I – No que respeita à aplicação da lei no tempo, as recentes alterações do Código Penal e do Código de Processo Penal procuraram edificar um regime que, não criando «uma enormíssima perturbação na ordem dos tribunais judiciais», respondesse às preocupações daqueles que consideravam inconstitucional a solução anteriormente consagrada no Código Penal.
II – Nesse sentido, a nova redacção do Código Penal eliminou o último período do n.º 4 do artigo 2º, através do qual se salvaguardava o caso julgado, e acrescentou a esse número uma segunda parte que dispõe que «se tiver havido condenação, ainda que transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos penais logo que a parte da pena que se encontrar cumprida atinja o limite máximo da pena prevista na lei posterior».
III – Por sua vez, a nova redacção do Código de Processo Penal passou a contar com um novo artigo, o 371º-A, que estabelece que «se, após o trânsito em julgado da condenação mas antes de ter cessado a execução da pena, entrar em vigor lei penal mais favorável, o condenado pode requerer a reabertura da audiência para que lhe seja aplicado o novo regime».
IV – Da conjugação destas alterações resulta que o juiz do tribunal da condenação deve, num primeiro momento, oficiosamente e por mero despacho, verificar se a pena aplicada ultrapassa o limite máximo da pena prevista para o crime pela lei nova.
V – Se tal acontecer, deve reduzir a pena aplicada a esse limite, determinando de imediato, se for o caso, a cessação da sua execução e dos seus efeitos penais.
VI – Caso a pena concreta não ultrapasse aquele limite, confere-se ao arguido o direito de requerer a reabertura da audiência para que o tribunal que nesse momento seja o competente, depois de assegurar o contraditório e tendo em conta, pelo menos como regra, apenas os factos considerados assentes na sentença ou acórdão condenatórios antes proferidos, possa determinar a nova pena atendendo às disposições estabelecidas pela lei que, em abstracto, se apresenta como mais favorável.
VII – Esse direito não é conferido a todos os condenados sempre que ocorrer alguma alteração da lei penal mas apenas àqueles cuja situação possa, em abstracto, ser favorecida pela alteração introduzida.
VIII – A reabertura tem apenas em vista a determinação da nova sanção e não propiciar qualquer nova discussão sobre a questão da culpabilidade.
IX – A decisão de reabertura não implica, nem sequer indicia, que o tribunal venha efectivamente a substituir a pena de prisão que foi aplicada ao arguido. Esse é um juízo da competência do tribunal de julgamento e não do juiz titular do processo, o que apenas pode ser formulado depois de reaberta a audiência e de assegurado o exercício do contraditório.
Proc. 799/08 3ª Secção
Desembargadores: Carlos Almeida - Telo Lucas - -
Sumário elaborado por João Vieira
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Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa
I – RELATÓRIO
1 – O arguido R. foi julgado na 8ª Vara Criminal de Lisboa e aí condenado, por acórdão de 2 de Novembro de 2006, como autor de um crime de tráfico de droga p. e p. pelo n.º 1 do artigo 21º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de 4 anos e 2 meses de prisão (fls. 160 a 168).
No dia 15 de Novembro de 2007, depois do trânsito em julgado daquele acórdão e da entrada em vigor da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, o arguido requereu a reabertura da audiência «de acordo com o disposto no artigo 371º-A do Código de Processo Penal para aplicação retroactiva e eventual da lei penal mais favorável» (fls. 206 e 207).
Apreciando esse requerimento, o sr. juiz proferiu o despacho que se transcreve:
«Dispõe o artigo 371.º-A do Código de Processo Penal que 'se, após o trânsito em julgado da condenação mas antes de ter cessado a execução da pena, entrar em vigor lei penal mais favorável, o condenado pode requerer a reabertura da audiência para que lhe seja aplicado o novo regime'.
