Comete o crime de ofensa à integridade física grave por negligência p. e p. pelo artigo 148.º, nºs. 1 e 3, com referência ao artigo 144.º, al, c), ambos do Código Penal, o médico que, no decorrer de uma cesariana, deixa uma compressa no interior de uma parturiente.
Proc. 1931/08 9ª Secção
Desembargadores: Trigo Mesquita - Maria da Luz Batista - -
Sumário elaborado por Paulo Antunes
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Acordam na 9.ª Secção Criminal de Lisboa:
I.
No processo comum singular nuipc.º 285/02.8TATVD do 1.º Juízo da Comarca de Torres Vedras, a arguida (...), inconformada com a sentença proferida nos autos, que a condenou como autora de um crime de ofensa à integridade física grave por negligência p. e p. pelo artigo 148.º, nºs. 1 e 3, com referência ao artigo 144.º, al, c), ambos do Código Penal, na pena de 110 (cento e dez) dias de multa à taxa diária de € 30,00 (trinta euros), perfazendo o montante global de € 3.300,00 (três mil e trezentos euros), veio interpor recurso da mesma, com os fundamentos constantes da respectiva motivação concluindo que:
- “ ...
1. A violação do dever objectivo de cuidado, estruturante dos delitos negligentes, pressupõe que o agente, no contexto das circunstâncias concretas em que actuou, tenha a (efectiva) possibilidade e capacidade de agir em conformidade com a acção devida (a necessária e adequada a evitar a produção do resultado típico).
2. As tarefas a cargo do enfermeiro instrumentista, conforme resulta da matéria dada como provada, não se restringem à contagem das compressas, abarcando, antes, a organização, preparação, entrega, controlo e fiscalização de todos os materiais e instrumentos cirúrgicos (linhas, gazes, compressas, agulhas, tesouras, bisturis, pinças, etc).
3. As tarefas de instrumentação exigem tempo, treino, rigor e a presença de um técnico com batas e luvas esterilizadas, conforme igualmente ficou provado.
4. É um facto público e notório que os cirurgiões estão fundamentalmente concentrados no campo operatório e plenamente absorvidos e preocupados com a execução técnica do acto cirúrgico e com a resolução, em tempo real, das eventuais intercorrências dele emergentes.
5. Em face das conclusões 2, 3 e 4, e à luz das regras da experiência comum, os cirurgiões não têm objectivamente condições de tempo e disponibilidade para, com o rigor e o cuidado exigíveis, assegurarem eficazmente as tarefas de instrumentação, designadamente a contagem das compressas, em especial no âmbito de cesarianas urgentes, como a dos autos.
6. À época dos factos, não existia no CHTV qualquer protocolo de actuação no sentido de atribuir as tarefas de instrumentação, na ausência de enfermeiro instrumentista, ao cirurgião operador, ao cirurgião ajudante ou a qualquer outro membro das equipas cirúrgicas, conforme resultou provado.
7. Também os restantes enfermeiros, para além de não executarem actos não protocolados a simples pedido do cirurgião operador (razão pela qual não se apresentavam, na sala operatória, com bata e luvas esterilizadas), têm a seu cargo a realização de um conjunto de actos específicos, pelo que não estão igualmente em condições de executar, em simultâneo, as tarefas de instrumentação, na ausência do enfermeiro instrumentista.
8. Conforme consta da prova pericial inserta nos autos, a detecção de uma compressa perdida na cavidade abdominal, através da revisão desta, é extremamente difícil, sobretudo em cirurgias ginecológicas abertas, pelo que a não detecção daquele material não autoriza, sem mais, a conclusão de que a revisão da cavidade abdominal não foi efectuada com o cuidado devido.
9. A Arguida, ora Recorrente, ao longo das várias centenas de cesarianas que já realizou sempre adoptou a técnica cirúrgica que lhe foi ensinada, consistente em só utilizar compressas grandes e nunca as largar, excepto no lixo, após cada utilização, conforme ficou provado.
10. A Arguida, conforme referiu nas declarações que prestou ao Tribunal, nunca procedeu, no âmbito daquelas cesarianas, à contagem das compressas em razão do exposto na conclusão 5.
11. E, conforme também explicou ao Tribunal, foi a crónica ausência do enfermeiro instrumentista, aliada à impossibilidade objectiva do seu suprimento, que motivaram o ensinamento e a adopção, desde o inicio do seu internato complementar, da técnica cirúrgica acima referida.
12. A Arguida, conforme o Tribunal reconheceu, nunca foi confrontada no passado com uma situação similar à dos autos.
13. Tal técnica, portanto, tem-se mostrado adequada a evitar a perda dos materiais e instrumentos cirúrgicos.
14. Pelo que traduz, no plano normativo, um comportamento alternativo conforme ao direito que, no quadro das condições concretas de trabalho facultadas pelo CHTV, tem permitido garantir o cumprimento do dever objectivo de cuidado que, enquanto médica, lhe é exigível.
15. A Arguida não violou, pois, o referido dever de cuidado, pelo que não poderia ter sido, como foi, condenada.
16. Decidindo em contrário, a Sentença recorrida incorreu em errada aplicação dos artigos 15.° e 148.°, nºs. 1 e 3 (por referência ao artigo 144.°, alínea c), todos do CP.
Porém, e para o caso de assim não se entender,
17. Importa notar que a Arguida não foi chamada e não teve a menor intervenção na assistência médica pós-operatória prestada à Assistente, no período compreendido entre 21 de Dezembro de 2001 (alta subsequente à cesariana do dia 15 do mesmo mês e ano) e 12 de Março de 2002 (primeiro internamento no CHTV), conforme resultou provado.
18. Tal facto, aliado à patente descoordenação de todo o processo assistencial pós-operatório — conforme resulta da prova pericial incorporada nos autos — obrigaram a Assistente a sucessivas deslocações a vários estabelecimentos da rede de saúde local para efeitos de tratamento e de substituição de pensos, conforme resultou provado.
19. E, sobretudo, originaram o tardio reconhecimento da fístula entérica (cerca de três meses), bem como, consequentemente, a muito tardia extracção da compressa e encerramento da fístula, que apenas ocorreram a 10 de Abril de 2002, quase quatro meses depois da realização da cesariana em apreço, conforme igualmente ficou provado.
20. Tais erros e deficiências, a que a Arguida é completamente alheia, não podem ter deixado de condicionar, decisivamente, a extensão e duração dos danos sofridos pela Assistente, conforme decore das regras de experiência comum.
21. Pelo que tal factualidade, em sede de imputação objectiva, não poderia ter sido, como foi, inteiramente ignorada pelo Tribunal.
22. Acresce que o Tribunal, no que toca às 'dores intensas' sofridas pela Assistente, fundou exclusivamente a sua motivação em elementos de prova puramente subjectivos (declarações da própria Assistente e depoimentos do seu marido e de uma motorista de ambulância), sem consideração de quaisquer critérios objectivos.
Finalmente,
23. O Tribunal, em ordem a manter a qualificação jurídico-penal preconizada pelo Ministério Público, viu-se obrigado a desligar as ''dores intensas' do quadro de ''perigo para a vida' e a fazer recuar o ciclo assistencial relevante para o período que antecedeu o primeiro internamento da Assistente no CHTV, ou seja, para o período compreendido entre 21 de Dezembro de 2001 e 12 de Março de 2002.
24. Sucede, porém, que a matéria de facto provada, por referência ao período temporal mencionado na conclusão anterior, não permite enquadrar os danos sofridos pela Assistente no conceito de 'doença particularmente dolorosa', previsto na alínea c) do artigo 144° do CP.
Na verdade,
25. Correspondendo este preceito, por contraponto ao artigo 148.° do mesmo Código, a um delito qualificado pelo resultado, é irrecusável que as suas várias alíneas não podem deixar de se reportar a situações de ofensa à integridade física que, sem prejuízo da sua diversidade material, estão ligadas por um grau de lesividade normativamente equivalente, necessariamente mais grave do que o respeitante ao delito tipificado no citado artigo 148.° do CP.
