Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa
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    Jurisprudência da Relação Criminal
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 - ACRL de 21-03-2007   Prova pericial. Audiência de julgamento. Leitura de declarações. Valoração da prova.
I – O relatório pericial, para poder ser tido em conta para a formação da convicção do tribunal, deve ser lido na audiência.
II – Se a perícia se destinar a avaliar a credibilidade das declarações, podem ser formuladas perguntas ao perito sobre o relato dos acontecimentos feito perante ele pelo examinado e sobre as divergências entre esse relato e as declarações prestadas por essa mesma pessoa na audiência.
III – Se entre esse relato e as declarações prestadas pelo examinado na audiência existirem divergências, pode ser pedido ao declarante que explique essas divergências.
IV – A narração constante da perícia e as declarações sobre ela prestadas pelo perito e pelo examinado não podem, contudo, ser atendidas como prova positiva dos factos narrados.
Proc. 10524/06 3ª Secção
Desembargadores:  Carlos Almeida - Telo Lucas - Pedro Mourão -
Sumário elaborado por João Vieira
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Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa



I – RELATÓRIO
1 – No decurso da audiência de julgamento do processo n.º 1718/02.9JDLSB, que se encontra a decorrer na 8ª Vara Criminal de Lisboa, o tribunal, através da sr.ª juíza presidente, no seguimento de requerimento formulado pelo arguido C. , ditou para a acta, em 25 de Setembro de 2006, o acórdão que, na parte relevante, se transcreve (fls. 39 633 a 39 644):
«I – A questão suscitada a fls. 36.098, 36.141 a 36.145, 36.147, 36.261 a 36.263, 36.601, 37.848 e 36.627 pelos arguidos é diferente da ora suscitada pelo Ilustre Mandatário do arguido C.
Com efeito, na altura e o que foi expressamente requerido pelos Ilustres Mandatários dos arguidos nos indicados requerimentos, foi uma confrontação dos assistentes I., L. e P. e das testemunhas R. e P. com eventuais declarações por si prestadas na fase de Inquérito e no âmbito de perícias médico-legais.
Quanto a tal questão o Tribunal deu os Despachos de fls. 36.264 e 36.602, relegando o conhecimento de tais questões para momento posterior, aquando da audição dos senhores Peritos, por entender que as questões suscitadas tinham a ver com declarações eventualmente prestadas no âmbito de prova pericial. Aliás, no sentido então defendido pelo Ilustre Mandatário dos assistentes.
No entanto, como já foi dado o contraditório quanto a tais questões e a Decisão desde já pode sanar e deixar prejudicada a questão ora suscitada pelo Ilustre Mandatário do arguido Carlos Cruz, o Tribunal vai desde já proferir Despacho quanto à mesma.
II – 1. A fls. 36.098 o arguido H., invocando o disposto no artigo 345°, n.º 3, por remissão para o 346°, n.º 2, do Código de Processo Penal, requereu ao Tribunal que o Assistente I. fosse confrontado com o auto de perícia de fls. 69, do Apenso CC e fls. 50, do 1° vol., do Apenso CG, para que o Assistente confirmasse se o texto em itálico corresponde efectivamente às declarações por ele prestadas e, na afirmativa, que as explicasse, tendo em atenção as declarações que estava a prestar em audiência de julgamento.
A fls. 36.141 a 36.145, o arguido J. subscreveu o requerido pelo arguido H. a fls. 36.098. Acrescentou argumentos, pronunciando-se no mesmo requerimento e globalmente pelos mesmos fundamentos, quanto à irregularidade arguida a fls. 35.928 a 35.929 pelo arguido C.
A fls. 36.145 a 36.147 a arguida M. subscreveu o requerido pelo arguido H. a fls. 36.098.
A fls. 36.147 o arguido J. e a fls. 36.147 o arguido C. subscreveram o requerido pelo arguido H. a fls. 36.098 e os fundamentos alegados pelo arguido J. a fls. 36.141 a 36.145, bem como pela arguida M. a fls. 36.145.
O Ministério Público pronunciou-se a fls. 36.140, fundamentando e opondo-se ao requerido.
1.1. A fls. 36.261 a 36.263, durante a tomada de declarações ao Assistente L., o arguido C. requereu ao Tribunal a possibilidade de confrontar o Assistente com tudo o que consta de um relatório pericial, de perícia feita ao Assistente.
A fls. 36.263, os Assistentes 'C. e demais Assistentes' pronunciaram-se quanto ao requerido, aderindo à posição já assumida pelo Ministério Público a fls. 36.260 e 36.261 e requerendo ao Tribunal, fundamentando, que conhecesse do requerido – da possibilidade de confrontação dos assistentes com declarações por si prestadas em perícia de que foram objecto –, após a audição dos Senhores Peritos.
1.2. Por Despacho de fls. 36.264 o Tribunal, por entender que as questões suscitadas a fls. 36.098 e a fls. 36.261, tinham a ver com declarações eventualmente prestadas no âmbito de prova pericial, sendo relevante para a ponderação e decisão da questão suscitada pelos arguidos o conhecimento dos pressupostos em que foram fundadas as conclusões das perícias em causa – aspecto também realçado pelo Ilustre Mandatário dos Assistentes –, relegou o conhecimento da questão para momento posterior, aquando da audição dos Senhores Peritos.
Determinou, assim, o prosseguimento da audiência sem a confrontação do assistente com declarações eventualmente prestadas por si em perícia médica.