Na sua interpretação mais ampla, esta disposição legal permitiria, sem restrições, aos condenados, com condenação já transitada em julgado, o pedido de reabertura da audiência com vista à aplicação de um novo regime, pois o carácter concretamente mais favorável do regime só pode resultar de um juízo final e não de qualquer convicção apriorística (sem prejuízo do dever do arguido fundamentar em que se pode traduzir a aplicação do regime novo de forma mais favorável do que o já aplicado).
Contudo, há que atender a que na mesma altura em que entrou em vigor a mencionada disposição do Código de Processo Penal (15 de Setembro de 2007), começou a vigorar uma nova redacção do Código Penal que inclui a regulação anterior de que 'o facto punível segundo a lei vigente no momento da sua prática deixa de o ser se uma lei nova o eliminar do número das infracções; neste caso, e se tiver havido condenação, ainda que transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos penais' (artigo 2º, n.º 2) e a alteração de que 'quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável; se tiver havido condenação, ainda que transitada em julgado, cessam a execução os seus efeitos penais, logo que a parte da pena que se encontrar cumprida atinja o limite máximo da pena prevista na lei posterior' (artigo 2º, n.º 4).
A conjugação entre as mencionadas normas penais e processual penal não é absolutamente clara, pois a norma processual é de um teor irrestrito, o que já não acontece com as normas substantivas que constam do Código Penal.
É fácil verificar que o Código Penal apenas dispõe que cessam a execução de uma condenação penal transitada em julgado, bem como os seus efeitos penais quando a conduta for descriminalizada ou quando o condenado tiver cumprido o quantum da pena correspondente ao limite máximo abstractamente aplicável à sua conduta de acordo com lei posterior, se esta lhe for mais favorável.
É verdade que no artigo 2º, n.º 4, 1.a parte, do Código Penal, se dispõe que na aplicação da lei penal no tempo é sempre escolhido o regime que concretamente se mostrar mais favorável. Mas esta disposição geral é, logo de seguida, complementada por uma outra (artigo 2º, n.º 4, 2.a parte, do Código Penal) em que se especifica que 'se tiver havido condenação, ainda que transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos penais, logo que a parte da pena que se encontrar cumprida atinja o limite máximo da pena prevista na lei posterior'.
Ora, esta segunda parte da disposição (que foi introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro) refere-se especificamente ao caso de existir uma condenação, ainda que transitada em julgado, situação em que só cessam a execução e os seus efeitos penais logo que a parte da pena que se encontrar cumprida atinja o limite máximo da pena prevista na lei posterior.
Não é possível ignorar a regulação constante da 2.a parte do artigo 2º, n.º 4, do Código Penal, pois ela é específica para as situações em que já existe uma condenação (afastando-se os casos em que o facto deixou de ser punível, pois estas situações estão logo reguladas no artigo 2º, n.º 2, do Código Penal).
Assim, o Código Penal só impõe a aplicação do regime penal que concretamente se mostrar mais favorável até à condenação transitada em julgado, porque após o trânsito em julgado da decisão condenatória apenas cessam a execução e os efeitos da condenação penal quando a parte da pena que se encontrar cumprida atinja o limite máximo da pena prevista na lei posterior.
Em rigor, não é possível sustentar que quer o disposto no artigo 2º, n.º 2, o Código Penal (descriminalização da conduta), quer o disposto no artigo 2º, n.º 4, 2.a parte, do Código Penal (cumprimento de pena correspondente ao máximo actualmente permitido) são de aplicação automática, pois do que se trata sempre é da aplicação de um novo regime concretamente mais favorável (ou que se supõe ser) e não da aplicação automática de uma qualquer norma singular.
Mesmo nesses casos mostra-se necessário determinar o exacto enquadramento legal dos novos factos para se concluir que existiu uma descriminalização e não, por exemplo, uma substituição de incriminações, ou que o arguido já cumpriu uma pena correspondente ao máximo legalmente permitido em virtude da aplicação de uma lei posterior (onde os factos podem ter um diferente enquadramento e distinta penalidade).
