Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa
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    Jurisprudência da Relação Criminal
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 - ACRL de 15-05-2008   Má Fé.
O assistente pode ser condenado por má fé.
Proc. 2445/08 9ª Secção
Desembargadores:  Adelina Oliveira - Calheiros da Gama - -
Sumário elaborado por Paulo Antunes
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TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA


Processo n.° 2445/2008


Acordam os Juízes da 9a secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I- No âmbito do inquérito n.°205/06.OPVLSB, do Tribunal de Instrução criminal de Lisboa, a denunciante foi condenada em taxa de justiça por ter agido com negligência grave na queixa apresentada.
Inconformada com o despacho do Sr. Juiz, dele interpôs recurso. Após motivações conclui:
-A recorrente apresenta queixa por abuso de confiança e não por furto ou por introdução em local vedado ao público e não apresenta queixa contra desconhecido, mas sim contra duas entidades perfeitamente identificadas e identificáveis.
-Após tentativa de contacto da denunciante com as denunciadas, estas ao não responderem à denunciante ora recorrente ficaram com bens que retiraram da loja, em consequência da diligência judicial no âmbito da providência cautelar.
-Até à data todos os bens retirados da loja e que são pertença da
denunciante ora recorrente permanecem em poder das denunciadas.
-A denunciante vendo-se perante a situação de não ter loja e sem os bens
que lhe pertencem e comunicando por escrito para as denunciadas,
questionando-as onde se encontram os bens que estavam dentro da loja e
nada tendo dito estas, tomou a opção de participar criminalmente contra estas por abuso de confiança, pois tendo sido estas entidaddes quem
promoveram o procedimento cautelar, naturalmente seria que estivessem
na posse dos bens pertencentes à denunciante, aliás só podem ser estas
entidades quem se encontram na posse dos bens pertença da denunciante.
-Encontra-se violado o art.° 520. ° do C. P. P. que deve ser interpretado no
sentido de que existe negligência grave, quando o queixoso sabe que em
face das circunstâncias os factos que relata não constituem a prática do
crime denunciado, sendo que in casu, tal situação não se verifica, pois a
denunciante e ora recorrente relatou correctamente os factos que os
subsumiu correctamente no tipo legal do crime de abuso de confiança.
- A recorrente actuou de forma coincidente com a lei e conforme o faria
qualquer cidadão na posição da recorrente e perante as circunstancias à
data dos factos.
Pede a revogação do despacho recorrido.

O Digno Magistrado do Ministério Público respondeu concluindo que:
-Nada temos a censurar ao despacho ora recorrido por se encontrar
devidamente fundamentado e fazer uma correcta leitura da matéria
de facto e dos indícios dos autos.
-Na verdade independentemente da qualificação jurídica dos
factos, que obviamente não poderá ser de abuso de confiança por
não ter existido entrega por título não translativo da propriedade, e
recorrente fez um uso anormal do processo, pelo menos com
negligência grosseira.
-Pois tinha conhecimento da decisão judicial, providência cautelar
e da concreta localização dos bens.
-Enquadrando-se o seu comportamento na norma do art.520 alínea
c) do CPP.



Neste Tribunal o Exm° Procurador-Geral Adjunto teve vista dos autos e deu o seguinte parecer:
Vai-se acrescentar o seguinte, nos termos do art. 417.° n.° 2 do C.P.P.:
1- Quanto ao efeito do recurso.


Do despacho proferido pelo Mm. ° juiz de instrução criminal de Lisboa a 24/11/06, recorreu a denunciante, vindo o mesmo a ser admitido após pagamento da multa a que alude o art. 145.° n. ° 5 do C.P.P.
Afigura-se que melhor será aceitar o efeito suspensivo do recurso, por se reportar a decisão final condenatória, nos termos do art. 408.° n.° 1 ai. a) do C.P., embora restrita ao pagamento de taxa de justiça pelo denunciante.


2- Quanto ao mérito:


Sustenta a recorrente que pretendia denunciar abuso de confiança e não 'furto/roubo/receptação '.


Contudo, sendo esta subsunção que ficou a constar é face à mesma que há que apreciar o caso.