26. Sucede que as dores, tratamentos e incómodos suportados pela Assistente no período anterior a 12 de Março de 2002, ainda que fossem imputáveis à Arguida — e não são — não têm, objectivamente, o menor paralelo com a gravidade de qualquer das lesões descritas nas alíneas a) a d) do artigo 144.° do CP, em especial com o quadro de 'perigo para a vida' que a Sentença recorrida não acolheu, e bem, na fixação do nexo causal relevante.
27. Decidindo o contrário, por referência à 'doença particularmente dolorosa' prevista na alínea e) do preceito, o Tribunal incorreu em errada aplicação do mesmo e, ainda, do artigo 10°, n.° 1, do CP.
Nestes termos,
E nos mais de Direito, sempre do douto suprimento desse Venerando Tribunal, deverá ser concedido provimento ao presente Recurso, com a consequente absolvição da Arguida…..”.
O Digno Magistrado do Ministério Público respondeu concluindo pela improcedência do recurso.
Neste Tribunal o Exmº Procurador-Geral Adjunto teve vista dos autos emitindo parecer.
Foi dado cumprimento ao artigo 417.º n.º 2 do C.P.Penal.
II.
É pacífica a jurisprudência do S.T.J. no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso.
Está em causa, apurar se resulta preenchido o conceito de negligência a que se refere o art. 15.° do C. Penal, relativamente ao que a recorrente pede a absolvição, sem suscitar o recurso da matéria de facto.
Cumpre decidir
Analisada a sentença revidenda, entendemos não ser susceptível de crítica ou censura, pelo que aqui a subscrevemos na íntegra.
Explanando as questões relevantes sujeitas a recurso
A sentença proferida em processo penal integra três partes distintas a saber: o relatório; a fundamentação e o dispositivo. A fundamentação abrange a enumeração dos factos provados e não provados relevantes para a decisão e que o tribunal podia e devia investigar; expõe os motivos de facto e de direito que fundamentam a mesma decisão e indica, procedendo ao seu exame crítico e explanando o processo de formação da sua convicção, as provas que serviram para fundamentar a decisão do tribunal.
Tais provas terão de ser produzidas de acordo com os princípios fundamentais aplicáveis ou seja o princípio da verdade material; da livre apreciação da prova e o princípio 'in dubio pro reo”. Igualmente é certo que, no caso vertente, sendo a prova produzida em sede de audiência de julgamento está sujeita ao princípio da publicidade bem como da oralidade e da imediação.
E assim, a matéria de facto dada como provada e não provada na decisão recorrida, é clara e incontroversa – do julgamento resultou que (transcrição):
- “...
II – Fundamentação
II.I - FACTOS PROVADOS:
Da acusação resultaram provados os seguintes factos:
1. No dia 18 de Dezembro de 2001, (...) foi submetida a uma intervenção cirúrgica de parto por cesariana, associada a laqueação bilateral das trompas de falópio, a pedido daquela, no Hospital de Torres Vedras;
2. A gravidez tinha corrido bem, sem quaisquer problemas especiais ou queixas associadas, por exemplo, à presença de qualquer corpo estranho no corpo;
3. (...) já tinha sido sujeita a duas cesarianas, em 1985 e 1989;
4. A arguida era a médica operadora cirurgiã, responsável pela intervenção, co-adjuvada pela Dra. (...) (médica ajudante), (...) (enfermeira), (...) (enfermeira) bem como Dra. (...) como anestesista; 5. Não estava presente nenhum enfermeiro a assegurar a função de enfermeiro instrumentista, que tem como funções essenciais fornecer o material cirúrgico e assegurar que nenhum material fique no corpo da doente, através da contagem final;
6. Apesar desse facto e da obesidade da doente, ambas as circunstâncias conhecidas pela arguida e que aumentam o risco de ser deixado material cirúrgico no corpo, a mesma efectuou a intervenção pois tratava-se de um procedimento de urgência que se não fosse realizado poderia colocar em risco a saúde ou vida da paciente;
7. Durante a intervenção, uma das compressas utilizadas ficou dentro do corpo de (...), sem que qualquer elemento da equipa se tivesse apercebido desse facto, apesar de terem feito uma revisão da cavidade abdominal;
8. A arguida, como operadora cirurgiã, tinha a responsabilidade de efectuar a contagem das compressas, ou mandar alguém fazê-lo,
9. No final da intervenção e antes de fechar o corpo, a arguida não procedeu à contagem das compressas utilizadas nem ordenou que qualquer elemento da equipa cirúrgica o fizesse, pelo que ninguém se apercebeu que tinha sido deixada uma compressa;
10. A arguida não ordenou que alguma das enfermeiras circulantes pudesse exercer essa função de contagem final:
11. A intervenção foi finalizada, tendo (...) tido alta a 21 de Dezembro de 2001, apesar da compressa ter ficado no seu corpo;
12. A compressa causou uma infecção, tendo causado complicações logo a partir de 31 de Dezembro de 2001;
13. Com efeito, logo em 31-12-01 surgiu pus na costura da cirurgia, com cheiro a podre;
14. Após vários exames e tratamentos de substituição dos pensos, causadores de dores e incómodos, (...) foi internada a 12-03-2002 no CHDTVD, tendo feito vários exames, sem ter sido detectada a origem dos problemas na ferida;
15. Na noite de 20-03-2002, (...) sofreu cólicas, o que não impediu que lhe tivesse sido dada alta clínica;
16. Todos estes problemas foram acompanhados no Hospital de Torres Vedras, por vários médicos que estavam de atendimento, que não suspeitaram que a origem do problema pudesse ser uma compressa;
17. Por se manterem os problemas na costura, (...) ficou internada novamente no CHTVD no dia 01-04-2002, expelindo liquido da costura 'tipo fezes';
18. Nesse dia foi feito um RX abdominal que identificou a compressa, confirmada no dia 5-04- 2002 através de uma TAC pélvico abdominal;
19. A compressa Unha causado uma infecção abdominal e uma fístula entérica, pelo que (...) foi submetida a intervenção cirúrgica a 10 de Abril de 2002, tendo sido retirada a compressa e encerrada a fistula;
20. A compressa estava já pastosa-esverdeada e foi retirada conjuntamente com fezes;
21. No entanto, esta operação, efectuada devido à compressa ter sido deixada no corpo de (...), causou problemas do foro respiratório e de equilíbrio hemodinâmico, pelo que foi internada novamente no CHDTVD, a 16-04-2002;
22. (...) apresentava um quadro de risco de vida, em pré-choque, tendo sido entubada oro-traquealmente, ventilada, sedada e transferida para o Hospital de S. José;
23. Quando chegou a S. José, (…) sofria de insuficiência respiratória aguda, estava confusa e com infecção abdominal, tendo sido sujeita a internamento que apenas terminou a 17-05-2002,
24. Apenas a 26-04-2002 foi desligada e extubada do ventilador;
25. A compressa deixada no corpo de (...) causou-lhe, infecção abdominal e fístula entérica, e deu origem a tratamentos vários e a nova operação cirúrgica para a retirar, bem como dores intensas e incómodos daí resultantes;
26. A arguida (…) actuou de forma imprevidente quando decidiu não fazer a contagem das compressas, nem assegurar que outra pessoa o fizesse, como podia e devia, de forma a assegurar que não ficava nenhuma esquecida no corpo de (...), como sucedeu;
27. A arguida previu a possibilidade de ficar uma compressa, mas não admitiu que tal chegasse a ocorrer;
28. A arguida agiu de forma livre, voluntária e consciente, sabendo ser proibido o seu comportamento;
Da contestação resultaram provados os seguintes factos com interesse para a decisão:
29. Casos há em que o material cirúrgico permanece, por vários anos, no interior do corpo humano, sem gerar qualquer problema do foro infeccioso, ou sintomatologia;
30. O referido material, que inclui as compressas, é estéril, e o organismo, muitas vezes, tolera-o sem problemas, até ao momento em que a realização de uma nova intervenção cirúrgica venha, eventualmente, a desencadear o início do processo infeccioso e das queixas do doente.