Neste sentido, atente-se no caso a que se refere o Acórdão n.º 677/98 do Tribunal Constitucional (processo n.º 194/97), em que estava em causa a eventual descriminalização de uma conduta em virtude da desnecessidade de queixa pela aplicação de lei posterior a uma condenação já transitada em julgado; a nova lei penal, nesse caso, não determinou, de forma automática, o fim da condenação, tendo sido determinada pelo Tribunal Constitucional essa reapreciação (aliás, lido o mencionado Acórdão, desconhece-se se o arguido efectivamente beneficiou da lei posterior).
Assim, o artigo 371º-A do Código de Processo Penal tem de ser enquadrado pela lei substantiva que regula a aplicação da lei no tempo e especifica as soluções a adoptar em cada caso.
Encontrava-se na disponibilidade do legislador a opção pela forma como deveria ser feita a análise das situações em que já tinha sido encerrada a audiência de julgamento e o legislador optou, legitimamente, permitindo a reabertura da audiência.
Por isso, a faculdade de pedir a reabertura da audiência, estabelecida no artigo 371º-A, do Código de Processo Penal, justifica-se também, por maioria de razão, nos casos em que exista condenação não transitada em julgado, no tribunal onde a causa estiver ou for a final apreciada, pois aí, como se explana no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 240/97 (processo n.º 95/96), nenhuma razão há para que não se aplique o regime mais favorável, visto inexistir um interesse de relevo que obste à aplicação do regime mais favorável sem restrições, isto é, o da estabilidade e segurança jurídicas estabelecido pelo caso julgado.
De outra forma não se compreenderia o campo de aplicação, designadamente, do artigo 2º, n.º 4, 2.a parte, do Código Penal, pois o arguido sempre poderia pedir a aplicação do regime mais favorável considerando o disposto no artigo 371º-A do Código de Processo Penal e nunca se verificaria a previsão daquela norma do Código Penal (pretender que o artigo 2º do Código Penal funciona de modo automático, ao invés do art. 371º-A do Código de Processo Penal, não é aceitável, como foi referido, pela necessidade de aferir da aplicação concreta de todo um novo regime, como não é aceitável sustentar que através das diferenças entre ambas as disposições pode alguém ficar privado da liberdade, ou não, conforme seja diligente a requerer a aplicação de lei nova).
Note-se que a interpretação que se sustenta sobre o artigo 371º-A do Código de Processo Penal em conjugação com o disposto no artigo 2º do Código Penal – de permitir a reabertura da audiência em caso de condenação com trânsito em julgado apenas segundo a previsão desta última norma – não é vazia de referências constitucionais, tendo a questão que lhes está ínsita já sido objecto de análise na doutrina e na jurisprudência, designadamente na jurisprudência do Tribunal Constitucional; ou seja, a interpretação agora adoptada não o foi apenas por mera análise literal, antes considerou as posições jurídicas e interesses em causa, sobretudo segundo o já anteriormente decidido pelo Tribunal Constitucional.
Sobre a aplicação da lei penal no tempo já decidiu o Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 644/98 (processo n.º 43/97) que o disposto no artigo 29º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa – 'Ninguém pode sofrer pena ou medida de segurança mais graves do que as previstas no momento da correspondente conduta ou da verificação dos respectivos pressupostos, aplicando-se retroactivamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido' - não possui um alcance ilimitado, sendo definido, designadamente, em face do caso julgado (e, por isso, a anterior redacção do artigo 2º, n.º 4, do Código Penal, que ressalvava expressamente o caso julgado da aplicação retroactiva da lei penal mais favorável, não era inconstitucional).
E tal foi reconhecido porque se vislumbrou no caso julgado (não por si, mas enquanto reflexo da ordem, certeza e seguranças jurídicas – postulados do Estado de Direito Democrático), uma protecção constitucional que justificava a limitação da garantia estabelecida no artigo 29º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, ao abrigo do disposto no artigo 18º, n.º 2, da Lei Fundamental.
