutivos, não se configurando qualquer descriminalização – tendo sido proporcionado ao arguido a possibilidade de preencher a nova condição, a qual não foi satisfeita, com a não regularização da situação fiscal, pela não entrega da prestação, no prazo determinado, após a notificação que lhe foi feita, e bem, nos autos, pelo tribunal recorrido (cf., citado, Taipa de Carvalho, 'in' Sucessão de Leis penais, 28 ed. p. 297 e ss).
Não se pode, assim, como pretende o recorrente, determinar o afastamento da punibilidade, de acordo, aliás, com o fixado pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.° 6/2008, 'in' D.R. n.° 94, Série I, de 2008-05-15, ao estipular que a exigência prevista na alínea b), do n.° 4, do artigo 105.°, do RGIT, na redacção introduzida pela Lei n.° 53-A/2006, é aplicável aos factos, apesar de ocorridos antes da sua entrada em vigor, por estar cumprida a respectiva obrigação de declaração, e o recorrente se mostrar notificado, nos termos e para os efeitos do normativo.
3.3 Quanto à alegação de o 'pedido de indemnização deduzido contra o recorrente violar as regras de competência dos tribunais e assentar numa interpretação das normas dos art°s 50° do CP e 14° do RGIT que, a confirmar-se, colide com as normas constantes nos art°s 209°, n° 1, al. b) e 212°, n° 3 da CRP'.
Dispõem, nesse âmbito, os invocados artigos:
- 209.°, em sede de 'Categorias de tribunais', sob o n° 1, b), que 'além do Tribunal Constitucional, existem as categorias de tribunais:
Supremo Tribunal Administrativo e os demais tribunais administrativos e fiscais;
- 212 °, 3, sob a epígrafe 'Tribunais administrativos e fiscais', que 'compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.'
Como se reconhece na motivação, 'o legislador ao instituir o RJIFNA e actualmente o RGIT, defere aos tribunais comuns competência em matéria criminal para apreciação dos crimes tipificados nesses diplomas'.
Por outro lado, no Código de Processo Penal, artigo 71.0, sob a epígrafe 'Princípio de adesão', estipula-se que 'o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal, respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei.'
Ora, foi o que, e bem, sucedeu 'in casu', não violando o pedido de indemnização deduzido as regras de competência dos tribunais.
Resulta do acórdão factualidade apurada suficiente para sustentação da decisão proferida e, contrariamente ao que refere o recorrente, foi com base legal, adjectiva e substantiva, sem que tenha sido feita uma interpretação materialmente inconstitucional, por violação dos artigos 209°, n° 1, al. b), e 212°, n° 3, da Constituição da República Portuguesa, que na decisão revidenda se 'apreciou o pedido cível formulado contra o arguido', pois, 'conforme resultou da matéria assente em consequência da sua conduta ilícita, deixou
o Estado de receber o montante de 162.208, 36 euros, quantia esta que lhe era devida e que o arguido tendo-a recebido, não efectuou a sua entrega', mostrando-se 'reunidos os pressupostos geradores da responsabilidade civil e da obrigação de indemnização, tudo nos termos do disposto nos artigos 483°, 562°, 563°, 566° e 806°, todos do C. Civil, pelo que haverá o arguido de indemnizar o Estado pelo valor de 162.208,36 euros, ou valor inferior até esse montante, caso seja dado pagamento ao Estado nos autos de falência da 1 ° arguida, tudo acrescido de juros de mora à taxa legal, contados desde a data de vencimento de cada uma das liquidações, até integral pagamento.'
Acresce, no caso em apreço, que sempre haveria que entender o requisito num sentido funcional, de acordo com o qual uma questão de constitucionalidade normativa só se pode considerar suscitada, de modo processualmente adequado, quando o recorrente identifica a norma que considera inconstitucional, indica o princípio ou a norma constitucional que considera violados e apresenta uma fundamentação, ainda que sucinta, da inconstitucionalidade arguida.
Por outro lado, o recorrente limita-se a afirmar, em abstracto, que uma dada 'interpretação', em sede de acórdão, é, se mantida, inconstitucional.
Ora, (e para além de a questão de constitucionalidade ter de ser suscitada antes da prolação da decisão recorrida, de modo a permitir ao tribunal 'a quo' pronunciar-se sobre ela - cf., entre muitos outros, o Acórdão n° 155/95, D.R., II Série, de 20 de Junho de 1995 - e esta só ser invocada na motivação de recurso) os recorrentes não suscitaram, em rigor, qualquer questão de constitucionalidade normativa, susceptível, eventualmente, de constituir objecto de um recurso de constitucionalidade, ao abrigo da alínea b), do n° 1, do artigo 70°, da Lei do Tribunal Constitucional.

Só por efeito da presente arguição, e, subsidiariamente, para a eventual improcedência dela, sustenta o recorrente a violação dos citados artigos da Constituição pelo próprio acórdão.


De resto, consta do artigo 32.°, da CRP, em sede de garantias de processo criminal, no seu n° 1, que o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso, e no seu n° 5, que o processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório.
Ora, evidencia-se que foram asseguradas todas as garantias de defesa do recorrente, incluindo o recurso, e que a audiência de julgamento esteve subordinada ao princípio do contraditório.


Assim, não sendo suscitada qualquer questão de constitucionalidade normativa, e não se verificando os respectivos pressupostos, a presente arguição é de improceder.
***
III. DECISÃO:


Em conformidade com o exposto, acordam os Juízes em não conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido João Fernando da Guia, mantendo-se, nesta medida, a decisão recorrida.


Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em seis (6) UC's – art. 87.°, n.° 1, al. b) e 3, do CCJ.


Notifique.


Lisboa, 2008.06.19
(Texto elaborado em computador e revisto pelo relator, e primeiro signatário — art. 94. °, n.° 2, do CPP).