31. A técnica cirúrgica ensinada à arguida e por ela adoptada em todas as cirurgias que tem realizado consiste em só utilizar compressas grandes e nunca as largar, excepto no caixote do lixo, após cada utilização;
32. A cirurgia efectuada pela arguida não se tratou de uma cirurgia programada mas antes, de urgência, a uma grávida de termo, com pouco liquido amniótico e com duas cesarianas anteriores;
33. A Arguida, em conformidade com o seu horário de trabalho, encontrava-se, na altura, a assegurar a consulta externa hospitalar, não se encontrando escalada para o Serviço de Urgência;
34. O Dr. (...), Director do Serviço de Ginecologia-Obstetrícia e que, naquele dia 18 de Dezembro de 2001, estava escalado para o Serviço de Urgência, instruiu-a para, conjuntamente com a Dra. (…) (cirurgiã-ajudante), realizar a intervenção cirúrgica em apreço;
35. A Arguida só teve contacto com a grávida e conhecimento da respectiva situação clínica momentos antes da cirurgia, e só nessa altura foi informada que a Assistente havia solicitado a laqueação bilateral das trompas de Falópio;
36. A ausência de enfermeiro instrumentista era habitual nas intervenções cirúrgicas realizadas CHTV;
37. As cirurgias de urgência, apesar dos sucessivos protestos dos médicos cirurgiões junto do Director Clínico do CHTV, eram realizadas — sempre — sem o apoio de enfermeiro instrumentista, isto porque o CHTV, de acordo com o seu Conselho de Administração, não dispunha dos recursos humanos necessários para o efeito;
38. O correcto desempenho das tarefas de enfermeiro instrumentista exige treino e rigor e a presença de um técnico devidamente desinfectado, isto é, com bata e luvas esterilizadas:
39. No tocante à contagem das compressas, é necessário confirmar, em primeiro lugar, se cada pacote contém o número de unidades que é suposto ter;
40. Cada compressa que é colocada na mesa operatória tem de ser, nesse preciso momento, contabilizada e, antes do encerramento do acto cirúrgico, têm de ser contabilizadas as compressas utilizadas e que foram deitadas no lixo, mais as não utilizadas, em ordem a prevenir a ocorrência de qualquer falha,
41. O controle em causa não abrange, apenas, as compressas, mas todo o material e instrumentos cirúrgicos utilizados na intervenção;
42. Numa cesariana de urgência, como a dos autos, o cirurgião-chefe, e mesmo o cirurgião-ajudante, dificilmente têm tempo e condições para assegurar o controle eficaz dos materiais e instrumentos cirúrgicos uma vez que têm de se preocupar com a execução técnica do acto cirúrgico e com todas as intercorrências que dele possam emergir;
43. Nenhuma das enfermeiras presentes se encontrava com bata e luvas esterilizadas, o que inviabilizava à partida a execução das tarefas de instrumentação;
44. Não se encontrava instituído à época no Bloco Operatório do CHTV um protocolo de actuação que determinasse o exercício das funções de enfermeiro instrumentista por parte de outro enfermeiro quando aquele não se encontra presente;
45. O pessoal de enfermagem não procede, habitualmente, à execução de actos não protocolados, a simples pedido do cirurgião-chefe;
46. Os problemas decorrentes da falta de enfermeiro instrumentista foram várias vezes levados ao conhecimento da administração do CHTVD;
47. A ofendida foi internada no Serviço de Obstetrícia do CHTV a 12 de Março de 2002, por 'infecção da parede', tendo sido assistida pelos Drs. (...) e (...), internamento no âmbito do qual se destacam os seguintes actos:
- realização de exame com uma ampola de 'Azul Metileno'', que não confirmou a existência de 'fístula intestinal':
- pedido de alta da doente, a 19 de Março de 2002, não confirmada por escrito;
- registo no diário de enfermagem, no turno das 23 — 8 h do dia 20 de Março de 2002] de queixas da doente devido a 'cólicas';
- alta, para o domicilio, a 20 de Março de 2002, concedida pelo Dr. (...), Director do Serviço de Obstetrícia;
48. Tendo a assistente uma fistula instituída há cerca de três meses deveria, nesse internamento, ter sido efectuada uma fistulografia com contraste (radiografia do abdómen após injecção de produto de contraste pelo afinei() externo da fistula) ou um TAC abdominal que teriam permitido desde logo identificar a compressa;
49. Nos casos de fístula entérica está indicado como primeiro exame imagiológico a realização de um RX simples ao abdómen;
50. Nas referidas condições não deveria ter sido dada alta à assistente e sim ter sido transferida para a cirurgia geral para tratamento;
51. A 1 de Abril de 2002, a Assistente voltou a ser internada no Serviço de Obstetrícia do CHTV, apresentando-se com 'drenagem de liquido tipo fezes'. Foi assistida, no decurso deste novo internamento, por médicos de várias especialidades (designadamente, Anestesiologia, Medicina Interna e Cirurgia Geral), cumprindo destacar a seguinte sequência assistencial:
- a 2 de Abril de 2002 foi realizado Rx abdominal, com o seguinte registo clínico:
'Observa-se formação que poderá corresponder a marcador de compressa'; o Dr. (...), após observar a doente, registou no processo clínico: 'Doente (...) com fistula entercoral. Apresenta-se com corpo estranho intra-abdominal;
- a 5 de Abril de 2002 foi realizado um TAC pélvico abdominal, que confirmou o Rx
anterior, '... ou seja, a existência de um corpo estranho no abdómen da doente';
- a 10 de Abril de 2002 a doente foi operada, tendo sido efectuado '... encerramento da fistula, excisão de ansa cólica (...), tendo sido encontrada uma compressa no lado esquerdo'; o Dr. (...) acrescentou que a compressa 'estava pastosa-esverdeada e foi retirada conjuntamente com fezes'; a Dra. (…) referiu que consta do respectivo registo clínico: 'Abertura da cavidade. Lise de aderências, encerramento de fistula. Extracção de corpo estranho. Excisão de ansa cólica e anastomose topo a topo.
- nova intervenção cirúrgica a 12 de Abril de 2002, para I.. tentar evitar a conspurcação pela passagem de fezes'; no registo operatório, pode ler-se: 'Abertura. Lavagem peritoneal. Encerramento de fístula. Excisão de porção da ansa. Encerramento de topo posterior. Colostomia';
- na sequência de 'problemas do foro respiratório e equilíbrio hemodinâmico', decorrentes da intervenção vinda de referir, a doente, depois de 'entubada', 'ventilada' e 'sedada', foi transferida, em 16 de Abril de 2002, para o HSJ, encontrando-se, segundo a Dra. (...), '... em risco de vida, em pré-choque ...';
- à chegada ao HSJ, a doente apresentava '„. um quadro de insuficiência respiratória aguda e uma suspeita de septicemia na sequência das cirurgias realizadas a 10 e 14 de Abril no CHTV ..., bem como um '... estado confusional acentuado, provavelmente relacionado com o quadro de hipoxémia e Sepsis ...';
52. A anamastose efectuada na cirurgia de 10.04.2002 estava contra-indicada face à presença da compressa com fezes na cavidade abdominal:
53. Com o adequado acompanhamento, seguimento e tratamento, pós-operatório, diagnóstico atempado e correcção terapêutica, teria sido possível evitar o quadro de risco de vida, em pré-choque que determinou a transferência da assistente para o 1-ISJ:
54. A Arguida, não obstante ter sido a cirurgiã responsável pela execução da cesariana realizada a 18 de Dezembro de 2001] e apesar da sua presença diária no CHTV, não foi, em nenhum Momento, chamada a intervir no decurso do longo ciclo assistencial pós-operatório;
Provou-se ainda que:
55. A arguida exerce a actividade médica na especialidade de ginecologia / obstetrícia;
56. Aufere nessa actividade rendimentos líquidos de, pelo menos, € 2.500.00 por mês;
57. Ao longo da sua carreira já efectuou várias centenas de intervenções cirúrgicas de cesariana;
58. A arguida vive com o marido e 2 filhos;
59. A arguida não tem quaisquer antecedentes criminais;
II .2 - FACTOS NÃO PROVADOS:
Com interesse para a decisão a proferir, não se provou que:
1. A arguida efectuou a intervenção cirúrgica por resolução própria;
2. Os problemas ocorridos após a intervenção cirúrgica de 10 de Abril de 2002, nomeadamente a insuficiência respiratória aguda que causou perigo de vida para a assistente, foram causados, ou pelo menos agravados, pela compressa que causou alterações electrolíticas relacionadas com a fistula infectada......”.