Nesse aresto afirmou-se que a protecção do caso julgado deveria ser vista como algo que tem consagração implícita na Constituição, embora não de forma absoluta (notando, por exemplo, o disposto no artigo 282º, n.º 3, da Constituição como demonstração quer dessa consagração, quer da sua limitação).
Assim, apesar de reconhecer a possibilidade de excepções, considerou o Tribunal Constitucional que 'Dessa prescrição extrai o Tribunal, conjugando-a com os artigos 2º, 111º, n.º 1, e 205º, n.º 2, que, efectivamente, a Constituição aceita como um valor próprio o respeito pelo caso julgado'.
E, na linha da argumentação acolhida, ainda no Acórdão n.º 644/98 do Tribunal Constitucional deixou-se expresso que o respeito do caso julgado constituía uma limitação da aplicação da lei penal mais favorável permitida de acordo com o disposto no artigo 18º da Constituição.
É que a essência do estatuído no artigo 29º, n.º 4, da Constituição é constituída pela aplicação retroactiva da lei penal mais favorável em casos de descriminalização ou de cumprimento já de uma pena superior ao máximo abstractamente aplicável à conduta em causa, isto é, o limite máximo que em cada momento se entende ser aceitável como limitação da liberdade das pessoas, tudo por respeito dos princípios da proporcionalidade (necessidade das penas) e da igualdade. E tais situações estão claramente salvaguardadas.
Os limites referidos (descriminalização de uma conduta e cumprimento da pena correspondente ao máximo abstractamente aplicável em cada momento) são precisamente as garantias dos cidadãos relativamente a qualquer punição por estabelecerem, de forma clara, a extensão do poder punitivo que é aceite em cada momento.
Por isso, quanto a tais limites se aceita que atinjam o caso julgado, em salvaguarda a liberdade das pessoas e da igualdade da sua situação face aos demais cidadãos que praticaram idênticas condutas posteriormente (ou que são julgados posteriormente).
Mas este raciocínio já não pode ser aceite sem restrições quanto aos restantes casos que já resultaram em condenação com trânsito em julgado.
Numa primeira linha de argumentação, é verdade que, como se afirma, novamente, no Acórdão n.º 644/98 do Tribunal Constitucional, 'a superveniência de uma lei penal cujo conteúdo pudesse, num juízo prospectivo, apontar para a possibilidade de, em concreto, ser mais favorável ao arguido, não obstante este já ter sido condenado por decisão judicial transitada, iria criar uma enormíssima perturbação na ordem dos tribunais judiciais'.
Como explica aquele Alto Tribunal (contra o entendimento expresso em alguns votos de vencido), a aplicação de um novo regime penal não é algo de aplicação automática, matemática ou aritmética; implica, isso sim, a realização de um efectivo novo julgamento, ainda que parcial.
Por um lado, o tribunal da condenação não tem de ter a mesma composição (parece mesmo que actualmente nenhum dos juízes do anterior julgamento pode intervir na reapreciação da causa face ao impedimento criado pela revisão do Código de Processo Penal operada pela Lei n.º 48/2007, de 28 de Agosto, quanto ao artigo 40º, c), desse Código).
Ainda que se defendesse que o tribunal da condenação tinha de ser o mesmo, quando tal já não pudesse acontecer (designadamente em caso de cessação de funções ou morte), apenas a integral repetição do julgamento permitiria a aplicação do novo regime.
Ainda que esteja em causa 'apenas' a aplicação de um novo regime penal nenhuma vinculação pode existir para o tribunal quanto ao anterior juízo de culpa, à sua medida ou à consideração dos fins das penas.
No limite estará o tribunal impedido de alterar os factos provados (mesmo a situação pessoal do arguido não poderá ser revista, pois apenas se prevê uma aplicação de um novo regime penal).
Não tendo o caso julgado protecção face a qualquer mudança da lei penal (só se conhecerá do seu carácter mais favorável em concreto depois da aplicação), estar-se-á a obrigar à repetida realização de um juízo sobre a tipicidade dos factos, grau de culpa, fins de prevenção que se faziam sentir, medida e espécie da pena concreta.
