I – A decisão do juiz de instrução quanto à suspensão provisória do processo pressupõe um controlo de legalidade e a formulação de um juízo quanto à suficiência da medida para realizar as exigências de prevenção que no caso se fazem sentir.
II – Por se tratar do exercício de um poder discricionário, não é admissível a impugnação da decisão do juiz de instrução no que respeita a este último juízo.
III – É, no entanto, recorrível o despacho na parte em que o juiz se pronuncia sobre a inadmissibilidade de uma determinada regra de conduta.
IV – Embora as injunções e regras de condutas não sejam necessariamente típicas, porque a alínea i) do n.° 2 do citado artigo 281° admite a imposição de qualquer outro comportamento especialmente exigido pelo caso, também é certo que tal formulação legal delimita, de alguma maneira, as injunções e regras de conduta oponíveis ao arguido.
V – A obrigação de «não praticar qualquer crime durante o período da suspensão» só seria admissível se consubstanciasse um comportamento especialmente exigido pelo caso, o que manifestamente não acontece.
VI – Na ausência de qualquer disposição legal que imponha ou admita o termo da medida e o prosseguimento do processo no caso de o arguido vir a praticar qualquer outro crime durante o período de suspensão, não pode o Ministério Público pretender obter esse efeito transformando a natureza de uma obrigação que impende sobre todos em qualquer circunstância e impondo-a ao arguido como se de um comportamento especialmente exigido pelo caso se tratasse.
Proc. 6525/07 3ª Secção
Desembargadores: Carlos Almeida - Telo Lucas - Pedro Mourão -
Sumário elaborado por João Vieira
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Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa
I – RELATÓRIO
1 – No dia 12 de Janeiro de 2007, durante a fase de inquérito do processo n.º 472/04.4PBSNT, foi proferido o despacho que se transcreve:
«Indiciam os presentes autos a prática pelo arguido A., em autoria material, de um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. p. pelo artigo 148°, n.º 1 do Código Penal.
Dispõe o artigo 281° do Código Processo Penal, que 'se o crime for punível com pena de prisão não superior a cinco anos ou com sanção diferente de prisão, pode o Ministério Público decidir-se, com a concordância do juiz de instrução, pela suspensão do processo, mediante a imposição ao arguido de injunções e regras de conduta, se se verificarem os seguintes pressupostos:
a) Concordância do arguido e do assistente;
b) Ausência de antecedentes criminais do arguido;
c) Não haver lugar a medida de segurança de internamento;
d) Carácter diminuto da culpa; e
e) Ser de prever que o cumprimento das injunções e regras de conduta responda
suficientemente às exigências de prevenção que, no caso, se façam sentir'.
Compulsados os autos, conclui-se existirem fortes indícios da prática, pelo arguido A., em autoria material, de um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. p. pelo artigo 148°, n.º 1 do Código Penal, perpetrado em 23/06/2004.
No caso vertente, constata-se que no despacho em que se decidiu propor a suspensão provisória do processo, o Ministério Público propõe a aplicação ao arguido das seguintes injunções:
a) Entregar a quantia de € 200 (duzentos euros) à ofendida A.
b) Entregar a quantia de € 100 (cem euros) à instituição de solidariedade 'Casa Seis', sita em Mira Sintra.
c) Não praticar qualquer crime durante o período de suspensão provisória do processo - seis meses.
A este propósito, cumpre, no entanto, referir que a injunção de não cometer qualquer ilícito de natureza penal no decurso de certo prazo não é uma injunção válida para o efeito do disposto no artigo 281° do Código Processo Penal, uma vez que mediante a aplicação de uma injunção desta natureza apenas se estaria a exigir ao arguido um comportamento que a lei exige a todo o cidadão, não um comportamento especialmente exigido pelo caso.
A injunção consiste na imposição ao arguido de um facere ou de um non facere, ou seja de uma conduta activa ou passiva que condicione a sua normal actividade. Quando se impõe ao arguido uma injunção na fase de inquérito, é necessário que ao arguido venha a ser imposto um comportamento especial, que há-de traduzir-se numa mínima privação da sua liberdade de comportamento, pois ao crime deve corresponder uma adequada retribuição sancionatória ao prevaricador – a este propósito, questão perfeitamente unívoca na doutrina e na jurisprudência, cfr., por todos, Ac. RL, de 11/06/1997, in CJ, XXII, t. 3, pp. 156.