***
Por outro lado, o n.º 2 do art. 374.º do C. P. Penal determina que na sentença, a seguir ao relatório se segue a fundamentação que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
O Tribunal enumerou as várias provas/factos em que se fundamentou para decidir, não se limitando a referir os meios de prova, mas analisando cada um deles, o que considerou relevante e porquê, explicita o raciocínio que esteve na base da sua convicção, discutindo o valor desses meios de prova perante o caso concreto:
- “ ...
(...), o Tribunal formou a sua convicção com base na análise crítica das declarações prestadas pela arguida e pela assistente (...) e depoimentos das testemunhas (...), devidamente conjugados com os relatórios de fls. 107/108 e 1731174, documentação clínica de fls. 18 a 54, 71, 114 a 148, 154 a 169 e 176 a 181, relatório da Inspecção-Geral da Saúde de fls. 186 e seguintes e relatórios de fls. 242 a 250, documentos juntos com a contestação da arguida.
Os referidos elementos documentais espelham o percurso clínico da assistente e as intervenções a que a mesma foi sujeita.
A arguida confirmou a realização da operação e a composição da equipa que realizou a cirurgia, afirmando que não a realizou por uma questão de opção mas sim porque tal tarefa lhe foi incumbida pelo superior hierárquico, Dr. (...), e porque se tratava de uma intervenção de urgência que tinha de ser necessariamente efectuada. Esclareceu que utiliza sempre a mesma técnica cirúrgica que consiste em só largar a compressa quando a deita fora para o lixo e que só utiliza compressas grandes pelo que não poderia ter deixado a compressa em questão no corpo da assistente, até porque foi efectuada a limpeza da cavidade pélvica em conjunto com a Dra. (...), cirurgiã auxiliar naquela intervenção, sendo possível que a mesma tivesse sido deixada em qualquer uma das anteriores intervenções a que aquela foi sujeita. Confirma assim não ter efectuado qualquer contagem de compressas nem ter ordenado a qualquer elemento — médico ou enfermeira — que procedesse a essa contagem, até porque tal acto não se encontrava protocolado no CHTVD, onde, por regra, as intervenções cirúrgicas de urgência nunca eram acompanhadas por enfermeiro instrumentista, por determinação da direcção do hospital e porque, no âmbito da cirurgia o médico operador não consegue efectuar a contagem em termos adequados face ás restantes tarefas que tem de desempenhar. Confirmou também não ter acompanhado o pós-operatório da paciente
A assistente confirmou ter efectuado duas cesarianas anteriores, nos anos de 1985 e 1989, na sequência das quais não teve qualquer complicação, inclusivamente durante o tempo da terceira gravidez, nunca tendo sido detectada qualquer compressa desde aqueles anos até ao momento desta terceira intervenção. Confirmou que logo pela altura do Natal, poucos dias depois da cesariana, começou a deitar pus tipo 'fezes' de cor esverdeada, e com mau cheiro, situação que prolongou até ser novamente internada depois de sucessivas limpezas e mudanças de pensos no CHTVD e no CATUS. Confirma que a infecção que sofreu lhe provocava dores intensas e que até hoje sente dores e não consegue fazer esforços.
A testemunha (...), marido da assistente, confirmou as declarações prestadas pela mulher.
(…), motorista de ambulância, confirmou ter assistido ás sucessivas manifestações de queixa e fortes dores da assistente quando a transportava ao hospital, o mau cheiro que emanava devido ao pus que deitava.
(…), enfermeira no CHTVD, e que trabalha no bloco operatório há cerca de 15 anos, confirmou ter participado na cirurgia em apreço nos autos pese embora já não se recordar dos exactos termos da mesma, confirmou no entanto que na mesma não foi efectuada contagem de compressas por não ter estado presente nenhum enfermeiro instrumentista, como na altura era regra, e já que tal acto não estava então protocolado. Confirmou que normalmente são empregues naquele tipo de cirurgia compressas grandes e que as mesmas tinham à data daquela cirurgia um marcador que permite a sua visualização no RX as quais não existiam ainda à data das anteriores cirurgias efectuadas pela assistente. Afirmou ainda que normalmente é quem está encarregue de efectuar a cirurgia que tem de fazer o controlo do material
(…), médica ginecologista / obstreta desde 1986, em funções no CHTVD desde 1998, assistente hospitalar à data da cesariana em apreço nos autos, confirmou ter participado naquela intervenção como ajudante da arguida por indicação do Dr. (...). Confirmou que as cesarianas nunca eram efectuadas com a presença de enfermeiro instrumentista, a inexistência de qualquer protocolo quanto ao procedimento a adoptar na falta desse elemento, a utilização de compressas grandes, que é possível que as mesmas fiquem esquecidas no corpo de uma pessoa sem surgirem complicações. Considera que uma situação de insuficiência respiratória aguda não constitui uma decorrência normal do esquecimento de uma compressa no corpo de uma pessoa.
(…), médica anestesista em funções no CHTVD há cerca de seis anos, confirmou ter exercido aquelas funções na cesariana em apreço nos autos, a ausência de enfermeiro instrumentista como geralmente acontecia por motivos economicistas e que, nessas condições a contagem das compressas deve ser efectuada por quem estiver devidamente equipado para o efeito, o que não era o seu caso nem o da enfermeira circulante, a inexistência de protocolo de actuação instituído para tais situações, embora seja difícil ao cirurgião conseguir efectuar devidamente esse controlo ele próprio. Afirmou ser possível uma compressa permanecer vários anos no interior do corpo sem surgirem problemas para o paciente e que quer as compressas grandes utilizadas quer as pequenas tinham na altura um marcador detectável ao RX.
(…), enfermeira no CHTVD entre 1998 e 2004, interveniente também na cesariana em referência, afirmando já não ter memória da cirurgia em particular, confirmou a ausência de enfermeiro instrumentista e que os cirurgiões nunca costumavam contar as compressas na ausência desse elemento já que não existia qualquer protocolo instituído que determinasse tal actuação.
(…), médico com especialidade de cirurgia geral desde 1974, em funções no CHTVD desde 1988 afirmou ter conhecido a assistente no âmbito do pós-operatório, confirmou que na altura era comum a inexistência de enfermeiros instrumentistas por razões economicistas e a inexistência de protocolo de actuação. Afirmou que é possível uma compressa ficar vários anos no corpo da pessoa sem complicações mas que em 1985 / 1989 não existiam compressas com marcadores visíveis no RX.
(…), médico com especialidade de cirurgia geral há cerca de 30 anos, em funções no CHTVD de 1991 a 2006 director do serviço de cirurgia geral do CHTVD em 2001, confirmou a inexistência de enfermeiro instrumentista na intervenções efectuadas naquela altura, facto que o motivou a efectuar várias exposições à direcção alertando para os perigos daí decorrentes já que a presença daquele elemento é essencial à cirurgia. Afirmou que é possível uma compressa ficar vários anos no corpo da pessoa sem complicações mas que em 1991/1992, de certeza absoluta, não existiam compressas com marcadores visíveis no RX. Esclareceu que é ao cirurgião que cabe verificar se fica algum material esquecido no corpo do paciente.
(...), hoje reformado, mas que na altura da cesariana efectuada pela arguida era médico obstetra no CHTVD desde 1975, confirmou que era ele quem estava de serviço no dia de cesariana mas porque não a pôde realizar pediu à arguida que a realizasse. Confirmou que nas urgências nunca havia enfermeiro instrumentista e que não se fazia a contagem das compressas até por que o cirurgião, na prática, dificilmente consegue fazer um controlo adequado do número de compressas utilizadas, que geralmente são utilizadas compressas grandes mas que, mesmo essas, depois de molhadas são muito difíceis de localizar, que os marcadores nas compressas só surgiram em 2001, que ambos os cirurgiões que intervêm na operação utilizam compressas e que ambos são responsáveis pelo sucesso ou insucesso da cirurgia. Referiu ainda as complicações que a assistente teve no pós-operatório e que interveio no mesmo, não sabendo se a arguida o fez e, apesar de uma compressa poder ficar instalada no corpo muito tempo, o mais frequente é que as mesmas sejam rejeitadas pelo organismo.