Nada obriga à manutenção de tais juízos, que serão feitos por diferentes aplicadores, a menos que o regime jurídico aplicável em concreto se mantenha absolutamente imodificado.
Por exemplo, com a introdução em lei nova de uma alteração na medida abstracta da pena correspondente a uma incriminação não se impõe a correspondente proporcionalidade na medida concreta; como, a propósito da ponderação de uma medida substitutiva de pena anterior, nada obriga ao respeito das considerações adoptadas na anterior condenação.
Mesmo nos casos em que o Tribunal da Relação ou o Supremo Tribunal de Justiça modificaram a decisão da 1.a instância, é duvidoso que este tribunal esteja vinculado a superiores considerandos (pois ou existe trânsito em julgado a respeitar ou não existe tal respeito).
Em síntese, aplicar um novo regime jurídico não consiste em mera aplicação de aritmética, neutra, mas sempre na realização de um novo julgamento (através da realização de um juízo de culpa, do seu grau, da ponderação humana sobre os fins das penas e da ponderação sobre o valor dos factos).
As razões expostas em primeira linha não se referem, em rigor, a questões de difícil praticabilidade (que são muitas), mas à inaceitabilidade da repetição de um juízo de culpa a propósito de qualquer mudança quantitativa ou qualitativa das penas abstractamente aplicáveis em cada caso concreto.
Não é que se esteja a pretender aplicar a esta situação o disposto no artigo 29º, n.º 5, da Constituição, mas a verdade é que a certeza e segurança jurídicas próprias de um Estado de Direito Democrático impõem que, mesmo a favor de um condenado, não se possa determinar constantemente a reapreciação de uma condenação (note-se o número de alterações só do actual Código Penal, sem ponderação de outra legislação penal).
De outra forma também não se compreende a restrição dos casos em que é possível a revisão das sentenças penais, até porque essa revisão poderia trazer para o condenado mais benefícios do que a aplicação de uma nova lei penal.
É verdade que por esta via existirá alguma diferença entre os condenados, com condenação transitada em julgado, antes e depois da entrada em vigor de uma nova lei penal.
Mas essa desigualdade é, por vezes, inultrapassável, justifica-se pela necessidade social da segurança e certeza jurídicas e tem como limite o que se entende ser, em cada momento, como necessário para um tipo de situação (a desigualdade é inultrapassável nos casos em que a pena cominada na nova lei apenas poderia ser aplicada retroactivamente; os casos mais comuns são, como o dos autos, os dos condenados a pena superiores entre 3 e 5 anos de prisão, cuja suspensão da execução se poderia equacionar face ao estipulado no artigo 50º do Código Penal, mas em que, a ser concedida tal suspensão, nos termos do disposto no artigo 51º, do Código Penal, os condenados ficariam obrigatoriamente sujeitos a regime de prova com a mesma duração da pena, mas esse período já decorreu em boa parte).
Numa outra linha de argumentação, também sustentada no Acórdão n.º 644/98, não é verdade que as leis de amnistia e os perdões (genéricos ou não) também violem o caso julgado; e a referência a essas figuras é útil precisamente porque permitem compreender o argumento anterior.
Para além do pensamento constante do mencionado aresto, e afastando os perdões singulares, porque esses, sim, põem em causa o princípio da igualdade sem qualquer fundamento de idêntico valor, é fácil verificar que as amnistias e perdões genéricos afectam o conteúdo de uma decisão já transitada em julgado, mas não afectam qualquer juízo concretizado a propósito da condenação e, dessa forma, não violam a protecção do caso julgado.
Ou seja, as amnistias e os perdões genéricos incidem directamente sobre o dispositivo de uma condenação e não sobre a ponderação judicial que levou a esse dispositivo.
Perdoar uma pena de prisão ou amnistiar uma infracção não exige a repetição de um qualquer juízo concreto de culpa e ponderação dos fins concretos das penas próprios de uma condenação, tão-só uma decisão genérica relativa ao resultado da condenação já transitada em julgado.
