Não pratica o crime de desobediência quem conduzir sem seguro automóvel.
Proc. 3694/08 9ª Secção
Desembargadores: Guilherme Castanheira - Margarida Veloso - -
Sumário elaborado por Paulo Antunes
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Acordam, em conferência, na 9.ª Secção (Criminal) da Relação de Lisboa:
I. RELATÓRIO:
Nos autos de processo abreviado, com o nº 509/07.5 PCALM, que correram termos no 3° Juízo Criminal do Tribunal de Comarca e de Família e Menores de Almada, sob acusação do Ministério Público, foi submetido a julgamento, perante tribunal singular, o arguido (...).
Efectuado o julgamento, foi proferida decisão, a fl. 56 a 61, datada de 2008-02-11, que “condenou o arguido, como autor material, de um crime de desobediência p. e p. pelo artigo 348.º, n.º 2, do Código Penal, por referência ao artigo 22.º, n.º 2, do decreto-lei 54/75, de 12/02, na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa, à taxa diária de 5€ (cinco euros), perfazendo a multa global de €600 (seiscentos euros).”
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Inconformado com tal decisão, dela recorreu o MP, junto da 1ª instância, a fl. 68 a 72, formulando as seguintes conclusões:
“1. A única questão a apreciar é a de saber se o arguido, ao conduzir, na qualidade de fiel depositário um veículo apreendido, por falta de seguro de responsabilidade civil obrigatório, pratica um crime de desobediência simples, p. e p. pelo artigo 348º, n.º 1, alínea b), ou um crime de desobediência qualificada, p. e p. pelos artigos 348º, nºs 1 e 2, do Código Penal e 22.°, nºs 1 e 2, do Decreto-lei n.º 54/75, de 12/02;
2. Face à matéria de facto dada como provada entendemos que o arguido praticou um crime de desobediência simples, p. e p. pelo artigo 348º, n.º 1, alínea b), do Código Penal e não um crime de desobediência qualificada;
3. O Tribunal 'ad quo', condenou o arguido pela prática de um crime de desobediência qualificada, com o fundamento de que o art. 22.°, n.º 1 e 2, do Decreto-lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, se aplica ao caso dos autos, sem que, contudo, tenha explicado o porquê, embora se presuma que o entendimento que lhe está subjacente é o de que a cominação de desobediência qualificada constante do citado art. 22.°, do Decreto-lei n.º 54/75, se reporta a qualquer apreensão e, como tal, aos factos dos presentes autos;
4. Cremos, contudo, que o invocado artigo 22.°, do Decreto-lei n.º 54/75 não tem aplicação à matéria de facto dada como provada na sentença recorrida, já que o mesmo prevê, apenas, questões atinentes ao registo de propriedade automóvel;
5. E vigorando em matéria criminal o princípio nula mime sitie legem, é inadmissível a interpretação extensiva que o Tribunal 'ad quo' fez daquele diploma para considerar abrangida pela tutela penal situação não expressamente abrangida pela norma incriminatória;
6. Assim sendo, entende-se que, para a matéria de facto dada como provada, não existe norma que estabeleça a cominação de desobediência qualificada e que, por isso, a sentença recorrida deve, nesta parte, ser revogada, por violação do disposto nos artigos 348.°, n.º 2, do Código Penal e 22 °, do Decreto-lei n.º 54/75, de 12/02, devendo, consequentemente, uma vez que estão preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do crime de desobediência simples, ser substituída por outra que condene o arguido apenas pela prática de um crime de desobediência simples, p. e p. pelo art. 348.°, n.º 1, al. b), do Código Penal;
7. Deste modo, é a pena abstracta para a infracção em causa, apenas, de prisão até um ano, ou multa até 120 dias;
8. Assim, concordando-se com os critérios de escolha e determinação da medida da pena apontados na sentença recorrida, crê-se adequado fixar ao arguido a pena em 80 dias de multa à taxa diária de € 5,00, perfazendo o montante global de E 400,00.”
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Não houve resposta à motivação.
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Neste Tribunal, o Ex.º Procurador-Geral Adjunto teve “vista” dos autos – fls.86.
Proferido despacho preliminar, foram colhidos os necessários vistos.
Teve, de seguida, lugar a conferência, cumprindo decidir.
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II. FUNDAMENTAÇÃO:
1 - Conforme entendimento pacífico nos Tribunais Superiores, são as conclusões extraídas pelo recorrente, a partir da respectiva motivação, que operam a fixação e delimitação do objecto dos recursos que àqueles são submetidos, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que, face à lei, sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer.