1.3. A fls. 36.601, durante a tomada de declarações ao Assistente P., o arguido C. requereu ao Tribunal que lhe fosse permitida a colocação de questões ao Assistente, sobre o conteúdo do relatório pericial de perícia de que o assistente fora objecto, concretamente sobre as declarações prestadas pelo Assistente aos Senhores Peritos.
1.3.1. Por Despacho de fls. 36.602 – e no sentido do despacho que fora proferido a fls. 36.264, isto é, por entender prévio ao conhecimento do requerido pelos Arguidos, o pedidos de esclarecimentos aos Senhores Peritos, quanto aos pressupostos que levaram à “Conclusão” das Perícias que subscreveram –, o Tribunal determinou a continuação do pedido de esclarecimentos ao Assistente P., mas sem a sua confrontação com declarações eventualmente prestadas por si no âmbito de uma perícia médica.
Na sequência do despacho que antecede, a fls. 36.602 o Ministério Público pronunciou-se quanto ao requerido a fls. 36.601 pelo Arguido C.
1.4. A fls. 37.484 e durante a inquirição da testemunha R., o arguido C. – e na sequência de idênticos requerimentos já apresentados quanto a Assistentes – requereu ao Tribunal que, em momento oportuno, lhe fosse permitido confrontar a testemunha R. com declarações por este prestadas em perícia médica de que fora objecto.
1.5. A fls. 37.627 e durante a inquirição da testemunha P., os arguidos C. e J. requereram ao Tribunal – após a decisão que venha a ser tomada pelo Tribunal, quanto a requerimentos idênticos já formulados –, a confrontação da testemunha com declarações por si prestadas em perícia médica de que foi objecto.
Passamos a conhecer e decidir.
2. Tal como já defendido no Despacho de fls. 33.696 a 33.703, o Estado, enquanto titular do “ius puniendi”, tem interesse em que os culpados de actos criminosos sejam punidos. No entanto, só tem interesse em punir os verdadeiros culpados. '(...) O Estado está, por isso, igualmente interessado em garantir aos indivíduos a sua liberdade contra os perigos de injustiças. Está interessado, desde logo, em defendê-los «contra agressões excessivas da actividade encarregada de realizar a justiça penal» (...). Existe um dever ético e jurídico de procurar a verdade material. Mas existe também um outro dever ético e jurídico que leva a excluir a possibilidade de empregar certos meios na investigação criminal (...).' (cfr. AC. TC n.º 578/98, DR. 26/2/99, II série, pag. 2.950).
Daí que a verdade material não possa conseguir-se a qualquer preço, não dispondo a autoridade judiciária – que nesta fase processual do julgamento é o Juiz –, de um poder ilimitado de produção de prova: o juiz, dentro do “thema probandi”, está sujeito aos princípios instituídos pelo legislador ordinário e constitucional, para a obtenção da prova nas diferentes fases processuais. Isto para que a verdade processual corresponda ao que ontologicamente está subjacente à actividade punitiva dos Estado: para que seja '... o resultado probatório processualmente válido, que sustenta a convicção de que certa alegação de facto é justificavelmente aceitável como pressuposto da decisão, por ter sido obtida por meio processualmente válido (...).' ( cfr. G. Marques Silva, Curso Processo Penal II, 2a edição, Verbo, pag. 111).
Da conjugação dos artigos 355°, n.º 1 e 2 e 127°, do Código de Processo Penal e para o que à presente questão importa, resultam dois elementos estruturantes da actuação do juiz na fase processual do julgamento:
- proibição da valoração de provas que não sejam examinadas ou produzidas em audiência de julgamento, ressalvando da imediação as provas contidas em actos processuais cuja leitura seja permitida em audiência de julgamento (observando-se, neste caso, o disposto no artigo 356° e 357°, do Código de Processo Penal);
- e a valoração da prova de acordo com as regras da experiência, apreciada livremente pelo Tribunal.
O legislador ao consagrar nesta fase processual o princípio da concentração da prova na audiência de julgamento, da oralidade e da imediação, coloca limites ao modo como o Tribunal pode alcançar a verdade material e – porque a questão, neste segmento, foi suscitada pelos arguidos –, até onde o juiz do julgamento pode e deve ir quanto às condições da investigação do crime.
Está a definir, de forma clara, uma separação entre o momento do inquérito ou da instrução e o momento do julgamento, separação esta que decorre da estrutura acusatória do processo.
Ao juiz do julgamento compete assegurar que na fase do julgamento a verdade material não seja alcançada por métodos de aquisição da prova proibidos, por exemplo, artigo 126°, do Código de Processo Penal (aqueles que afectam a liberdade e formação da vontade de declaração, podendo consubstanciar, por exemplo, manipulação da vontade por indução da declaração, adulteração da capacidade de memória, indução de certo raciocínio por introdução de premissas ou de factos pré determinados aquando de um interrogatório).
Bem como compete assegurar que a prova que fundamente uma absolvição ou uma condenação (artigo 355°, do C.P.P.), aquela em relação à qual o Tribunal pode e vai formar determinada convicção, tenha sido adquirida sem violação dos procedimentos ou da forma que a lei impõe para a produção de tal meio de prova em concreto (por exemplo buscas, revistas, reconhecimentos, perícias, escutas, prova por declarações – proibição de valoração de provas).
2.1. Do artigo 32º da CRP e 237º do CPP, resulta que o direito de defesa do arguido e o exercício do contraditório estende-se a todos os meios de prova que nos termos do artigo 355°, do Código de Processo Penal, possam fundamentar a convicção do julgador quanto aos factos que constituem o objecto do processo.