Pode uma lei nova, ao fazer variar os limites das penalidades correspondentes a uma incriminação, determinar a mesma variação (desde que seja favorável) para todos os condenados com decisão transitada em julgado, sem violação do princípio do caso julgado; e isto ocorre, precisamente, porque não se repete o julgamento ou a condenação (pode, por exemplo, uma lei alterar a pena que consta de uma incriminação que variava entre 30 dias e 5 anos de prisão e passou a variar entre 30 dias e 4 anos de prisão, e determinar que todos os condenados segundo essa incriminação vejam perdoado um quinto da sua pena de prisão).
Essa seria uma solução possível quanto ao regime legal da aplicação da lei no tempo, que a lei não estabelece, nem se estende à variação qualitativa das penas de acordo com novas leis.
Por conseguinte, entende este tribunal que a pretensão do condenado de reabertura da audiência para aplicação de uma lei nova mais favorável apenas para ponderação da natureza ou da pena ou da aplicação de uma pena substitutiva que não viola o limite máximo abstractamente fixado para a incriminação, não é legalmente admissível, designadamente ao abrigo do disposto no art. 371º-A, do Código de Processo Penal.
Em face do exposto, indefiro o requerido a fls. 206 e 207».
2 – O arguido interpôs recurso desse despacho (fls. 219 a 228).
A motivação apresentada termina com a formulação das seguintes conclusões:
1. «No caso concreto dos autos o recorrente foi condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21º do Decreto-Lei n.º 15/93 de 22 de Janeiro, na pena de 4 anos e meses de prisão.
2. As alterações introduzidas no Código Penal pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, resultantes da nova redacção do artigo 50º do Código Penal, concedem a possibilidade da suspensão da execução da pena aplicada em medida não superior a cinco anos.
3. O regime decorrente da nova redacção do artigo 50º do Código Penal é concretamente mais favorável ao arguido, pelo que terá de ser aplicado, automaticamente, nos termos do n.º 4 do artigo 2º do Código Penal, ou seja terá que ser equacionada, face a todo o circunstancialismo fáctico apurado, a possibilidade de ser suspensa a pena de prisão de quatro anos e três meses em que foi condenado.
4. Face ao disposto no artigo 371º-A do CPP, agora em vigor, mesmo após o trânsito em julgado da condenação mas antes de ter cessado a execução da pena, se entrar em vigor lei penal mais favorável pode o condenado requerer a reabertura da audiência para que seja aplicado o novo regime.
5. O douto despacho recorrido violou, por erro de interpretação, o disposto nos artigos 2º, n.º 4, e 50º do Código Penal, artigo 371º-A do CPP e artigo 29º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa.
Pelo que deverá ser revogado e substituído por outro que, em cumprimento do disposto no art. 371º-A do CPP, reabra a audiência para produção de prova e decisão sobre a possibilidade de suspensão da execução da pena aplicada.
Decidindo como peticionado, assim exercerão Vossas Excelências a melhor e mais esclarecida justiça».
3 – O Ministério Público respondeu à motivação apresentada defendendo a improcedência do recurso (fls. 230 a 238).
4 – Esse recurso foi admitido pelo despacho de fls. 240.
5 – Neste tribunal, o sr. procurador-geral-adjunto, quando o processo lhe foi apresentado, emitiu o parecer de fls. 245 a 247 no qual sustenta que o recurso merece provimento.
6 – Foi cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal.
II – FUNDAMENTAÇÃO
7 – De acordo com o n.º 4 do artigo 29º da Constituição «ninguém pode sofrer pena ou medida de segurança mais graves do que as previstas no momento da correspondente conduta ou da verificação dos respectivos pressupostos, aplicando-se retroactivamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido».
Pretendendo respeitar esta imposição constitucional, o Código Penal estabelece, no seu artigo 2º, n.º 2, que «o facto punível segundo a lei vigente no momento da sua prática deixa de o ser se uma lei nova o eliminar do número das infracções; neste caso e se tiver havido condenação, ainda que transitada em julgado, cessam a respectiva execução e os seus efeitos penais».