Crê-se que o despacho recorrido, pelo menos, para a integração dos casos de denúncia em que, por ocorrer má fé ou negligência grave, é possível aplicar condenação em custas, é de recorrer à lei processual civil. Assim, tal acontecerá, se:


- Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;


- Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa; Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;


- Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal; impedir a descoberta da verdade; entorpecer a acção da justiça ou protelar sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.' ( artigo 456° n° 2,

alíneas a), b), c) e d) do C.P.C.).
Aparecendo a condenação sustentada em a denunciante saber que a remoção dos bens tinha ocorrido por decisão judicial em providência cautelar, face à prova documental e testemunhal junta, a qual foi omitida na denúncia efectuada, será da omissão de tal elemento cujo fundamento não podia ignorar, que a mesma decorre.
O Ministério Público em 1 a “ instância propugna pela manutenção da condenação ainda por outras razões, que parecem relevantes considerar.
Assim, refere que a falta de fundamento da denúncia decorre ainda da referência a ter sido efectuado um arrombamento e de haver uma carta, remetida pela administração do Centro Comercial denunciado, a informar do local onde os bens tinham sido guardados e em que condições podiam ser levantados.
Quanto ao arrombamento que foi referido, desde logo, na denúncia, resulta a mesma contradição com a existência da dita decisão, de que apenas foi referido que havia uma acção.
De notar que tal implicou que no despacho inicial produzido no inquérito se determinasse, desde logo, que se diligenciasse no sentido de se obter cópias de vários outros documentos que a denunciante não juntara com aquela.
Mais relevante parece ser o que resulta da dita resposta não ter sido recebida pela denunciante, em virtude da mesma ter mudado de sede (fls. 96 a 98).
Afigura-se, pois, possível inferir de tais várias omissões ter havido negligência, e ser a mesma grave, até porque o homem médio sempre teria comunicado à dita administração do Centro o novo contacto da sociedade a que a denunciante pertencia, em vez de apresentar queixa da forma que o efectuou.
Assim, com a condenação proferida em 4 Ucs, nos termos dos arts. 520 al.
c) do C.P.P. e 85.° n.° 1 al. d) do C. C.J., visa-se obter uma compensação de despesas que parece razoável impor no caso.
É certo que tem sido possibilidade que não tem sido muito utilizada, talvez face ao disposto no art. 52.° n.° 1 da C.R.P. que reconhece o direito de queixa, incluindo a criminal.
Contudo, a dita condenação parece perfeitamente justificada no caso como compensação por despesas provocadas, à semelhança do que já anteriormente se previa no art. 30.° do DL n.° 35007, de 13-10-1945 sob a forma de indemnização ao Cofre Geral dos Tribunais, sem qualquer limite.
Concluindo, parece que o recurso é de improceder, embora seja de sustentar o decidido conforme acima referido, pelo que é de o apreciar em conferência.

II.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
A recorrente impugna o despacho judicial que a condena numa taxa de justiça de 4 UCS por ter agido com negligência grave.
E o despacho recorrido tem o seguinte teor:
Os presentes autos iniciaram com uma queixa apresentada por (…) contra desconhecidos por factos susceptíveis de integrar os crimes de introdução em lugar vedado ao público e de furto p.p. respectivamente pelos art°s 191 e 203 e 204 n°1 , ambos do CPenal.
Da prova documental e testemunhal carreada para os autos resulta que a denunciante sabia que a remoção dos bens em causa foi ordenada por decisão judicial (providência cautelar).
Verifica-se, assim, que a denunciante, ao denunciar tais factos agiu com
negligência grave.
Assim condeno a denunciante (…) em 4 Uc de taxa de justiça (art° 520 al. c) do C.P.P. e art° 85 n°1 al.d) do C.C.J.).
Como é do conhecimento geral as conclusões da motivação constituem a matéria a decidir no âmbito do recurso.
No caso em análise a recorrente apenas questiona e discute a sua condenação por ter agido com negligência grave na multa de 4 UCs. Apreciemos então a questão suscitada.
O Mmo juiz, considerou haver negligência grave por parte da denunciante, ao apresentar uma queixa contra desconhecidos, pela prática de crimes de furto e introdução em lugar vedado ao público, cuja falta de fundamento era do seu conhecimento, porque não ignorava que a remoção dos bens tinha sido ordenada por decisão judicial no âmbito de uma providência cautelar.
Por isso, condenou-a na taxa de justiça referida.
Coloca-se então a questão de saber se se justifica a descrita condenação.
A recorrente sustenta o seu recurso no facto de ter havido uma incorrecta aplicação do art,° 520° do C.P.P., que deve ser interpretado no sentido que existe negligência grave, quando o queixoso sabe que em face das circunstâncias, os factos que relata não constituem a prática do crime denunciado, sendo que, no caso isso não ocorreu, porque os relatou correctamente e os subsumiu no crime de abuso de confiança.
Porém, resulta dos autos que a queixa foi apresentada pela prática de crimes de furto e introdução em lugar vedado ao público, e, é face a este enquadramento, que temos de apreciar a situação.