Mediante o presente recurso, o recorrente submete à apreciação deste Tribunal Superior a questão de ser caso de alteração de qualificação do tipo (“por o arguido, ao conduzir, na qualidade de fiel depositário, um veículo apreendido, por falta de seguro de responsabilidade civil obrigatório, praticar um crime de desobediência simples, e não crime de desobediência qualificada”), e, por aí, da pena concreta.
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2. Passemos, pois, ao conhecimento das questões alegadas. Para tanto, vejamos o conteúdo da decisão recorrida, no que concerne a matéria de facto:
a) O Tribunal declarou provados os seguintes factos (transcrição):
“No dia 18 de Abril de 2007, pelas 11.50 horas, o arguido conduziu o veículo automóvel ligeiro de passageiros, de matrícula 85-57-CO, na Praça 9 de Julho, na Costa da Caparica, nesta comarca;
Em 28 de Fevereiro de 2007, o arguido foi notificado pela PSP de que, o veículo supra indicado ficava apreendido, ficando como seu depositário, com a obrigação de o entregar quando lhe fosse exigido, não o podendo utilizar ou alienar por doação, venda ou por qualquer outra forma, enquanto se encontrar à sua guarda, sob pena de cometer o crime de desobediência se o fizesse, por o veículo em questão não ter seguro de responsabilidade civil obrigatório;
O arguido sabia que o veículo se encontrava apreendido e que estava obrigada a não o utilizar, e se o fizesse cometia o crime de desobediência;
O arguido agiu livre e conscientemente, ao conduzir o aludido veículo sabendo contrariava directamente uma ordem dada pela PSP, que tinha competência para a dar, que ao fazê-lo incorria na prática de um crime de desobediência;
O arguido não tem antecedentes criminais.”
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b) Factos declarados não provados:
“Nenhum.”
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c) Em sede de motivação da decisão de facto, escreveu-se na sentença recorrida:
“A convicção do tribunal quanto à factualidade provada, assentou nas declarações do agente da PSP (...), que fiscalizou o arguido quando este estava a conduzir, tendo-lhe o arguido apresentado de imediato o auto de apreensão, que consta a fls. 4. O agente procedeu à identificação do arguido através de bilhete de identidade.
Os antecedentes criminais são demonstrados pelo documento de fls. 30.”
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3. Apreciação dos fundamentos do recurso:
3.1. - Será caso de alteração de qualificação do tipo, e da pena concreta?
Defende o recorrente que, diversamente do entendido pela decisão revidenda, ao condenar o arguido pela prática de um crime de desobediência qualificada, “com o fundamento de que o art. 22.°, n.º 1 e 2, do Decreto-lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, se aplica ao caso dos autos, sem que, contudo, tenha explicado o porquê, embora se presuma que o entendimento que lhe está subjacente é o de que a cominação de desobediência qualificada constante do citado art. 22.°, do Decreto-lei n.º 54/75, se reporta a qualquer apreensão e, como tal, aos factos dos presentes autos, o invocado artigo 22.°, do Decreto Lei n.º 54/75, não tem aplicação à matéria de facto dada como provada na sentença recorrida, já que o mesmo prevê, apenas, questões atinentes ao registo de propriedade automóvel” e que “assim sendo, para a matéria de facto dada como provada não existe norma que estabeleça a cominação de desobediência qualificada e que, por isso, estão preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do crime de desobediência simples, p. e p. pelo art. 348.°, n.º 1, al. b), do Código Penal.”
Resulta do artigo 348º, do Código Penal, que, nº 1, “quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias se:
a) Uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples; ou
b) Na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação”.
O n.º 2 do mesmo preceito estabelece, por sua vez, que “a pena é de prisão até 2 anos ou de multa até 240 dias nos casos em que uma disposição legal cominar a punição da desobediência qualificada.”
Haveria, assim, que determinar se existe disposição legal que comine a punição da conduta do arguido como desobediência, susceptível de a enquadrar no âmbito do artigo 348º, n.º1, ou n.º2, do Código Penal, como crime de desobediência simples ou qualificada ou, na ausência desta, se houve lugar a cominação por parte da autoridade, pois que pretende o recorrente que a cominação legal se refere ao crime de desobediência simples, ao contrário do entendimento da decisão recorrida que concluiu que a cominação de desobediência qualificada constante do DL 54/75, de 12/2, se reportava a qualquer apreensão e, como tal, ao caso dos autos.