Acrescentava, porém, o n.º 4 da redacção originária desse mesmo preceito do Código que «quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, será sempre aplicado o regime que concretamente se mostre mais favorável ao agente, salvo se este já tiver sido condenado por sentença transitada em julgado».
A ressalva do caso julgado prevista neste último preceito suscitou controvérsia na doutrina e na jurisprudência nacionais.
Sobre essa questão, Jorge Miranda e Rui Medeiros sustentaram que o «limite do caso julgado, estabelecido na referida disposição do Código Penal, dev[ia] ser considerado inconstitucional» porque violava os princípios da igualdade dos cidadãos perante a lei e da mínima restrição possível dos direitos e liberdades fundamentais .
No mesmo sentido apontaram Gomes Canotilho e Vital Moreira quando defenderam que, «não estabelecendo a Constituição qualquer excepção, a aplicação retroactiva da lei penal mais favorável (despenalização, penalização menor, etc.) há-de valer, ao menos em princípio, mesmo para os casos julgados, com a consequente reapreciação da questão …) .
Maria Fernanda Palma, para além de acentuar que «o artigo 29º, n.º 4, não impõe uma restrição do princípio pelo caso julgado», considerou que a ressalva estabelecida no n.º 4 do artigo 2º do Código Penal era inconstitucional por violação do princípio da igualdade e da necessidade da pena .
Taipa de Carvalho defendeu também a inconstitucionalidade desse segmento do preceito dizendo que «impor um obstáculo à aplicação retroactiva de uma lei que considera como necessária e suficiente, para a tutela dos bens jurídico-penais, uma pena mais leve significa restringir, desnecessariamente, um direito fundamental» .
Em sentido contrário, Figueiredo Dias pronunciou-se pela conformidade constitucional da restrição do caso julgado contida na parte final do n.º 4 do citado artigo 2º, dizendo, porém, que tal não significava que «a mesma não [pudesse] ser eliminada ou restringida, fruto de uma nova opção legislativa».
A legitimidade constitucional dessa restrição era também sustentada pelo Supremo Tribunal de Justiça e, se bem que não em toda a sua extensão , pelo Tribunal Constitucional, embora essa posição contasse com a clara oposição de uma parte dos juízes deste último tribunal .
A descrita controvérsia levou a que o legislador de 2007 tivesse procurado resolver esse problema.
Na «Exposição de Motivos» da Proposta de Lei n.º 98/X , que esteve na origem da Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, diploma que alterou o Código Penal, disse-se que com as alterações propostas se pretendia reforçar «a aplicação retroactiva da lei mais favorável, em cumprimento do disposto no artigo 29º, n.º 4, da Constituição». «Assim, mesmo após o trânsito em julgado da sentença condenatória, cessarão a execução e os efeitos penais quando o arguido já tiver cumprido uma pena concreta igual ou superior ao limite máximo da pena prevista em lei posterior (artigo 2º, n.º 4). Esta solução é materialmente análoga à contemplada no n.º 2 do artigo 2º para a hipótese de lei nova descriminadora ou despenalizante e a sua efectivação prescinde de uma reponderação da responsabilidade do agente do crime à luz do novo regime sancionatório mais favorável».
Por sua vez, na «Exposição de Motivos» da Proposta de Lei n.º 109/X que, como se sabe, esteve na origem da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, que alterou o Código de Processo Penal, dizia-se, ao fundamentar a solução contida no novo artigo 371º-A, que se prescrevia «a reabertura de audiência para aplicar novo regime mais favorável ao condenado sempre que a lei penal mais favorável não tenha determinado a cessação da execução da pena». Acrescentava-se que «esta solução é preferível à utilização espúria do recurso extraordinário de revisão ou à subversão dos critérios de competência funcional (que resultaria da atribuição de competência para julgar segundo a nova lei ao tribunal de execução de penas)».
