Não há que descontar na medida de internamento o período da medida cautelar de guarda.
Proc. 3456/2008 9ª Secção
Desembargadores: João Carrola - Carlos Benido - -
Sumário elaborado por Paulo Antunes
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Acordam, em conferência, na 9a Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I.
No processo tutelar educativo n.° (…) da 3a Secção do 3a Juízo do Tribunal de Família e Menores de Lisboa, respeitante ao menor (…) foi, a 6.02.2008, proferida decisão, transitada em julgado a 13.02.2008, que decretou a medida tutelar educativa de internamento em centro educativo em regime fechado pelo período de 24 meses, nos termos do disposto nos art.°s 4° n.° 1 ai. i), 3, al.s b) e c), 17° n.°s 1, 3 e 4 e 18° n.°s 1, 2 e 3, todos da L.T.E..
Após o trânsito em julgado da decisão, o Ministério Público procedeu à liquidação da medida de internamento (cfr. fls. 72 dos presentes autos) descontando, no cumprimento daquela medida, o período em que o menor esteve sujeito a medida cautelar de guarda em regime fechado, promovendo que fosse homologada tal liquidação.
Na sequência de tal promoção, foi proferido o seguinte despacho judicial: 'Por decisão de 6 de Fevereiro de 2008 foi aplicada ao menor (…) a medida tutelar educativa de internamento em centro educativo em regime fechado, pelo período de 24 meses, tudo em conformidade com o disposto nos arts. 4°, n° 1, al. i) e n° 3, aI. c), 17° e 18°, todos da Lei Tutelar Educativa.
A referida decisão transitou em julgado em 13-2-2008 (art. 122° da LTE).
O menor encontra-se no Centro Educativo Padre António de Oliveira desde 2-10-2007 em cumprimento da medida cautelar de guarda, Centro esse que foi agora designado para execução da medida de internamento.
A Lei Tutelar Educativa é omissa quanto à questão de saber se o período de internamento no âmbito da medida cautelar de guarda é, ou não, descontado no período de internamento.
Note-se que o art. 155° da LTE apenas prevê a não contagem do tempo de
ausência não autorizada do centro educativo na medida de internamento. Entendo, contudo, na esteira da jurisprudência dos tribunais superiores que sufrago, que essa omissão significa que tal período não é descontado na duração da medida de internamento, contrariamente ao que sucede quanto ao desconto na pena de prisão do período de prisão preventiva.
É que 'são distintas as finalidades da intervenção tutelar e consequente aplicação de medida tutelar (finalidade educativa - educação do menor para o direito) e a aplicação de pena de prisão (função punitiva do Estado e ressocializadora do arguido). E por isso a prisão preventiva não pode ser equiparada tecnicamente à guarda do menor em centro educativo' (Tomé Ramião, Lei Tutelar Educativa Anotada e Comentada).
Por outro lado, 'aquando da aplicação da medida de internamento, o tribunal ao fixar a sua duração, atenderá a esse período, visto que a duração da medida deve ser proporcional à gravidade do facto e à necessidade de educação do menor para o direito e que subsista no momento da decisão (art. 7°, n °1) e é sempre orientada no seu interesse (art. 6°, n° 3)', (op.cit), sendo a medida susceptível de revisão e substituição por outra.
Assim, o menor iniciou o cumprimento da medida de internamento aplicada em 13-2-2008, ocorrendo o seu termo, previsivelmente, em 13-2-2010.
Notifique e comunique ao Centro Educativo.
Nos termos do disposto no art. 62° da LTE, declaro cessada a medida cautelar de guarda aplicada ao menor, com efeitos a partir de 13-2-2008.'
Não se conformando com a referida decisão, o Ministério Público interpôs recurso de tal despacho, formulando as seguintes conclusões, em resumo dado tal peça processual se encontrar manuscrita:
- O tempo de privação de liberdade imposta ao menor com vista à sua educação no âmbito de medida cautelar impõe-se seja descontado na duração da medida de internamento posteriormente aplicada;
- Inexistindo norma na LTE que expressamente preveja esse desconto, o mesmo operará por recurso ao art.° 80° Código Penal, aplicável ex vi art.° 4° do Código Civil.
Termina pela revogação do despacho recorrido e sua substituição por outro que homologue a liquidação da medida tutelar aplicada ao menor.
A defensora oficiosa do menor veio manifestar adesão às alegações do recorrente.
O Ex.mo Sr. Juiz titular dos autos sustentou a sua decisão nos seguintes termos:
'O despacho recorrido é o que considerou que o período de internamento no âmbito da medida cautelar de guarda não é descontado na medida de internamento.