Ora, independentemente de o diploma em causa fornecer, ou não, qualquer indicação de que se possa entender que resulta expressamente a possibilidade de aplicação genérica da referida cominação a casos que não os verificados no âmbito desse mesmo diploma, e de a análise do auto, que na sentença se não indica como prova da cominação efectuada pela autoridade policial, deixar, ou não, dúvidas quanto à efectiva verificação deste acto, o Código da Estrada, revisto e republicado pelo Decreto-Lei nº 44/2005, de 23 de Fevereiro, dispõe no artigo 161.º, nºs 1, 2, e 7, que “o documento de identificação do veículo deve ser apreendido pelas autoridades de investigação criminal ou de fiscalização ou seus agentes quando o veículo for apreendido” – cf. alínea e) –, “procedendo-se, também, com a apreensão do documento de identificação do veículo, à de todos os outros documentos que à circulação do veículo digam respeito”, e que “sem prejuízo do disposto nos nºs 3 a 6, quem conduzir veículo cujo documento de identificação tenha sido apreendido é sancionado com coima de € 300 a € 1500.”
Por seu lado, o artigo 162.º, do Decreto-Lei nº 44/2005, de 23 de Fevereiro, refere:
“1 - O veículo deve ser apreendido pelas autoridades de investigação criminal ou de fiscalização ou seus agentes quando:
(…)
f) Não tenha sido efectuado seguro de responsabilidade civil nos termos da lei”.
Ou seja, como já referenciado no processo nº 9085/2007, da 3ª Secção, do T.R.L, sendo relator Carlos Almeida, “in” I.T.I.J – Bases Jurídico-Documentais – “estando a actividade policial sujeita aos princípio da legalidade estrita das medidas de polícia, previsto no artigo 272.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, os agentes da Polícia de Segurança Pública apenas podem dar ordens ou determinar proibições aos cidadãos nas situações enquadradas nas suas competências específicas e nos termos expressamente previstos na lei, constituindo vício de incompetência dar ordens ou determinar proibições sobre matérias incluídas na competência de outros órgãos públicos e vício de violação de lei dar ordens ou determinar proibições em situações não previstas nas normas legais – e devem, ainda, as medidas de polícia e as ordens dos agentes policiais em que se traduzem estas medidas, como todos os actos públicos potencialmente lesivos dos direitos fundamentais, estar sujeitas aos princípios da necessidade, exigibilidade e proporcionalidade, previstos no art. 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, ou seja, as ordens devem visar interesses públicos legalmente previstos e na prossecução destes interesses devem sacrificar no mínimo os direitos dos cidadãos”.
Por isso, “em obediência a estes princípios e ao princípio da fragmentariedade do Direito Penal”, ali se defende que “a punição pela prática do crime de desobediência, previsto no art. 348.º, do C.P., conforme já era reconhecido na redacção do art. 188.º, do Código Penal de 1886, tem natureza subsidiária relativamente a outras formas de sancionar a desobediência pelos particulares a normas legais ou a ordens e proibições concretas determinadas por órgãos ou agentes da administração pública, nos quais se enquadra a actividade dos agentes fiscalizadores do trânsito, nestas se enquadrando as normas que prevêem a aplicação de uma coima, sanção contra-ordenacional, para a desobediência a ordens ou proibições relativas à legislação rodoviária”.
O carácter subsidiário da incriminação sempre obstaria à punição do arguido por tal crime (na forma simples, como pugna o recurso, ou na qualificada, como ínsito na sentença).
De resto, a ter-se o entendimento do recorrente, aquela cominação apenas poderia ser feita por autoridade (ou funcionário) se o comportamento em causa não constituísse ilícito (de natureza criminal, contra-ordenacional ou outra) previsto pelo legislador para sancionar essa concreta conduta.
“In casu”, estando na origem da apreensão do veículo o disposto na alínea f), do n.º 1, do artigo 162º, do Código da Estrada, e sendo que é de acordo com a alínea e), do n.º 1, do artigo 161º, do mesmo diploma, que se efectua a apreensão do documento de identificação do automóvel, a condução do veículo nessa situação constitui, visto o n.º 7 do mesmo artigo 161º, contra-ordenação, sancionada com coima de 300 a 1500 euros.
O arguido não cometeu, assim, o crime de desobediência qualificada pelo qual foi condenado, mas também não cometeu o crime de desobediência simples, conforme defende o Ministério Público em sede de 1ª instância, porque, neste circunstancialismo, não poderia um agente da autoridade efectuar tal cominação.
Por isso, o interposto recurso é, nessa medida, parcialmente improcedente.
Esta consideração obsta à apreciação da outra questão (medida da pena) suscitada pelo recurso.
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III. DECISÃO:
Pelo exposto acordam os juízes em dar provimento parcial ao recurso, absolvendo o arguido do crime de desobediência qualificada por que vinha acusado, não conhecendo da outra questão (medida da pena) suscitada pelo recurso, que se mostra prejudicada por esta decisão.
Sem custas.
Notifique.
Lisboa, 2008.05.15
(Elaborado em computador e revisto pelo relator, o 1.º signatário)