No caso concreto os arguidos pretendem confrontar os assistentes ou testemunhas com declarações por si prestadas em Perícia e que constam dos autos, por entenderem que existem divergências ou discrepâncias entre o que então disseram aos Senhores Peritos e o que disseram em audiência de julgamento.
Pretendem com tal confrontação pôr em causa a credibilidade dos assistentes ou das testemunhas que proferiram tais declarações, bem como '... a idoneidade e bom fundamento da prova pericial revelada ...' ( cfr., por exemplo, as conclusões dos arguidos constantes de fls. 36.098, 36.141 a 36.145, 36.147 a 36.148).
A prova pericial está expressamente prevista na lei – artigo 127° e 151°, do Código de Processo Penal –, dizendo também a lei o modo como a mesma deve ser produzida – artigos 152° a 157°, 159° a 161°, do Código de Processo Penal.
Da conjugação dos artigos 152°, 153°, n.º 156°, 157°, n.º 1 e 2 e 99°, n.º 1 e 3, do Código de Processo Penal, as Perícias realizadas nos termos previstos no Código de Processo Penal consubstanciam um Auto.
O artigo 356°, do Código de Processo Penal, regula a leitura em audiência de julgamento de autos e de declarações. No que importa ao caso concreto, determina que:
- é permitida a leitura de 'Autos' de instrução ou de inquérito que não contenham declarações do arguido, do assistente, das partes civis ou das testemunhas (artigo 356°, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal);
- e é permitida a leitura de 'Declarações' dos assistentes e das testemunhas quando prestadas perante o Juiz, o Ministério Público ou os órgãos de polícia criminal, nas circunstâncias concretamente previstas nos n.ºs 2, 3, 4 e 5, do Código de Processo Penal.
Quanto à reprodução do conteúdo de declarações cuja leitura não é autorizada, a mesma só pode ocorrer nos casos previstos no artigo 356°, n.º 7 – sem prejuízo de situações que possam consubstanciar uma situação de 'reprodução do conteúdo de declarações', mas com regime específico, como é o caso, por exemplo, dos artigos 156°, n.º 4, 158° e 129° (quando aplicáveis), do Código de Processo Penal.
Ora diz o artigo 163°, do Código de Processo Penal, que o juízo técnico ou científico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador. No entanto tal presunção não se estende aos 'factos' em que se apoia tal juízo técnico ou científico.
Deste modo, permite e impõe o direito de defesa do arguido e o exercício do contraditório que o Tribunal, em audiência de julgamento, afira por um lado das circunstâncias em que os meios pré adquiridos de prova a que se refere o artigo 355°, do Código de Processo Penal – no caso concreto 'Perícias' - foram realizados em fase processual anterior; e, por outro, da veracidade e congruência dos pressupostos de facto que levaram à 'conclusão' de determinado juízo técnico ou científico constante de determinada perícia.
Tudo de forma a permitir pôr em crise o seu valor como meio de prova, pericial, tipificado e pré-adquirido.
Face a tudo o que ficou dito e passando para a decisão das duas vertentes que pode apresentar a questão suscitada pelos arguidos – a possibilidade de confrontação do assistente ou testemunha com declarações prestadas por si no âmbito de uma perícia perante o perito; e a valoração dessas declarações -, passo a transcrever (por entender que tal pode contribuir, embora parcialmente, para a decisão do que está em análise) o constante no ponto '5' (anotação a 'Relatórios Periciais') do acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, de 18/1/2006, P° 7071/2005-3:
' ...(5.) a transcrição das descrições dos factos feitas pelo demandante perante os peritos que realizaram as perícias médico legal e psicológicas só podem, no entender deste tribunal, ser atendidas no âmbito de cada uma dessas perícias para aferir da sua congruência e não como elementos autónomos valoráveis para a formação da convicção do tribunal uma vez que se trata, materialmente, de declarações não lidas no decurso da audiência (artigo 356° do Código de Processo Penal)... (cfr. www.dgsi.pt,, acórdão com identificação acima transcrita).
Assim, entendemos que no âmbito de cada Perícia, aquando do pedido de esclarecimentos aos Peritos e no momento do exercício do contraditório quanto a tal meio de prova, o Tribunal pode debruçar-se sobre o conteúdo das declarações prestadas pelos Assistentes ou testemunhas objecto de tais Perícias e, se considerar que tal é relevante para a descoberta da verdade, aferir como é que as perguntas foram feitas pelo Perito, que perguntas foram feitas, o que foi respondido, verificar da concordância ou adequação do que for esclarecido em audiência de julgamento pelo Perito, com o que está consignado como tendo sido dito pela alegada vítima e com o que a alegada vítima ou Testemunha, por sua vez, declarou em audiência de julgamento.
Após e se o Tribunal entender que o mesmo se revela necessário para a descoberta da verdade e valoração do meio de prova que está em causa, confrontar a pessoa objecto da perícia com facto (ou factos) que dos esclarecimentos do Perito resulte(m) ter(em) sido pressuposto do juízo técnico ou científico emitido pelo Perito.
Este o entendimento que se nos afigura compatível, do ponto de vista constitucional e do ponto de vista processual penal, do disposto nos artigos 32° da CRP, 237°, 355°, 127°, 151°, 152° a 157°, 159° a 161°, 99°, 163° e 356°, do Código de Processo Penal, com um processo de estrutura acusatória, onde vigora o princípio da imediação e do contra interrogatório em audiência de julgamento, os quais pretendem assegurar que a prova 'genuína' é a directamente produzida perante o Tribunal que vai decidir a causa.