Versando sobre idêntica questão, decidiu-se no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 1/6/2005, no Proc. n° 541369, que em processo tutelar e na sequência da aplicação de uma medida de internamento a um menor não é aplicável, por analogia, a norma do art. 80° do C. Penal de 1995, permitindo que se proceda ao desconto, na medida de internamento, da medida cautelar de guarda em Centro Educativo.
Para além dos argumentos avançados no despacho recorrido, refere-se naquele acórdão que 'a integração analógica pressupõe a existência de lacuna legal, de um vazio legislativo, onde se impõe regulamentação para resolução de determinada situação. Lacuna que não se verifica no presente caso, como tentaremos demonstrar.
No âmbito do direito penal prevê-se no art. 80° do CP, que 'a detenção, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação, sofridas pelo arguido no processo em que vier a ser condenado, são descontadas por inteiro no cumprimento da pena de prisão que lhe for aplicada'. (...)
Na LTE, porém, inexiste qualquer norma que preveja aquele desconto. Prevê-se, sim, a não contagem do tempo de ausência não autorizada do centro educativo, na duração da medida e do internamento (art. 155°, n° 1 e 2). E, com o devido respeito por eventuais opiniões em contrário, aquela omissão deve ser interpretada no sentido de tal desconto não ser admissível, por variadas razões: Em primeiro lugar, porque sendo subsidiariamente aplicável o C. Proc. Penal (art. 128°, n° 1), esse diploma não regulamenta a matéria, mas sim o C.Penal, no art. 800/1. E os casos omissos são resolvidos pelas normas do processo civil desde que se harmonizem com o processo tutelar. Donde, não constando tal solução no C. Proc. Penal ou no C. Proc. Civil, e não remetendo a lei para a lei penal, a única solução só poderá ser aquela. A LTE remete para a lei penal apenas e tão só no que respeita à qualificação jurídico penal do facto cometido pelo menor, na medida em que é este que justifica e legitima a intervenção tutelar'.
Neste sentido decidiu também o Tribunal da Relação de Guimarães, Acórdão de 7/6/2004, Proc. n° 2190/03, e o Tribunal da Relação do Porto, Acórdão de 24/1/2007, Proc. n° 647191.
Mantenho, assim, a decisão recorrida.'
Neste tribunal, o Ex.mo Procurador-geral Adjunto pronunciou-se, elaborando parecer com o seguinte conteúdo:
'O Ministério Público em 1. a instância interpôs recurso da decisão que não impôs o desconto na medida de internamento do período de internamento sofrido em medida cautelar de guarda (fls. 74 e 75 ).
O Mm. ° juiz 'a quo' cita jurisprudência, em sentido contrário à posição defendida pelo Ministério Público.
Consta vária jurisprudência no sentido da posição propugnada no recurso interposto – assim, o acórdão da Relação de Lisboa de 4/11/04, proferido no proc. 6359/04-9, conforme consta em www.dgsi.pt.
No entanto, mais recentemente, voltou a decidir-se no sentido adoptado na decisão recorrida – assim, acórdão da Relação do Porto de 14/3/07, em acórdão proferido no proc. 0644864, conforme consta também em www.dgsi.pt, com base em fundamentos que parecem serem de acolher:
'Em primeiro lugar, porque sendo subsidiariamente aplicável o CPP (art. 128 n.° 1), esse diploma não regulamenta a matéria, mas sim, o CP, no seu art. 80°. E os casos omissos são resolvidos pelas normas do processo civil desde que se harmonizem com o processo tutelar. Donde, não constando tal solução no CPP ou no CPC e não remetendo para a lei penal, a única conclusão só poderá ser aquela. A LTE remete para a lei penal apenas e tão-só no que respeita à qualificação jurídico penal do facto cometido pelo menor, na medida em que é este que justifica e legitima a intervenção tutelar.
Em segundo lugar, são distintas as finalidades da intervenção tutelar e consequente aplicação de medida tutelar (finalidade educativa — educação do menor para o direito) e a aplicação de pena de prisão (função punitiva do Estado e ressocializadora do arguido). E, por isso, a prisão preventiva não pode ser equiparada tecnicamente à guarda do menor em centro educativo, pese embora qualquer uma dessas medidas cautelares implique a privação da liberdade. (cfr. também neste sentido — Tomé d'Almeida Ramião, in 'Lei Tutelar Educativa Anot. E Com., Quid Juris, Março de 2004, pag. 102).'
No entanto, estando a jurisprudência em divergência sobre a melhor solução a adoptar sobre a questão controvertida, promovo que o recurso seja apreciado em conferência, nos termos do art. 419.° n.° 3 al. b),e 'a contrario' do art. 417.° n.° 6 al. d),do C.P.P..'
Foi dado cumprimento ao disposto no art.° 417° n.° 2 CPP, não se tendo verificado qualquer resposta.