(…), médico cirurgião no CHTVD desde 1997] confirmou também a ausência de instrumentista nas intervenções efectuadas no CHTVD naquela altura, a inexistência de qualquer protocolo e que, nessas condições, não se costuma efectuar a contagem de compressas porque a contagem efectuada pelos próprios cirurgiões pode dar muitos erros uma vez que têm de estar concentrados na cirurgia. Afirmou que, estando em causa uma cirurgia urgente o médico não pode deixar de operar por considerar que não estão reunidas as condições adequadas já que assim poderia por em risco a saúde e/ou vida do paciente. Considera que a evolução clínica da assistente ultrapassou aquilo que seria normal e espectável por virtude de um deficiente acompanhamento no pós-operatório. Esclareceu que uma compressa sem marcador pode ser visível numa TAC como corpo estranho, mas que é muito difícil que a mesma fosse visível no RX sem esse marcador e que, no final da cirurgia é regra verificar a cavidade para verificar a existência de material e que tal conduta deve ser assegurada pelo cirurgião operador.
(…), médico com especialidade de cirurgia geral, hoje aposentado, interveniente na cirurgia realizada para retirada da compressa, referiu já não se lembrar do que se passou nessa cirurgia, confirmando que é quase impossível uma compressa sem marcador aparecer no RX e que mesmo sem instrumentista o médico não pode deixar de operar estando em causa um procedimento de urgência, e que a tarefa final de verificação da existência de qualquer material o interior do corpo do paciente deve ser efectuada em conjunto pelos médicos cirurgiões — chefe e ajudante — presentes.
(…), médico com especialidade de ginecologia / obstetrícia no CHTVD desde 1986 confirmou ter intervido como ajudante na cirurgia de retirada da compressa, afirmou da mesma já pouco se recordar e afirmou a necessidade de se efectuar sempre a revisão da cavidade antes de encerrar o corpo, tarefa essa que deve ser feita por um dos cirurgiões.
(…), médica anestesista no CHTVD há 25 anos afirmou que sem instrumentista o cirurgião não consegue executar devidamente também essas funções pelo que tais tarefas devem ser distribuídas pelos vários elementos da equipa.
(…), médico com especialidade de cirurgia geral, em funções no Hospital São Francisco Xavier, responsável pela elaboração do relatório de fls. 242 e seguintes dos autos, confirmou o teor desse mesmo relatório, afirmando que entende ter existido um tardio reconhecimento da fistula e que devia ter sido realizado mais cedo o RX sobretudo a partir do momento em que surgiu uma fístula persistente, e aponta como contra-indicada a decisão de ter sido efectuada uma anastomose. Considera que não é possível estabelecer uma como decorrência normal do facto de ter sido deixada uma compressa no interior do corpo, tudo podendo acontecer.
Da conjugação dos vários elementos supra referidos não tem assim o tribunal em considerar como absolutamente provado que a compressa que se encontrava no interior do corpo da assistente foi aí deixada na intervenção de cesariana efectuada pela arguida no dia 16.122001. O facto da mesma ter sido detectada em exame de RX, do facto de tal só poder acontecer em compressas com um marcador próprio, e de compressas com esse marcador não existirem ainda aquando da realização das anteriores cesarianas efectuadas pela assistente e de a mesma não ter sido sujeita a outras intervenções cirúrgicas, não deixa qualquer margem de dúvidas nesse sentido.
Também não merece qualquer dúvida o facto de que a arguida foi responsável pela cirurgia em questão e que sobre a mesma impendia o dever de se certificar que não era deixado qualquer material cirúrgico — compressas ou outro — no interior do corpo da paciente antes do mesmo ser encerrado. Repare-se que, embora houvessem depoimentos divergentes no sentido de afirmar que essa responsabilidade pertence apenas ao cirurgião operador com outros que a dividem pelos cirurgiões intervenientes, cedo é que nenhum deles exclui tal responsabilidade ao operador. Por outro lado, em direito penal não releva a possibilidade de concorrência ou repartição de culpas bastando que exista contribuição nessa culpa para o agente poder ser responsabilizado pelo facto. Num tal plano, a questão seria relevante para discutir se a arguida deveria ser a única arguida mas não para discutir se ela própria o devia ser.
Resulta também dos referidos depoimentos que a realização da cirurgia não foi um acto querido ou programado pela arguida mas sim que tal lhe foi incumbido enquanto procedimento de urgência e que, nessa medida não podia a mesma deixar de realizar a operação mesmo sem a presença de enfermeiro instrumentista. Aceitamos e compreendemos também que a presença de pessoa encarregada de tais funções se assume como elemento de vital importância na realização de uma cirurgia e a dificuldade que resulta para o cirurgião de ter se ser também ele a assumir o controlo dessas funções e que nessa medida existem também responsabilidades da própria instituição quando, por omissão, não assegura a presença de pessoa encarregue ao exercício de funções tão importantes ao acto cirúrgico.
O que não podemos compreender nem aceitar é que quase se defenda que, já que são essas as condições existentes, fique excluída a responsabilidade dos intervenientes sobretudo quando os mesmos, designadamente e neste caso, o cirurgião operador, sabe à partida que ninguém assegura essas funções de instrumentista e que esta perante uma doente obesa em que é maior o risco de perda de material cirúrgico e que ainda assim não assume qualquer conduta adequada a evitar tal ocorrência. A inexistência de protocolo não dispensava a arguida de tomar medidas tendo em vista assegurar esse controlo. A arguida, justamente por também ela própria ressalvar a necessidade de existência de instrumentista que procedesse ao controlo do material, sabia à partida que a inexistência de protocolo não significava que o procedimento de contagem não fosse necessário ou que no mesmo correspondesse ás /agis atila Não podemos também aceitar que mesmo sabendo à partida que lhe seria difícil efectuar ela própria a contagem nem sequer tivesse delegado essa tarefa no cirurgião auxiliar. A habitual não prática pelos enfermeiros de actos não protocolados não significa que os mesmos não os pratiquem em situação alguma. O facto das enfermeiras não estarem adequadamente vestidos para o exercício dessas funções certamente poderia ser facilmente suprido antes do início da cirurgia.
Em virtude das limitações impostas pela direcção hospitalar e da consequente sucessiva realização de actos médico-cirúrgicos sem contagem de compressas não se pode legitimar comportamentos que os senhores médicos sabem à partida que não são adequados. Não é só o tribunal que o diz: O Dr. (...), no seu relatório de fls. 242, não sem confirmar que as condições prestadas pelo hospital não eram as adequadas, afirma expressamente: 'Atendendo ao facto de a doente ser obesa: já ter sido laparotomizada por duas vezes e não haver enfermeira instrumentista, teria sido correcto e mais prudente pedir contagem de compressas. A responsabilidade, nas condições referidas é da medica operadora. Foi ela que se decidiu a prescindir da contagem das compressas não dando ordem expressa nesse sentido.'
Acrescendo a esta falta de cuidados prévios, não é ainda possível concluir de outro modo senão que a arguida não procedeu com o cuidado que lhe era exigido na revisão do interior do corpo da assistente antes de fechar o corpo de forma a verificar a existência da compressa, sobretudo ainda mais tendo em conta que, como a própria refere, apenas usa compressas grandes.
Ignorar todos estes factos seria concluir que a assistente, para além dos normais riscos que tem de suportar quem se submete a uma intervenção cirurgia por virtude da sua situação clínica, passasse ainda a assumir os riscos decorrentes de causas exógenas e decorrentes do não cumprimento adequado do acto cirúrgico.
Ao nível do nexo causal sustentou a arguida que o quadro clínico se agravou para lá das consequências normais e espectáveis em virtude de um deficiente tratamento e acompanhamento pós-operatório, pelo que tais resultados, nomeadamente o perigo para a vida lhe não são imputáveis.