Face ao enquadramento teórico que ficou enunciado, a Lei apenas permite ultrapassar os limites que de forma geral e abstracta determina, quando esteja em causa o efeito à distância de eventual vício de que padeça acto processual que tenha sido praticado em fase anterior, quando esteja em causa contaminação de meio de prova que possa ser usado em audiência de julgamento.
3. Mas, não sendo permitido ao Tribunal do Julgamento fazer uso livremente das declarações prestadas pelas alegadas vítimas na fase de inquérito perante um Perito, a não ser no âmbito da valoração dessa Perícia como meio de prova e no sentido acabado de decidir, fica comprometida a capacidade do Tribunal de proceder à descoberta da verdade material e à avaliação dos depoimentos que vierem a ser prestados em audiência de julgamento pelas alegadas vítimas?
O legislador, ao separar a fase da audiência de julgamento da fase do inquérito e da instrução, nos termos em que o fez no artigo 355°, do Código de Processo Penal, quis marcar uma clara divisão entre o processo intelectual que levou à formação da convicção que sustentou uma acusação ou uma pronúncia, do processo de formação da convicção na fase da audiência de julgamento que pode levar a uma condenação ou a uma absolvição.
E quis fazê-lo para garantia da defesa do arguido.
'(...) O acto de julgar é do tribunal, e tal acto tem a sua essência na operação intelectual da formação da convicção. Tal operação não é pura e simplesmente lógico-dedutiva (...) não é uma mera operação de opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis).
Para a operação intelectual contribuem regras, impostas por lei, como sejam as da experiência, a da percepção da personalidade do depoente (impondo-se por tal a imediação e a oralidade), a da dúvida inultrapassável (conduzindo ao principio “in dubio pro reo”).
A lei impõe princípios instrumentais e princípios estruturais para formar a convicção. (...) Só a partir da oralidade e imediação pode o juiz perceber os dados não objectiváveis atinentes com a valoração da prova.
A oralidade (...) permite ao Tribunal aperceber-se dos traços do depoimento, denunciadores da isenção, imparcialidade e certeza que se revelam por gestos, comoções e emoções, da voz, por exemplo.
A imediação que vem definida como a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de tal modo que, em conjugação com a oralidade, se obtenha uma percepção própria dos dados que haverão de ser a base da decisão.
(...) A censura quanto à forma de formação da convicção... terá de assentar na violação de qualquer um dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção.
Doutra forma, seria uma inversão das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão (...)' ( cfr. Ac. TC n° 198/2004, DR 2/6/04, II série, pag. 8544 e segs).
3.1. Do que antecede resulta que quem julga tem de o fazer com a prova produzida em audiência de julgamento, tal como o define o artigo 355°, do Código de Processo Penal e com respeito pelos princípios decorrentes do artigo 127°, do Código de Processo Penal.
A percepção do depoimento é conseguida com a imediação da prova.
É da confrontação global do conteúdo do depoimento com a forma como o mesmo foi prestado em audiência de julgamento – quer do ponto de vista da exteriorização por sinais físicos, quer da hesitação, certeza, comoção, distanciamento, forma de reacção a confrontação, sentido do depoimento ao longo de todas as instâncias –, que o Tribunal, pelos princípios instrumentais e estruturais a que tem de recorrer para a formação e fundamentação da convicção, enunciados no citado artigo 127°, do Código de Processo Penal, vai avaliar da liberdade da formação da vontade do depoente na declaração e, assim, da ocorrência, ou não, do facto que é objecto da prova, da intervenção de factores estranhos na formação da vontade da declaração.
Este dever tem que ser exercido nos termos definidos pela lei processual para a fase do julgamento, que derivam dos princípios constitucionais que consagram a estrutura acusatória do processo e o princípio da presunção de inocência, os quais (no que para a presente questão importa) estão determinados nos artigos 355°, 356°, 357° e 127°, do Código de Processo Penal.
O Tribunal só pode sindicar em audiência de julgamento os meios de prova da forma que a lei o determina.
O conhecimento das 'declarações» prestadas por um assistente ou testemunha mesmo no âmbito de uma Perícia e a sua confrontação, pode interferir no processo intelectual que levou determinada testemunha a fazer determinada declaração em audiência de julgamento, pode inquinar o depoimento prestado em audiência de julgamento e a afectar a espontaneidade das declarações e daí ser rodeado requisitos legalmente determinados.
Potencialmente pode estar-se a transmitir um vício de raciocínio para a declaração que estiver/estivesse a ser prestada em audiência, pois o declarante ou a testemunha estaria a reportar-se ao que lhe foi perguntado no âmbito da perícia e não ao que lhe estava a ser perguntado; a fazer um processo de reavivamento da memória não do facto que diz ter vivido ou presenciado, mas do facto que terá contado e como o terá contado perante o Perito; o que, por sua vez, tem ainda como pressupostos não a resposta a pergunta feita em audiência de julgamento, mas a pergunta feita pelo Perito.
Isto foi, no entendimento deste Tribunal, uma das consequências que o legislador também quis evitar ao consagrar o regime do artigo 355°, 356° e 357°, do Código de Processo Penal, o que é, como dissemos, decorrência do princípio do acusatório.