Em consonância com o que antecede, por ser nosso entendimento não ser válida a terceira das injunções propostas pelo Ministério Público ('de não praticar qualquer crime durante o período de suspensão'), já que tal exigência é comum a todo e qualquer cidadão, não se traduzindo num comportamento ou regra de conduta especialmente exigido pelo caso concreto, não dou a minha concordância à suspensão provisória do processo pelo Ministério Público».
2 – O Ministério Público interpôs recurso desse despacho no dia 1 de Fevereiro de 2007.
A motivação apresentada termina com a formulação das seguintes conclusões:
1. «Em inquérito a correr termos pela prática de crime de ofensa à integridade física por negligência, o Ministério Público decidiu-se pela oportunidade da aplicação do instituto da suspensão provisória do processo pelo período de seis meses, com a imposição ao arguido de três injunções: efectuar o pagamento de 200 euros à ofendida; entregar 100 euros à instituição de solidariedade social “Casa Seis”, em Mira Sintra; não incorrer o arguido na prática de qualquer ilícito criminal durante o período da suspensão.
2. O Mmo. Juiz de Instrução indeferiu a aplicação ao caso em apreço do instituto da suspensão provisória do processo com fundamento em que “…a injunção de não cometer qualquer ilícito de natureza penal no decurso de certo prazo não é uma injunção válida para o efeito do disposto no Artigo 281º do Código de Processo Penal”.
3. Encontram-se reunidos todos os pressupostos previstos pelo Artigo 281º, n.º1 para que seja aplicada a suspensão provisória do processo.
4. As injunções propostas com vista à aplicação do referido instituto não colidem com a dignidade do arguido e foram pelo mesmo aceites.
5. A concordância do Juiz de Instrução para a aplicação do referido instituto depende de estarem reunidos os pressupostos previstos pelo n.º 1 daquele dispositivo legal, e da não aplicação ao arguido de injunções e regras de conduta que possam ofender a sua dignidade.
6. A intervenção do Juiz de Instrução quanto à suspensão provisória do processo é, assim, uma intervenção de mera fiscalização dos pressupostos da suspensão, incluindo a legalidade e a adequação da medida proposta e da inoponibilidade de injunções e regras de condutas violadoras da dignidade do arguido.
7. O Mmo. Juiz de Instrução, para além de não efectuar qualquer apreciação acerca da reunião dos pressupostos para aplicação da suspensão provisória do processo, pronunciou-se única e exclusivamente relativamente a uma das injunções propostas, que considera não poder constituir uma verdadeira injunção.
8. Não se tratando de injunção ou regra de conduta ofensiva à dignidade do arguido, entendemos não poder o Mmo. Juiz de Instrução decidir pela inadmissibilidade dessa injunção.
9. A posição demonstrada nos autos pelo Mmo. Juiz de Instrução não é fundamento de discordância para a aplicação daquele instituto processual.
10. Já por várias vezes a recorrente propôs injunção semelhante em sede de suspensão provisória do processo, não tendo existido anteriormente por parte do mesmo Juiz de Instrução qualquer discordância na aplicação da mesma.
11. A intervenção do Mmo. Juiz de Instrução vai para além do permitido pelo Artigo 281º, n.º 1 do Código de Processo Penal.
12. O despacho no qual o Mmo. Juiz nega concordância para a aplicação da suspensão provisória do processo pelo motivo invocado é, pois, ilegal, na medida em que se mostram reunidos todos os pressupostos legais para o efeito e nenhuma das injunções propostas é ofensiva da dignidade do arguido.
13. Tal despacho deverá ser revogado e substituído por outro que conceda a sua concordância à suspensão provisória do processo nos termos definidos pelo Ministério Público».
3 – Esse recurso foi admitido em 2 de Fevereiro de 2007 (fls. 15).