Ora, neste âmbito o tribunal entende desde logo começar por afirmar que existiram várias deficiências ao nível do tratamento do pós-operatório, nomeadamente quanto ás lacunas identificadas relativas ao primeiro internamento pós-operatório e à decisão de efectuar a anastomose quando a mesma era contra-indicada, factos que resultam do relatório do Dr. (...) a fis. 244 e 245, e do relatório da inspecção geral de saúde a fls. 212. Acresce ainda que o mesmo médico confirmou também em audiência de julgamento que caso tivesse sido desde logo sido seguido o procedimento adequado aquando do primeiro internamento no sentido de, face à fistula persistente, realizarem os exames que eram adequados a descobrir a sua causa, nomeadamente RX, TAC ou fistulografia, teria descoberto a compressa e procedido a imediato tratamento. Refere ainda que as causas do agravamento da situação da assistente se devem ao facto da mesma apresentar alterações electroliticas e alterações respiratórias antes da intervenção de 10.04.2006 e de ter existido contaminação abdominal seguida de quadro séptico por deiscência da anastomose efectuada nessa intervenção, que se encontrava conta-indicada, sendo que, aquando do 10 internamento não se verificava o tal quadro de alterações electroliticas e alterações respiratórias.
A questão que se coloca é assim a de saber se, face a tais ocorrências do pós-operatório, supra referidas, se pode ainda imputar como decorrência normal e previsível da conduta do facto da compressa ter sido deixada no corpo da assistente, sendo certo que não existem dúvidas de que foi esse o facto que deu origem a todo o processo causal, ou seja, se tais ocorrências constituem uma interrupção desse nexo causal.
Nos crimes de resultado, entre a acção e o resultado deve mediar uma relação de causalidade, ou seja, uma relação que permita, no âmbito objectivo, a imputação do resultado produzido ao autor da conduta que o causou.
Para se imputar o resultado a uma determinada acção é necessário estabelecer uma relação de causalidade entre a acção e esse resultado; a relação de causalidade entre a acção e o resultado e a imputação objectiva do resultado ao autor da acção que o causou são o pressuposto mínimo para afirmar a responsabilidade, nos crimes de resultado, pelo resultado produzido.
Objectivamente imputáveis são unicamente as consequências do facto que dependem de um processo causal tipicamente adequado, como resulta do artigo 10.º do CP, que consagra a teoria da adequação ou da causalidade adequada. Esta requer, a idoneidade abstracta da acção para produzir o resultado e a adequação do próprio processo causal. Só quando o resultado se produz de um modo completamente anómalo e imprevisível é que se pode sustentar a interrupção do nexo causal. A causa a que se segue outra causa que é daquela necessário efeito, é, ainda, causa adequada.
Os casos de interrupção da causalidade são aqueles em que á causa adequada posta pelo agente se sobrepõe outra causa, igualmente adequada para produzir o resultado, quer directamente, quer como consequência da causa inicial, mas que não provém do mesmo agente.
É claro que aqueles danos agravados não podem ser desligados do facto da compressa ter sido esquecida no interior do corpo e também é certo que se a mesma ai não tivesse sido deixada tais danos também nunca se teriam verificado. Porém, tal ilação, própria de uma simples teoria de causalidade 'sine qua non', não permite estabelecer um nexo causal em termos de causalidade adequada, afirmando que os mesmos constituem consequência previsível e normal do esquecimento da compressa. Como afirmou Eduardo Correia, 'a adequação não consiste unicamente na previsibilidade de um resultado inevitável ou apenas possível, mas antes da sua previsibilidade como consequência normal, típica de uma certa conduta' — Direito Criminal, Vol. I, Almedina, p. 266.
Ora, tendo em apreço o exposto rol sequencial de factos, considero que a situação critica em que a assistente deu entrada no HSJ não se teria verificado caso tivessem sido tomados os adequados cuidados na identificação da causa da patologia de que sofria a assistente, que podiam e deviam ter sido assegurados, o que atrasou a sua descoberta e tratamento por mais de vinte dias, altura em que já apresentadas os referidos contextos de alterações electrolíticas e respiratórias que associados à realização da anastomose deram origem a esse quadro clínico,
Considero por isso que tais danos, embora partindo ou tendo como base a presença da compressa foram potenciados por esses outros factos ou omissões não praticados pela arguida mas por outros que, pela sua profissão, tinham também um dever de garantir o adequado tratamento, e que constituem causa adequada a produzir aquele resultado agravado a partir da situação clínica de quadro infeccioso, esse sim, claramente imputável à existência da compressa.
As condições pessoais da arguida resultam das suas próprias declarações.
A ausência de antecedentes criminais deriva do certificado de registo criminal junto aos autos.
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O tribunal a quo correctamente fixou na sentença revidenda, dela eliminando todos os factos alheios, incluindo os factos objecto do processo, mas também aqueles que permitem inferir a verificação dos primeiros e a idoneidade dos meios de prova.
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Analisadas os autos, com as limitações que os mesmos contêm, a matéria de facto dada como provada e não provada na sentença revidenda, é clara e incontroversa, não se vislumbrando quaisquer vícios de apreciação da prova, previstos no art. 410.º n.º. 2 do C.P.Penal e de conhecimento oficioso .
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Da análise de toda a documentação, conjugada com o depoimento prestado e acima apontado, ancoradas, fundamentalmente, nas regras da experiência comum para lograr estabelecer, com racionalidade e lógica, a forma como os factos ocorreram e quem os praticou concluiu o tribunal a quo e conclui este tribunal ad quem, sem qualquer reserva, pela prova dos factos acima dados como provados e não provados.
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Assim, a factualidade dada como provada, evidencia de forma nítida o preenchimento dos elementos objectivo e subjectivo do tipo legal de crime que foi imputado e por mor do qual o arguido recorrente veio a ser condenado.
E o enquadramento jurídico-criminal dos factos praticados pela arguida – e evidenciado nos autos – por um crime de ofensa à integridade física grave por negligência p. e p. pelo artigo 148.º, nºs. 1 e 3, mostra-se correcto, preenchidos como se encontram os respectivos pressupostos objectivos e subjectivos.
Vejamos:
No presente recurso, está em causa saber se à médica ora recorrente deve ser imputada responsabilidade penal pelo facto de na intervenção cirúrgica aludida nos autos e por si efectuada ter sido deixada uma compressa no interior do corpo da vítima (o que acabaria por despoletar todo um conjunto de reacções adversas, físicas e psíquicas para a mesma, obrigando-a a posteriores cirurgias e tratamentos).
Citando recente Acórdão do STJ (de 27-11-2007 em que foi relator o colendo conselheiro Rui Maurício):
- “ …
O médico, como ensina João Álvaro Dias, “deve actuar de acordo com o cuidado, a perícia e os conhecimentos compatíveis com os padrões por que se regem os médicos sensatos, razoáveis e competentes do seu tempo”, exigindo-se-lhe “que actue com aquele grau de cuidado e competência que é razoável esperar de um profissional do mesmo «ofício» (especialista ou não especialista), agindo em semelhantes circunstâncias” - cfr. “Culpa médica: algumas ideias-força”, in Revista Portuguesa do Dano Corporal, Ano IV, nº 5, págs. 21 e 23.
Como ensina o Professor Antunes Varela, “para que o facto ilícito gere responsabilidade, é necessário que o autor tenha agido com culpa. Não basta reconhecer que ele procedeu objectivamente mal. É preciso, nos termos do art. 483.º, que a violação ilícita tenha sido praticada com dolo ou mera culpa. Agir com culpa significa actuar em termos de a conduta do agente merecer a reprovação ou censura do direito. E a conduta do lesante é reprovável, quando, pela sua capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação, se concluir que ele podia e devia ter agido de outro modo” - ibidem, pág. 562.