A convicção que o Tribunal venha a formar quanto aos factos objecto do processo será fundada, sempre, na valoração da prova produzida em audiência de julgamento, tal como o define o artigo 355°, do Código de Processo Penal e com recurso aos princípios decorrentes do artigo 127°, do Código de Processo Penal, pois legalmente está-lhe proibido agir de outra forma.
4. Face ao requerido, a todo o exposto e ao abrigo do disposto nos artigos 32° da CRP, 237°, 355°, 127°, 151°, 152° a 157°, 159° a 161°, 99°, 163° e 356°, do Código de Processo Penal, no âmbito de cada Perícia, aquando do pedido de esclarecimentos aos Peritos e no momento do exercício do contraditório quanto a tal meio de prova, o Tribunal pode debruçar-se sobre o conteúdo das declarações prestadas pelos Assistentes ou testemunhas objecto de tais Perícias e, se considerar que tal é relevante para a descoberta da verdade, aferir como é que as perguntas foram feitas pelo Perito, que perguntas foram feitas, o que foi respondido, verificar da concordância ou adequação do que for esclarecido em audiência de julgamento pelo Perito, com o que está consignado como tendo sido dito pela alegada vítima e com o que a alegada vítima ou Testemunha, por sua vez, declarou em audiência de julgamento.
Após e se o Tribunal entender que o mesmo se revela necessário para a descoberta da verdade e valoração do meio de prova que está em causa, confrontar a pessoa objecto da perícia com facto (ou factos) que dos esclarecimentos do Perito resulte(m) ter(em) sido pressuposto do juízo técnico ou científico emitido pelo Perito».

2 – O Ministério Público interpôs recurso desse acórdão (fls. 40 082 a 40 107).
A motivação apresentada termina com a formulação das seguintes conclusões:
1. Entendeu o Tribunal que as perícias realizadas nos termos previstos no Código de Processo Penal consubstanciam um Auto. Todavia, ao não levar em conta a expressão normativa do conceito, o despacho enveredou por uma lógica processual incompatível com a que, inevitável e diferentemente, resultaria da sua consideração enquanto tal.
2. Da conjugação dos artigos 99° e 169° (por remissão), do CPP, resulta que auto é o instrumento destinado a fazer fé quanto aos termos em que se desenrolaram os actos processuais a cuja documentação a lei obrigar..., que dele deve constar a descrição especificada das operações praticadas, da intervenção de cada um dos participantes processuais, das declarações prestadas, do modo como o foram e das circunstâncias em que o foram, dos documentos apresentados ou recebidos e dos resultados alcançados, de modo a garantir a genuína expressão da ocorrência, sendo equiparado a documento autêntico e considerando-se provados os factos materiais dele constantes enquanto a respectiva autenticidade ou a veracidade do seu conteúdo não forem, fundadamente, postas em causa.
3. Tal não significa, como está bem de ver, que, no caso das 'declarações' constantes das Perícias, o que se deva ter como provado seja o conteúdo, a substância das 'declarações', mas, tão só, que elas correspondem ao que efectivamente foi declarado. O mesmo se diga, de resto, quanto à descrição do modo como foram prestadas e às circunstâncias em que o foram.
4. Ao enunciar como desiderato, pela forma como entende alcançá-lo, pôr em crise o seu valor como meio de prova pericial, tipificado e pré-adquirido, o Despacho recorrido legitima procedimentos que lhe estão legalmente vedados, bem como incursões por elementos das Perícias que está impedido de trilhar, ao menos, enquanto as referidas autenticidade ou veracidade de conteúdos não tenham sido, fundadamente, postos em causa, o que, em bom rigor, diga-se, nem os próprios Arguidos fizeram.
5. A invocação da possibilidade de sindicar a idoneidade e bom fundamento da prova pericial, não só não é minimamente fundada em qualquer facto concreto que possa abalar a sua autenticidade (entendida esta como infra referido), como se constituí em mero elemento instrumental e secundário do desiderato, esse sim primordial, que é o confronto das 'declarações' prestadas pelos Assistentes no âmbito das Perícias a que foram sujeitos e a enfatização e conhecimento por parte do Tribunal das pretensas divergências ou discrepâncias alegadamente existentes entre elas e as que proferiram em audiência.
6. O objectivo dos Arguidos é claro e expressamente reconhecido pelo Despacho sob recurso: 'pôr em causa a credibilidade dos assistentes'.
Que não tanto das Perícias, sublinhe-se!
7. Tal não significa, como está bem de ver, que ao Tribunal fique vedada a possibilidade de sindicar as Perícias.
Para além de poderem ser postas em causa, nos termos já referidos (infra 4., in fine), as Perícias são sindicáveis relativamente ao mérito ou demérito científico que patenteiem, aos métodos que utilizem, indagando-se o modo como ocorreu cada uma delas, quais as etapas que a compuseram (entrevistas, realização de testes ou exames físicos, consulta de exames anteriores, documentação clínica ou judicial de que o Perito, porventura, se tenha socorrido), o que foi concretamente observado pelo Perito em cada uma dessas fases, qual a postura do examinado, bem como aferir se as perguntas foram feitas de forma aberta ou fechada, sobre que matéria foram os examinados questionados (se lhes foi perguntado ou não o nome dos seus abusadores, os locais onde ocorreram os abusos, as condições em que os mesmos ocorreram, as práticas sexuais a que foram sujeitos).