Foram colhidos os vistos legais.
II.
Cumpre decidir.
A questão a decidir, delimitada pelas conclusões do recorrente, é a de saber se o tempo de cumprimento da medida cautelar de guarda, anterior à decisão, deve ou não ser descontada na medida definitiva de internamento em centro educativo em regime fechado aplicada ao menor.
Como se refere no douto parecer elaborado pelo Ex.mo Procurador Geral Adjunto a jurisprudência dos nossos tribunais superiores encontra-se dividida na solução à questão posta no recurso. Dentre essa, destacamos a orientação seguida no acórdão proferido a 4.11.2004 no P° 6359/04 desta 9a Secção Criminal, disponível em www.dgsi.pt/jtrl, em que foi relator o Ex.mo Juiz Desembargador Fernando Estrela, orientação essa no sentido de se proceder a tal desconto fazendo apelo, depois de considerar que a LTE apresentava uma lacuna nesta matéria, à integração da lacuna por aplicação do regime de desconto da prisão preventiva.
Sem pretender criticar essa opção e sem que nisto se faça apelo a um critério quantitativo, entendemos ser de seguir a tese maioritariamente seguida e que se encontra esclarecidamente exposta no acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido a 1.06.2005 no P.° 0541369 disponível em www.dgsi.pt/jtrp, em que foi relator o Ex.mo Juiz Desembargador José Adriano e que, com a devida vénia, passamos a citar:
A integração analógica pressupõe a existência de lacuna legal, de um vazio legislativo, onde se impõe regulamentação para resolução de determinada situação. Lacuna que não se verifica no presente caso, como tentaremos demonstrar.
No âmbito do direito penal prevê-se, no art. 80.°, do CP, que «a detenção, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação, sofridas pelo arguido no processo em que vier a ser condenado, são descontadas por inteiro no cumprimento da pena de prisão que lhe for aplicada».
Vislumbram alguns haver uma correspondência entre a detenção e/ou prisão preventiva, por um lado, e, por outro, a medida cautelar de guarda de menor em centro educativo, justificando o desconto desta na medida de internamento, face à similitude encontrada.
Na LTE, porém, inexiste qualquer norma que preveja aquele desconto. Prevê-se, sim, a não contagem do tempo de ausência não autorizada do centro educativo, na duração da medida e do internamento (art. 155.°, n.°s 1 e 2).
E, com o devido respeito por eventuais opiniões em contrário, aquela omissão deve ser interpretada no sentido de tal desconto não ser admissível, por variadas razões:
«Em primeiro lugar, porque sendo subsidiariamente aplicável o Código de Processo Penal (art. 128.°/1), esse diploma não regulamenta a matéria, mas sim o C. Penal, no seu art. 80.°/1. E, os casos omissos são resolvidos pelas normas do processo civil desde que se harmonizem com o processo tutelar.
Donde, não constando tal solução no C. P. Penal ou no C. P. Civil, e não remetendo para a lei penal, a única conclusão só poderá ser aquela. A LTE remete para a lei penal apenas e tão só no que respeita à qualificação jurídico penal do facto cometido pelo menor, na medida em que é este que justifica e legitima a intervenção tutelar.
Em segundo lugar, são distintas as finalidades da intervenção tutelar e consequente aplicação de medida tutelar (finalidade educativa - educação do menor para o direito) e a aplicação de pena de prisão (função punitiva do Estado e ressocializadora do arguido). E, por isso, a prisão preventiva não pode ser
equiparada tecnicamente à guarda do menor em centro educativo, pese embora qualquer uma dessas medidas cautelares implique a privação da liberdade.
Os fins da intervenção tutelar - educação do cidadão menor para o respeito pelas regras jurídicas mínimas da coexistência social e, nessa medida e com esses limites, protecção dos bens jurídicos essenciais da comunidade - não se identificam com os fins da intervenção penal - protecção dos bens jurídicos essenciais da comunidade através da cominação e execução de reacções punitivas. No processo tutelar funciona o interesse público na realização do interesse do menor.
Em terceiro lugar, a medida tutelar de internamento é susceptível de revisão, quer a requerimento, quer oficiosamente, com periodicidade obrigatória, nomeadamente de seis em seis meses para o regime semiaberto e fechado, nos precisos termos do art. 137 °, o que não sucede com a pena de prisão.
Consequentemente, o menor poderá não cumprir a totalidade da medida de internamento, a qual poderá cessar ou até ser substituída por outra mais adequada. Tudo dependerá das circunstâncias que ocorrerem após a sua aplicação e verificados que estejam os pressupostos referidos no art. 136.°.