Citando o Professor João Álvaro Dias, “os médicos estão obrigados para com os seus doentes, quer pelos específicos deveres que resultam do contrato entre eles celebrado quer de um genérico dever de cuidado e tratamento que a própria deontologia profissional lhes impõe. Espera-se dos médicos, enquanto profissionais, que dêem provas de um razoável e meridiano grau de perícia e competência (…) Sempre que tal perícia e cuidado não são postos em prática, em termos de ser prestado um tratamento errado ou ser omitido o tratamento adequado, estamos perante uma actuação negligente” - ibidem, pág. 30.
Na verdade, o médico deve exercer a sua profissão com o maior respeito pelo direito à Saúde dos doentes e da comunidade, deve ter sempre um comportamento profissional adequado à dignidade da sua profissão, obrigando-se, quando aceite o encargo ou tenha o dever de atender um doente, à prestação dos melhores cuidados ao seu alcance, agindo com correcção e delicadeza, no exclusivo intuito de promover ou restituir a Saúde, suavizar os sofrimentos e prolongar a vida, no pleno respeito pela dignidade do ser humano - cfr. arts. 6º, nº 1, 12º e 26º do Código Deontológico da Ordem dos Médicos.
Ora, o esquecimento de compressas ou de instrumentos utilizados na cirurgia dentro do corpo do doente tem sido considerado como a omissão de um dever de diligência. A negligência consiste em deixar de fazer o que as legis artis impunham que fosse feito ou em deixar de actuar de acordo com aquele grau de cuidado e competência que seria de esperar de um médico da mesma especialidade, actuando nas mesmas condições . E no caso sub judice o R. ora recorrente tinha o dever de não suturar o A. sem previamente se certificar que na zona da intervenção cirúrgica não deixava qualquer corpo estranho, nomeadamente, uma compressa.”
Da análise dos autos conclui-se que:
- a cirurgia não foi programada, mas antes de urgência, a uma gravidez de termo, tendo sido realizada pela arguida médica operadora cirurgiã, responsável pela intervenção, co-adjuvada pela Dra. (...) (médica ajudante), (...) (enfermeira), (...) (enfermeira) bem como Dra. (...) como anestesista, nas circunstâncias referidas nos pontos 5 a 7 e 32 a 46,
- a cirurgia decorreu sem intervenção de enfermeiro instrumentista, não se encontrando ao tempo protocolada a sua intervenção, nem sendo esta possível ou, pelo menos, fácil de obter;
- a arguida, médica operadora, não ordenou, em momento algum, a nenhum elemento da equipa cirúrgica ou a alguma das enfermeiras circulantes que procedesse à contagem das compressas.
A arguida defende que “ … tendo em conta, sobretudo, que os médicos cirurgiões estão fundamentalmente concentrados no campo operatório, plenamente absorvidos e preocupados com a execução técnica do acto cirúrgico e com a resolução, em tempo real, das eventuais intercorrências dele emergentes, parece evidente, à luz das regras da experiência comum, que nenhum deles, sobretudo em cesarianas urgentes e, em especial, durante a chamada 'fase rápida' da intervenção, têm objectivamente condições de tempo e disponibilidade para, com o rigor e cuidado exigíveis, assegurar eficazmente os procedimentos e tarefas de instrumentação que, reitera-se, não se restringem à contagem de compressas.”.
E se, efectivamente a enfermeira instrumentista desempenha uma papel coadjuvante no acto da intervenção cirúrgica, considerada em toda a sua globalidade, em primeira linha, na sua ausência, não é admissível a recusa por parte do cirurgião de realizar a operação nessas condições, tendo o cirurgião que praticar a cirurgia assegurando-se que nenhuma anomalia se verifica no decurso da operação, nomeadamente, se por si ou por outrém (coadjuvantes) havia sido deixado qualquer material ou equipamento no interior do corpo do doente.
Como lapidarmente refere o Ac. RL de 29.04.2005, em que foi relator o desembargador Pimentel Marcos, “ O erro médico pode ser definido como a conduta profissional inadequada resultante da utilização de uma técnica médica ou terapêutica incorrectas que se revelam lesivas para a saúde ou vida de um doente. E pode ser cometido por imperícia, inconsideração ou negligência.
Ora, à luz deste conceito, aceitar o entendimento plasmado na douta sentença recorrida de que a responsabilidade pelo facto de ter sido deixada uma compressa no corpo do A. era da enfermeira instrumentista, seria o mesmo que sufragar o entendimento de que o médico operador não estava obrigado a retirar essa mesma compressa.”.
É verdade que “Aos médicos exige-se que se concentrem no campo operatório, no doente, mas não se lhes pode pedir que estejam simultaneamente a contar as compressas que entram e saem do corpo do operado, sob pena de se desconcentrarem das outras tarefas que lhes incumbem” mas na falta da enfermeira instrumentista deveria a operadora incumbir outro elemento da equipa para essas funções .
Assim, ao não efectuar a contagem das compressas ou ao não incumbir que algum dos elementos que integravam aquela equipa cirúrgica o fizesse, a arguida agiu em violação de um dever de cuidado a que estava adstrita enquanto responsável por aquele acto, admitindo que ao não fazê-lo corria o risco de que alguma compressa fosse deixada no interior da paciente (...). Até porque dada a obesidade da doente aumentava risco de ser deixado material cirúrgico ou qualquer outro objecto no corpo da doente.
É do domínio público que a área de ginecologia e obstetrícia motiva a maioria das queixas referentes a negligência ou erro médico em Portugal. Parto com sequelas graves para o recém-nascido, restos placentares não retirados, erros em ecografias e compressas esquecidas são os principais motivos.
Um estudo inédito estima que em Portugal morram mais pessoas por falhas médicas do que por sida ou em acidentes nas estradas.
Estima-se que três mil pessoas, de entre cerca de um milhão que são internadas por ano, morram nos hospitais portugueses em consequência de erros cometidos pelas equipas de profissionais de Saúde .
O erro médico é a conduta inadequada que se caracteriza por uma imprudência, por uma imperícia ou por uma negligência. A imprudência ocorre quando o médico faz o que não deveria ter feito, ou porque não tinha habilitação para isso, ou porque não tinha meios para fazê-lo. Imperícia é fazer mal o que deveria ser bem feito. E a negligência é deixar de fazer o que deveria ter sido feito, por omissão, descaso. É o médico que não está olhando o paciente como uma pessoa. Mas o exercício profissional da medicina é uma actividade eminentemente humanitária e social, e tem na relação médico-paciente seu pilar fundamental, cujo único alvo deve ser a pessoa e sua saúde. Não podemos colocar em primeiro lugar valores técnicos e científicos, transformando o médico em técnico de Medicina.
Mas no Código Penal português não está previsto o crime de negligência médica nem de erro médico, por isso, dependendo das consequências que a acção clínica tenha tido para o utente, a conduta pode encaixar-se em vários artigos diferentes (por exemplo, ofensas à integridade física e homicídio por negligência).
Há que averiguar:
- se o médico terá agido com mera negligência ou com dolo no caso da sua conduta ter sido faltosa;
- O nexo de causalidade (ou sequência causal) entre a conduta faltosa e o dano.
Quanto ao primeiro dos requisitos, é suficiente o que acima já foi explanado de acordo com a factualidade provada:
26. A arguida (…) actuou de forma imprevidente quando decidiu não fazer a contagem das compressas, nem assegurar que outra pessoa o fizesse, como podia e devia, de forma a assegurar que não ficava nenhuma esquecida no corpo de (...), como sucedeu;
27. A arguida previu a possibilidade de ficar uma compressa, mas não admitiu que tal chegasse a ocorrer;
28. A arguida agiu de forma livre, voluntária e consciente, sabendo ser proibido o seu comportamento;
Quanto ao segundo, o estabelecimento do nexo de causalidade consiste na demonstração do encadeamento de alterações anátomo e fisiopatológicas desde a lesão directamente resultante da conduta alegadamente faltosa até à lesão que configura o dano - nos crimes de resultado, entre a acção e o resultado deve mediar uma relação de causalidade, ou seja, uma relação que permita, no âmbito objectivo, a imputação do resultado produzido ao autor da conduta que o causou.
Objectivamente imputáveis são unicamente as consequências do facto que dependem de um processo causal tipicamente adequado, como resulta do artigo 10.º do Código Penal, que consagra a teoria da adequação ou da causalidade adequada.