8. Ao Tribunal será ainda lícito verificar se o que o Perito consignou nos relatórios periciais que elaborou está de acordo com os esclarecimentos por si prestados em audiência, precisar conceitos ou termos utilizados (dando aos Peritos a oportunidade de os confirmarem ou corrigirem), tal como avaliar a maior ou menor qualificação e experiência de quem os levou a cabo.
9. Para além disso, e porque o mais lhe esteja vedado, o Tribunal e os Sujeitos Processuais sempre poderão sindicar as Perícias através dos meios processualmente adequados - depoimentos, juízos ou pareceres de Consultores Técnicos ou outros Peritos, podendo e devendo sê-lo, em último caso, pela realização de novas Perícias sempre que, fundamentadamente, aquelas sejam postas em causa.
10. Ora, tendo, entretanto, sido ordenadas, ou aprestando-se, aparentemente, o Tribunal, a ordenar a realização de novas Perícias, menos ainda se alcança o sentido do Despacho ora sob recurso, tanto mais que, como expressamente resulta do disposto no artigo 158°, n.º 1, do CPP, pode a autoridade judiciária, em qualquer altura do processo, determinar, oficiosamente ou a requerimento, quando isso se revelar de interesse para a descoberta da verdade, em alternativa, a convocação dos Peritos para prestarem esclarecimentos complementares, a realização de nova perícia, ou, a renovação da perícia anterior a cargo de outros ou outros Peritos.
11. A inclusão, no texto da norma (n.º 1, entre as a) e b)), da conjunção disjuntiva 'ou', é insofismável no que literalmente revela ter sido a intenção do legislador.
12. O Despacho recorrido não esclarece se a transcrição dos relatos feitos ao Perito pelos Examinados (Assistentes), são, ou não, de qualificar como 'declarações'. Seja como for, ao termo há-de corresponder uma dupla vertente, consoante se afira por um sentido formal ou por um sentido material (cfr. conceptualização infra).
13. Aferidos por esta distinção/precisão conceptual, os relatos, prestados aos Peritos, pelos Examinados, no âmbito das Perícias, não podem deixar de reputar-se como declarações, tão só, em sentido material, uma vez que, os relatos efectuados aos peritos não o foram perante uma das entidades com competência para a recolha de declarações/depoimentos, em sentido formal, não correspondem a um registo integral de tudo o que é declarado pelo examinado, obedecendo, o que é registado por parte da entidade que preside à diligência, à discricionariedade teleologicamente vinculada pela “legis artis”, servindo os trechos do que é relatado apenas como forma de ilustrar o seu conteúdo, sendo certo, ademais, que o examinado não reviu nem assinou tais relatos.
14. Questão diversa, mas que está intimamente conexionada, será a de saber se a disciplina do artigo 356º do Código de Processo Penal se aplica, tão só, às declarações em sentido formal, tão só às declarações em sentido material ou, a umas e a outras, deixando, assim, claro, se o referido regime é, ou não, aplicável, aos relatos que os examinados prestaram perante os peritos e que resultam dos respectivos relatórios.
15. O art. 356°, n.º 1, b), do CPP, trata da permissão de leitura de autos, independentemente da entidade que presidiu ao acto processual naquele contido.
Uma primeira e decisiva conclusão a inferir desta constatação é a de que a b), do n.º 1, se reporta a autos, a quaisquer autos, de Instrução ou de Inquérito. Que não contenham declarações do arguido, do assistente, das partes civis ou de testemunhas, tenham, ou não, sido presididas pelo Juiz, pelo Ministério Público ou por órgão de polícia criminal, admitindo-se, assim, implicitamente, que a recolha de declarações possa ter sido levada a cabo por entidade diversa daquelas, maxime, por um Perito, no âmbito de Perícias lavradas em Auto.
16. Por outro lado, o n.º 1, do artigo 356°, é precedido, no respectivo corpo, da expressão 'só' - 'Só é permitida a leitura em audiência de autos:' -, consagrando, assim, em primeira linha, um princípio de inclusão (estes autos e, apenas estes) e, correlativamente, um critério de exclusão (nenhum outro que não estes).
17. Daí que duas ilações se imponham:
- a primeira, de que a disciplina do artigo 356° do CPP é aplicável a qualquer Auto, de Instrução ou de Inquérito, na justa medida, e tão só nessa medida, em que contenha declarações do arguido, do assistente, das partes civis ou de testemunhas ;
- a segunda, de que o artigo 356° tanto se aplica a declarações em sentido formal como a declarações em sentido material.
18. O Prof. Cavaleiro de Ferreira (in Curso de Processo Penal, Vol. II, págs. 297 e ss.) definindo as três modalidades de Prova, em processo penal (a Prova Pessoal, a Prova Real e a Prova Pericial, faz corresponder a cada uma das quais correspondem modos de produção e de valoração próprios, chamando, ainda, a atenção para a frequente 'tendência ilegal para sub-rogar os peritos na apreciação total do feito penal'
O Despacho recorrido, salvo o devido respeito, confunde os modos de produção da Prova Pessoal e da Prova Pericial, violando, consequentemente, os princípios que devem nortear a valoração de uma e outra.
19. De onde resulta que, porque contidas em Auto (Pericial), levado a cabo na fase de Inquérito, o conteúdo das declarações dos Assistentes não possa ser lido (examinado) em audiência.