Finalmente, aquando da aplicação da medida de internamento, o tribunal, ao fixar a sua duração, atenderá a esse período, visto que a duração da medida deve ser proporcional à gravidade do facto e à necessidade de educação do menor para o direito e que subsista no momento da decisão (art. 7.°/1), e é sempre orientada no seu interesse (art. 6.°/3).
Daí que se entenda não ser legítimo o recurso ao disposto no art. 80.0/1 do C. Penal e, por via dele, descontar o período da medida cautelar de guarda em centro educativo na duração do internamento».
Neste mesmo sentido decidiu já o Tribunal da Relação de Guimarães que, em acórdão de 7/6/2004, concluiu: «Entendemos que a não introdução na LTE de uma norma visando a compensação ou desconto do período temporal de sujeição a medidas cautelares no período de aplicação das medidas tutelares corresponde a
uma clara opção legislativa, em consonância com a filosofia geral da lei em causa, não podendo, pois, afirmar-se a existência de uma lacuna teleológica».
É esse também o entendimento deste Tribunal, por força do determinado nos já mencionados arts. 6.°, n.° 3 e 7°, n.° 1, da LTE, que manda atender, na fixação da duração da medida, «à necessidade de educação do menor para o direito manifestada na prática do facto e subsistente no momento da decisão».
Pois que, «a medida de internamento visa proporcionar ao menor, por via do afastamento temporário do seu meio habitual e da utilização de programas e métodos pedagógicos, a interiorização de valores conformes ao direito e a aquisição de recursos que lhe permitam, no futuro, conduzir a sua vida de modo social e juridicamente responsável» - art. 17.°, n.° 1 da LTE –, o que afasta qualquer semelhança daquela medida com as reacções criminais, mormente com a pena de prisão.
Como refere Anabela Miranda Rodrigues(1): «O modelo tutelar educativo de intervenção não tem que ver com concepções punitivas ou repressivas porque o elemento-chave do sistema é o princípio da necessidade. Pretende-se uma actuação minimalista e excepcional na área educativa. O que significa que, em casos de desnecessidade de 'educação do menor para o direito', apesar de comprovada a prática do facto, a resposta educativa não tem lugar, verificando-se tão só a intervenção protectora, se se considerarem verificados os pressupostos desta intervenção.
O princípio da necessidade mostra que a intervenção educativa não pretende constituir um sucedâneo da intervenção punitiva e que é primacialmente ordenada ao interesse do menor: interesse fundado no seu direito às condições que lhe permitam desenvolver a sua personalidade de forma socialmente responsável, ainda que, para esse efeito, a prestação estadual implique uma compressão de outros direitos que igualmente titula (direito à liberdade e à auto determinação pessoal). Daqui decorre, desde logo, que a intervenção educativa não deve ter lugar se a prática do facto exprimir ainda uma atitude de congruência ou mesmo tão-só de não desrespeito pelos valores essenciais à vida em comunidade ou se se insere nos processos normais de desenvolvimento da personalidade, os quais incluem, dentro de limites razoáveis, a possibilidade de o menor testar a vigência das normas através da sua violação. Em termos práticos, isto significa que o simples cometimento de um facto qualificado pela lei como crime não conduzirá necessariamente, neste novo modelo, à aplicação de uma medida educativa».
E mais adiante: «... porque a intervenção educativa não visa a punição, ela só deve ocorrer quando a necessidade de correcção da personalidade subsistir no momento da aplicação da medida. Nos outros casos, a ausência de intervenção representa uma justificada prevalência do interesse do menor sobre a defesa de bens jurídicos e as expectativas da comunidade».
Em conclusão:
Se o juízo de necessidade da medida – para a reeducação do menor para o direito - tem de subsistir no momento da decisão, decidindo-se o tribunal pela necessidade da medida nesse momento, é manifestamente contraditório com tal juízo considerar-se aquela compensada pelo tempo em que o menor esteve sujeito à medida cautelar de guarda em centro educativo. Se, pelo contrário, o tribunal conclui que esta medida cautelar, conjugada com as demais circunstâncias que apurou, foi suficiente para que o menor tenha entretanto tomado consciência da ilicitude dos seus actos e se mostra então responsável e apostado em mudar o seu comportamento no futuro, é de concluir pela desnecessidade de tal medida. O que está em causa é, sobretudo e em primeiro lugar, o interesse do menor.'
E tal como nesse acórdão se decidiu, o recurso não merece provimento.
III - DECISÃO
Em conformidade com o exposto, nega-se provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
Sem tributação.
Feito e revisto pelo 1° signatário.
Lisboa, 12 de Junho de 2008.
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(1) In 'Introdução' ao 'Comentário da Lei Tutelar Educativa', por si anotado em parceria com António Duarte Fonseca, Coimbra Editora, 2003, pág. 20/21.