A teoria da causalidade adequada recorre a um critério limitador da causalidade adequada – a previsibilidade objectiva do resultado. Esta requer, a idoneidade abstracta da acção para produzir o resultado e a adequação do próprio processo causal [Para mais desenvolvimentos, cfr., v. g., Manuel Cavaleiro de Ferreira, Lições de Direito Penal, Parte Geral, Editorial Verbo, 1992, p. 148 e ss].
Só quando o resultado se produz de um modo completamente anómalo e imprevisível é que se pode sustentar a interrupção do nexo causal. Seguindo Roxin [Derecho Penal, Parte General, Tomo I, Editorial Civitas, 1997, p. 362 e ss], um resultado só se pode imputar ao tipo objectivo se a conduta do agente criou um perigo para o bem jurídico (não coberto pelo risco permitido) e esse perigo também se realizou no resultado concreto.
Há interrupção da causalidade quando à causa adequada posta pelo agente se sobrepõe outra causa, igualmente adequada para produzir o resultado, mas que não provém do mesmo agente, quer directamente, quer como consequência da causa inicial.
Não restam dúvidas que foi a compressa deixada no interior do corpo da parturiente, no decorrer da cesariana realizada no dia 18 de Dezembro de 2001, a causa adequada a complicações, logo a partir de 31 de Dezembro de 2001, originando toda a infecção e uma fístula entérica, que obrigou à a intervenção cirúrgica a 10 de Abril de 2002.
Correcta se mostra, em consequência, a conclusão da sentença revidenda de que “… que aqueles danos agravados não podem ser desligados do facto da compressa ter sido esquecida no interior do corpo e também é certo que se a mesma ai não tivesse sido deixada tais danos também nunca se teriam verificado. Porém, tal ilação, própria de uma simples teoria de causalidade 'sine qua non', não permite estabelecer um nexo causal em termos de causalidade adequada, afirmando que os mesmos constituem consequência previsível e normal do esquecimento da compressa. Como afirmou Eduardo Correia, 'a adequação não consiste unicamente na previsibilidade de um resultado inevitável ou apenas possível, mas antes da sua previsibilidade como consequência normal, típica de uma certa conduta' — Direito Criminal, Vol. I, Almedina, p. 266 (…) tendo em apreço o exposto rol sequencial de factos, considero que a situação critica em que a assistente deu entrada no HSJ não se teria verificado caso tivessem sido tomados os adequados cuidados na identificação da causa da patologia de que sofria a assistente, que podiam e deviam ter sido assegurados, o que atrasou a sua descoberta e tratamento por mais de vinte dias, altura em que já apresentadas os referidos contextos de alterações electrolíticas e respiratórias que associados à realização da anastomose deram origem a esse quadro clínico (…) por isso que tais danos, embora partindo ou tendo como base a presença da compressa foram potenciados por esses outros factos ou omissões não praticados pela arguida mas por outros que, pela sua profissão, tinham também um dever de garantir o adequado tratamento, e que constituem causa adequada a produzir aquele resultado agravado a partir da situação clínica de quadro infeccioso, esse sim, claramente imputável à existência da compressa.”.
A parturiente, em função da infecção causada pela compressa e pelos consequentes tratamentos que se prolongaram pelo menos até à data do primeiro internamento pós-operatório, sofreu dores intensas, circunstância que se enquadra no âmbito da referida al, c) do artigo 144°. Preenchendo os elementos típicos do crime de ofensa à integridade física grave, por negligência, mas apenas por referência à situação prevista na referida al. c), não resultando provados factos que integrassem a sua conduta também na al. d), nomeadamente que o perigo para a vida da assistente lhe fosse imputável.
Alega a arguida recorrente que 'a firmação da convicção do Tribunal, no que se refere à prova daquelas 'dores intensas', fundou-se, exclusivamente' nas declarações da própria Assistente'.
Porém, a sentença é clara ao indicar que a convicção do tribunal, relativamente às dores intensas sofridas pela a assistente, assentou não só nas suas declarações, mas também nas declarações da testemunha (...), marido da assistente e que com a mesma vivia, e de (…), motorista da ambulância e que por diversas vezes transportou a assistente ao hospital e assistiu às queixas da mesma.
A prova testemunhal, que continua a ser fatalmente, no nosso sistema processual penal, considerada a “prova rainha” é uma prova sobejamente falível, deteriorável pelo decurso do tempo e facilmente contaminada com as demais circunstâncias que envolvem o modo como cada ser humano estriba a forma de elaborar o seu processo de entendimento da realidade
Por isso o Tribunal a quo, ao apreciar a prova e ainda que o tenha de fazer de uma forma lógica e racional, sempre segundo as regras da experiência comum, soube dosear a capacidade de analisar os factos relatados em julgamento, com as provas técnicas (documentais) obtidas legalmente.
Assim, o que a recorrente pretende é pôr em crise o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art. 127.º do C.P.Penal e aí, se diz que «... a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente».
E embora este Tribunal da Relação tenha poderes de intromissão em aspectos fácticos, e que são os referidos no art. 410.º, n.°s 2 e 3 do C. P. P., não pode sindicar a valoração das provas feitas pelo colectivo em termos de o criticar por ter dado prevalência a uma em detrimento de outra.
A garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência -- visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto.
E na formação dessa convicção entram, necessariamente, elementos que em caso algum podem mesmo ser importados para a gravação da prova por mais fiel que ela seja das incidências concretas da audiência.
Na formação da convicção do juiz não intervêm apenas factores racionalmente demonstráveis, referindo-se a relevância que têm para a formação da convicção do julgador «elementos intraduzíveis e subtis», tais como «a mímica e todo o aspecto exterior do depoente» e «as próprias reacções, quase reacções, quase imperceptíveis, do auditório» que vão agitando o espírito de quem julga (Castro Mendes, Direito Processual Civil, 1980, vol. III, pág. 211, para acrescentar depois, a págs. 271, que «existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas podem ser percepcionados, apreendidos, interiorizados ou valorizados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção dos julgadores»).
O que é necessário e imprescindível é que, como se afirmou atrás, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado».
E convém referir que tendo o colectivo formado a sua convicção com provas não proibidas por lei prevalece a convicção que da prova teve àquela que formulou a Recorrente. Esta é irrelevante.
Finalmente, realçamos a afirmação da sentença recorrida de que “ … em direito penal não releva a possibilidade de concorrência ou repartição de culpas bastando que exista contribuição nessa culpa para o agente poder ser responsabilizado pelo facto. Num tal plano, a questão seria relevante para discutir se a arguida deveria ser a única arguida mas não para discutir se ela própria o devia ser. Aceitamos e compreendemos também que a presença de pessoa encarregada de tais funções se assume como elemento de vital importância na realização de uma cirurgia e a dificuldade que resulta para o cirurgião de ter se ser também ele a assumir o controlo dessas funções e que nessa medida existem também responsabilidades da própria instituição quando, por omissão, não assegura a presença de pessoa encarregue ao exercício de funções tão importantes ao acto cirúrgico.”.
É que “ sob a pena de trair a confiança que os doentes em nós depositam, não podemos pactuar com soluções economicistas que ponham em risco a sua saúde ou mesmo a sua vida. Porque, no mundo actual, sobretudo quando a medicina pública vem prevalecendo sobre a medicina privada, temos a responsabilidade moral de nos assumirmos também como advogados de defesa dos nossos doentes, para que por eles não venhamos a ser responsabilizados .
Tudo o mais que se pretendesse fazer investigado ou vertido neste acórdão, era acessório ao themma.
III.
1.º A sentença recorrida fez rigorosa apreciação e valoração da prova produzida em audiência de julgamento, pelo que não justificava a critica que com a sua impugnação a recorrente lhe dirige.
2.º Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso, confirmando-se a sentença recorrida.
3.º Custas a cargo da recorrente, fixando a taxa de justiça em 5 UC’s com 1/3 de procuradoria e legal acréscimo.
Lisboa,
Elaborado e computador e revisto pelo 1º signatário.