20. Acresce que, das disposições conjugadas dos artigos 350°, n.º 2 e (por remissão) 345°, n.º 3, do CPP, resulta que podem ser mostrados (ao Perito) quaisquer pessoas, documentos ou objectos relacionados com o tema da prova, bem como peças anteriores do processo, sem prejuízo do disposto nos artigos 356° e 357°. Por outras palavras, o Perito poderá examinar o relatório pericial e pronunciar-se sobre as questões que, a respeito do mesmo, lhe forem colocadas, excepto no que a declarações de arguido, assistente, partes civis ou testemunhas diga respeito.
21. O Despacho é parco, senão mesmo omisso, na caracterização do que sejam os factos', ou 'pressupostos de factos', que considera não integrarem o juízo técnico ou científico inerente à prova pericial que se presume subtraído à livre apreciação do julgador, limitando-se, de forma peremptória, que não, salvo o devido respeito, fundamentada, a consignar que a presunção contida no artigo 163°, n.º 1, do CPP, 'não se estende aos 'factos' em que se apoia tal juízo técnico ou científico'.
22. Acto contínuo, porém, o Tribunal, como que “per saltum”, conclui, sem melhor explicitação de premissas, ser-lhe lícito aferir, por um lado, das circunstâncias em que as Perícias foram realizadas, e, por outro, 'da veracidade' (?!) /e congruência dos pressupostos de facto que levaram à 'conclusão' de determinado juízo técnico ou cientifico constante de determinada Perícia. Tudo de forma a permitir pôr em crise o seu valor como meio de prova, pericial, tipificado e pré-adquirido'.
23. Mais à frente, fica a saber-se que tais 'factos', ou 'pressupostos de factos' mais não são, afinal, e em primeira linha, do que 'o conteúdo das declarações prestadas pelos Assistentes ou testemunhas objecto de tais Perícias', a tanto se cingindo, afinal, os “actos” e os 'pressupostos' deles, que o Tribunal, salvo o devido respeito, em clara violação do disposto nos artigos 163° e 356°, do CPP, entende poder ter em conta, como forma de fiscalização da Prova Pericial.
24. E entende poder fazê-lo numa dupla vertente:
- por um lado, o Tribunal, entende poder confrontar os Peritos, quer com a transcrição parcelar dos relatos dos Examinados (Vítimas) plasmados nas Perícias, quer, ainda, com o que o Examinado (Vítima ou Testemunha) declarou em audiência de julgamento;
- por outro lado, entende ainda o Tribunal ser-lhe lícito poder vir a confrontar os Examinados 'com facto (ou factos) que dos esclarecimentos do Perito resulte(m) ter(em) sido pressuposto do juízo técnico ou científico emitido pelo Perito'.
25. 'Vigorando em processo penal o princípio da livre apreciação da prova e do livre convencimento do juiz, não será, por via de regra, possível determinar o 'quantum' de convicção que ficou a dever-se ao meio de prova concretamente inquinado. Em maior ou menor medida, este meio de prova contribuiu para uma convicção do juiz que é indivisível. Como refere GRUNWALD, «o juiz adquiriu o saber proibido e é uma evidência que já não pode apagá-lo da sua cabeça» (GRUNWALD, Beweisverbot im Strafverfahren, Juristenzeitung, 1966, p. 500) – (destaque nosso).
(Do Parecer do Prof. Costa Andrade, publicado na C.J., Ano VI, 1981, Tomo I, p. 9)
26. Daí que se entenda não deverem, no sentido em que não podem, ser dirigidas aos Peritos quaisquer perguntas relacionadas com o conjunto dos relatos (declarações) produzidos pelos Examinados, no âmbito das entrevistas que integraram o próprio Exame Pericial, tal como o não podem ser aos Examinados, quando, como Assistentes ou Testemunhas, vierem a ser reinquiridos em audiência.
27. Ao assim ter entendido, e na medida em que, de futuro, o venha a aplicar, o Despacho recorrido violou e violará o disposto nos artigos 163°, n.º 1, 350°, n.ºs 1 e 2, (por remissão) 345°, n.º 3 e 356 n.ºs 1 e 2, todos do CPP, ratificando meio proibido de obtenção de prova – artigo 126°, n.º 2, a), do CPP.
Deve, em consequência, ser revogado o Despacho recorrido, sendo substituído por outro em que, indeferindo-se os requerimentos que lhe estiveram na origem, se proíba a possibilidade de confronto, quer dos Senhores Peritos quer dos assistentes, com os conteúdos dos relatos (declarações) destes últimos, vertidos nos Relatórios Periciais, proibindo-se, concomitantemente, a possibilidade de valoração dos que, entretanto, já foram, ou venham a ser, produzidos».

3 – Esse recurso foi admitido pelo despacho de fls. 40 581.

4 – Os arguidos J. (fls. 1232 a 1235 deste apenso) e C. (fls. 1243 a 1246 deste apenso) e os assistentes (fls. 1240 a 1242 deste apenso) responderam à motivação apresentada pelo Ministério Público.
4.1 – O arguido J. terminou a sua resposta formulando as seguintes conclusões:
1. «Os relatos contidos nos Relatórios Periciais, efectuados no âmbito da entrevista própria do exame pericial, não poderão, pois, ser considerados como declarações prestadas pelos Examinados, sequer em sentido material, e, por consequência, ser o relatório pericial considerado como um verdadeiro Auto de Declarações, ainda que apenas em sentido material, na parte em que se reporta às informações relatadas pelos examinados aos Peritos e que resultam dos respectivos relatórios.