Está devidamente comprovado nos autos que a denunciante, ora recorrente, sabia da existência de uma decisão judicial que ordenou a remoção dos bens e que o arrombamento de deveu a isso mesmo, tendo de restro, sido notificada do espaço para onde os bens foram removidos.
Sendo assin,. ao apresentar a queixa pelos referidos crimes, aproveitou-se da situação descrita que deliberadamente omitiu, para poder alegar, como alegou, terem-lhe sido subtraídos bens do interior da loja, mediante arrombamento, fazendo por isso um uso anormal do processo.
E, não podem subsistir dúvidas que actuou com negligência grave, na medida em que olvidou um facto que era do seu conhecimento ( a decisão judicial a ordenar a remoção dos bens), capaz de produzir lesão a terceiro – o(s) denunciados) - e nessa medida, fez-se uma correcta aplicação do art.° 520 do C.P.P.
Embora exista uma certa proximidade, o caso dos autos, não configura o instituto da litigância de má fé previsto no Código Processo Civil, art.°456°, n°sl e 2, tanto mais que o despacho recorrido nem sequer fez a aplicação deste dispositivo, nem tinha de o fazer.
Nas situações em que se recorre à Lei processual civil, a jurisprudência é quase uniforme no sentido de entender que tal condenação não é compaginável com as regras do processo penal — veja-se, entre muitos outros, o Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães, de 25-05-2005, onde se pode ler:' A nossa jurisprudência tem vindo a considerar que em processo penal não é possível a condenação por litigância de má fé ao abrigo do disposto no art.° 456°, n°s 1 e 2 do CPC, no quadro da prossecução de interesses e direitos privados e civilísticos, dada a natureza estrutural e pública do próprio processo e dos interesses em confronto, não se justificando de todo em todo a aplicação da lei processual civil, tanto mais que não se está perante um caso omisso ou lacuna da Lei que de algum modo recomendasse a sua aplicação.'
Entende-se que assim seja, porque o estatuto dos intervenientes no âmbito do processo civil, nada tem a ver com o estatuto dos arguidos no âmbito do processo penal.


Aqui, parte-se da ideia que a intervenção do arguido tem sempre por finalidade a sua defesa, e dessa ideia, derivam uma série de direitos para salvaguarda daquele mesmo direito de defesa, que, de resto está defmido no art.° 32 da CRP.
A condenação como litigante de má fé no âmbito de um processo assim desenhado era de todo desadequado, por poder conflituar com as garantias de defesa do arguido que pode intervir processualmente sempre que o entender.
Porém, convêm sublinhar, que embora estejamos no foro do direito criminal e nessa medida sujeito às regras do processo penal, a parte que foi condenada, figura como ofendida e não como arguida, pelo que, não pode beneficiar destes argumentos para evitar ou impugnar, a referida condenação.
No entanto, como se disse, a aplicação da taxa de justiça foi sustentada na existência de negligência grave por parte da denunciante, mas, dizemos nós, também se verifica má fé, entendida como o dever de não formular pedidos injustos, ou, não articular factos contrários à verdade, sem que daí resultasse qualquer reparo à decisão.
É que, neste concreto, também a jurisprudência é unânime em considerar que o CPP estabelece uma regulamentação própria e autónoma, definindo sanções próprias e consentâneas com a natureza específica do processo penal, sem que nenhuma delas se aproxime do carácter indemnizatório associado à litigância de má fé.
Como refere o Sr. Procurador Geral Adjunto junto desta Relação, o art.° 30 do DL 35007 de 13-10-1945, já previa o sancionamento do denunciante que procedesse com má-fé e o actual art.º 520.º, al. e) do CPP, também prevê uma sanção especifica para o denunciante que agir de má-fé, ou, negligência grave.
Nesta conformidade, concluímos que a referida condenação está devidamente fundamentada e é legalmente admissível face ao estatuído no mencionado art.° 520 do CPP, e, nem sequer se pode dizer, que colide com o direito de queixa reconhecido no art.° 52 da CRP, porque não se está a coarctar esse direito, mas antes a impedir, que ao mesmo seja dado um uso abusivo, garantindo-se assim, o respeito que todos os direitos e por maioria de razão os constitucionalmente consagrados, devem merecer por parte dos seus destinatários.
DECISÃO

Em face do exposto, acordam os juízes desta Relação, em negar provimento ao provimento do recurso, mantendo-se o despacho recorrido.

Custas pela recorrente que se fixam em 4 UCs. Notifique.
Lisboa, 15 de Maio de 2008.