Deste resumido historial resulta, com grande clareza, que as alterações legislativas introduzidas nesta matéria pelas Leis n.ºs 48/2007, de 29 de Agosto, e 59/2007, de 4 de Setembro, procuraram edificar um regime que, não criando «uma enormíssima perturbação na ordem dos tribunais judiciais », respondesse às preocupações daqueles que consideravam inconstitucional a solução anteriormente consagrada no Código Penal.
Nesse sentido, a nova redacção do Código Penal eliminou o último período do n.º 4 do artigo 2º, através do qual se salvaguardava o caso julgado, e acrescentou a esse número uma segunda parte que dispõe que «se tiver havido condenação, ainda que transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos penais logo que a parte da pena que se encontrar cumprida atinja o limite máximo da pena prevista na lei posterior».
Por sua vez, a nova redacção do Código de Processo Penal passou a contar com um novo artigo, o 371º-A, que estabelece que «se, após o trânsito em julgado da condenação mas antes de ter cessado a execução da pena, entrar em vigor lei penal mais favorável, o condenado pode requerer a reabertura da audiência para que lhe seja aplicado o novo regime» .
Da conjugação destas alterações resulta, a nosso ver, que o juiz do tribunal da condenação deve, num primeiro momento, oficiosamente e por mero despacho, verificar se a pena aplicada ultrapassa o limite máximo da pena prevista para o crime pela lei nova . Se tal acontecer, deve reduzir a pena aplicada a esse limite, determinando de imediato, se for o caso, a cessação da sua execução e dos seus efeitos penais.
Caso a pena concreta não ultrapasse aquele limite, confere-se ao arguido o direito de requerer a reabertura da audiência para que o tribunal que nesse momento seja o competente, depois de assegurar o contraditório e tendo em conta, pelo menos como regra, apenas os factos considerados assentes na sentença ou acórdão condenatórios antes proferidos, possa determinar a nova pena atendendo às disposições estabelecidas pela lei que, em abstracto, se apresenta como mais favorável .
Note-se que esse direito não é conferido a todos os condenados sempre que ocorrer alguma alteração da lei penal mas apenas àqueles cuja situação possa, em abstracto, ser favorecida pela alteração introduzida. Refira-se ainda que da inserção sistemática do artigo 371º-A resulta também com toda a clareza que a reabertura tem apenas em vista a determinação da nova sanção e não propiciar qualquer nova discussão sobre a questão da culpabilidade .
Quer isto dizer que, num caso como o dos autos, em que não houve alteração da moldura penal abstracta aplicável ao crime pelo qual o arguido foi condenado e em que lhe foi imposta uma pena de 4 anos e 2 meses de prisão – pena essa que, no momento da condenação, ao contrário do que hoje sucede (nova redacção dada ao n.º 1 do artigo 50º do Código Penal pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro), não podia ser substituída por pena suspensa – o arguido tem direito de requerer a reabertura da audiência para que se pondere a aplicação do novo regime.
A decisão de reabertura não implica, nem sequer indicia, que o tribunal venha efectivamente a substituir a pena de prisão que foi aplicada ao arguido. Esse é um juízo da competência do tribunal colectivo e não do juiz singular que apenas pode ser formulado depois de reaberta a audiência e de assegurado o exercício do contraditório.
Assim, e pelo sucintamente exposto, se decide revogar a decisão recorrida determinando-se que a mesma seja substituída por outra que designe data para a reabertura da audiência nos termos previstos no artigo 371º-A do Código de Processo Penal.
III – DISPOSITIVO
Face ao exposto, acordam os juízes da 3ª secção deste Tribunal da Relação em julgar procedente o recurso interposto pelo arguido R., revogando a decisão recorrida e determinando que a mesma seja substituída por outra que designe data para a reabertura da audiência nos termos previstos no artigo 371º-A do Código de Processo Penal.
Sem custas.
Lisboa, 6 de Fevereiro de 2008
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(Carlos Rodrigues de Almeida)
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(Horácio Telo Lucas)