4 – O arguido respondeu à motivação apresentada manifestando concordância com o Ministério Público (fls. 24).
5 – Neste tribunal, o sr. procurador-geral-adjunto, quando o processo lhe foi apresentado, apôs nele o seu visto.
II – FUNDAMENTAÇÃO
6 – Dispõe o corpo do n.° 1 do artigo 281° do Código de Processo Penal que «se o crime for punível com pena de prisão não superior a 5 anos ou com sanção diferente da prisão, pode o Ministério Público decidir-se, com a concordância do juiz de instrução, pela suspensão do processo, mediante a imposição ao arguido de injunções e regras de conduta», se se verificarem os pressupostos que são enunciados nas diversas alíneas dessa mesma disposição legal.
Os n.°s 2 e 3 desse mesmo preceito delimitam as injunções e regras de conduta oponíveis ao arguido.
Antes de entrarmos propriamente na apreciação do recurso interposto pelo Ministério Público importa caracterizar os poderes atribuídos por esta disposição ao juiz de instrução, o que é necessário para saber se a decisão por ele proferida é susceptível de impugnação.
Ora, quanto a este ponto, temos para nós que a decisão do juiz de instrução pressupõe um controlo de legalidade, em que ele verifica se se encontram reunidos os pressupostos enunciados nas alíneas a) a d) do n.° 1 do artigo 281° do Código de Processo Penal e se são legalmente admissíveis as injunções e as regras de conduta propostas, e a formulação de um juízo quanto à suficiência da suspensão nos termos indicados para realizar as exigências de prevenção que no caso se fazem sentir [alínea e) do n.° 1 do citado artigo 281°].
Se consideramos que, por se tratar do exercício de um poder discricionário, não é admissível a impugnação da decisão do juiz de instrução no que respeita a este último juízo, já o mesmo não acontece quando, como no caso presente, se pretende discutir a admissibilidade legal de uma determinada regra de conduta .
Daí que entendamos que nada obsta à apreciação do presente recurso.
7 – Dito isto, vejamos então se é ou não legalmente admissível a imposição da indicada regra de conduta.
Sobre essa matéria deve-se dizer que, embora as injunções e regras de condutas não sejam necessariamente típicas, porque a alínea i) do n.° 2 do citado artigo 281° admite a imposição de qualquer outro comportamento, que não ofenda a dignidade do arguido, especialmente exigido pelo caso, também é certo que tal formulação legal delimita, de alguma maneira, as injunções e regras de conduta oponíveis.
Porque assim é e porque a obrigação de «não praticar qualquer crime durante o período da suspensão» não é um dos comportamentos expressamente previstos nas alíneas a) a h) do n.° 2 do mencionado artigo 281°, uma tal regra só seria admissível se consubstanciasse um comportamento especialmente exigido pelo caso, nos termos da alínea i) desse número 2, o que manifestamente não acontece.
Não praticar qualquer crime é um dever que impende sobre todas as pessoas a todo o tempo e, por isso mesmo, não pode ser um comportamento especialmente exigido pelo caso, o que pressupõe uma específica adequação a uma situação particular.
Acrescente-se apenas que, na ausência de qualquer disposição legal que imponha ou admita o termo da suspensão e o prosseguimento do processo no caso de o arguido vir a praticar qualquer outro crime durante a suspensão, não pode o Ministério Público pretender obter esse efeito transformando a natureza de uma obrigação que impende sobre todos em qualquer circunstância e impondo-a ao arguido como se de um comportamento especialmente exigido pelo caso se tratasse.
Resta-nos dizer que, se não era isso que especificamente se pretendia e se não era isso que condicionava a decisão de suspender o processo, não vemos que não possa o Ministério Público decidir suspendê-lo agora nas condições implicitamente aceites pelo sr. juiz de instrução e pelo arguido.
III – DISPOSITIVO
Face ao exposto, acordam os juízes da 3ª secção deste Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público.
Sem custas.
Lisboa, 18 de Julho de 2007
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(Carlos Rodrigues de Almeida)
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(Horácio Telo Lucas)
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(Pedro Mourão)