2. Os relatos efectuados pelos examinados no âmbito de Perícias, designadamente de Perícias de Natureza Sexual e de Perícias sobre a Personalidade, e transcritos para os respectivos Relatórios Periciais, não integram o conceito de declarações, designadamente nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 356°, n.ºs 1, al. b), e 2, do Código de Processo Penal.
3. Por consequência, os Relatórios Periciais que contenham relatos de arguido, assistente, testemunha ou parte civil não integram o conceito de autos nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 356º, n.º 1 do Código de Processo Penal.
4. Como tal, o denominado auto – Relatório Pericial – não está abrangido pela proibição contida no artigo 356º, n.º 1, al. b), do C.P.P., disposição que visa tão só impedir a leitura em audiência de discussão e julgamento de autos de instrução ou de inquérito que contenham declarações de assistente, parte civil e testemunha sem que haja acordo de todos os sujeitos processuais, mas que não estende aquela proibição a quaisquer autos de instrução ou inquérito que não contenham declarações do arguido, do assistente, das partes civis ou de testemunhas.
5. Assim, em audiência final podem ser pedidos esclarecimentos aos Senhores Peritos sobre a Perícia que realizaram e sobre o conteúdo integral do respectivo Relatório Pericial, designadamente quanto ao que neste consta como tendo sido relatos efectuados pelos examinados.
Termos e fundamentos por que não pode deixar de improceder a pretensão constante da aliás douta motivação apresentada, com o que se fará justiça».

4.2 – O arguido C. terminou a sua resposta formulando as seguintes conclusões:
A) «A prova apresentada pelo M.P. inclui relatório periciais efectuados no INML, nos quais se sustenta a credibilidade dos assistentes, que se reportam a relatos dos assistentes, que fundam as conclusões tiradas, os quais, todavia, devidamente analisados, comprovam exactamente o contrário das ditas conclusões.
B) Neste contexto, não é possível discutir a força probatória das ditas perícias – e, daí, a credibilidade dos assistentes sem incluir nesse debate os relatos dos assistentes prestados durante as perícias e que serviram para justificar as respectivas conclusões.
C) Deste modo, a leitura do artigo 356° do C.P.P., à luz dos princípios processuais supra referidos, tem de ser feita de forma restritiva, tal como, com limites razoáveis, foi feito pelo despacho recorrido.
D) A leitura do artigo 356º, n.º 1, do C.P.P. no sentido sustentado pelo M.P. na sua motivação de recurso, designadamente no sentido de que os relatos constantes dos relatórios periciais não podem ser tidos em conta durante os esclarecimentos prestados pelos peritos em audiência de julgamento e nos demais termos constantes do despacho recorrido, consubstancia entendimento normativo inconstitucional, por violação dos princípios constitucionais da presunção da inocência, do contraditório e da verdade material e das garantias de defesa consagradas no artigo 32º, n.º 1, da CRP, o que se deixa arguido».

4.3 – Os assistentes terminaram a sua resposta formulando as seguintes conclusões:
«7. Em suma (i) se bem que, nos termos dos artigos 127° e 163° do CPP o tribunal possa tomar conhecimento de afirmações feitas aos peritos pelos examinados e que estes consignem no seu exame pericial (ii) nada permite a sua leitura, como tal, nos termos e para os efeitos do artigo 356° do CPP (iii) sendo igualmente vedado o confronto de tais realidades, em regime de leitura, com autos cuja leitura o artigo 356° do CPP possa permitir.
Nestes termos sustentamos o provimento do recurso do MP, com o adjuvante da argumentação expendida».

5 – Neste tribunal, a sr.ª procuradora-geral-adjunta, quando o processo lhe foi apresentado, emitiu o parecer de fls. 1258.

6 – Foi cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal.

II – FUNDAMENTAÇÃO
A admissibilidade do recurso interposto
7 – Antes de proceder ao exame preliminar, o relator determinou a notificação do Ministério Público, dos mandatários dos assistentes e dos defensores dos arguidos para se pronunciarem, querendo, sobre a recorribilidade do acórdão proferido pelo tribunal colectivo na audiência do dia 25 de Setembro de 2006, atrás transcrito, porquanto se poderia entender que o mesmo não constituía uma verdadeira decisão, mas apenas a definição de um critério que seria utilizado em ulteriores decisões (fls. 1300 e 1301).
O Ministério Público pronunciou-se sobre a questão suscitada sustentando que, embora o acórdão recorrido, numa determinada parte, não materializasse qualquer decisão, o recurso deveria, no restante, ser apreciado e decidido (fls. 1312 a 1314).
Juntou cópia integral da acta da sessão da audiência em que foi proferida a decisão recorrida.
Sobre a mesma questão, os assistentes vieram, a fls. 1348 e 1349, dizer que entendiam que o recurso interposto pelo Ministério Público era admissível uma vez que se constituía caso julgado formal quanto à questão apreciada.
Importa, pois, apreciar, antes de mais, essa questão prévia.
De um ponto de vista formal, o acórdão impugnado, tal como se disse no despacho do relator, surge como uma mera enunciação de critérios a utilizar pelo tribunal para a concreta solução uniforme das questões que, anteriormente e naquele mesmo dia, tinham sido colocadas por alguns dos arguidos. Nessa medida, não traduziria uma verdadeira decisão e, como tal, seria insusceptível de recurso.
Porém, quando interpretado no contexto em que foi proferido, que se percebe perfeitamente depois de ter sido junta a estes autos cópia da acta da sessão da audiência de julgamento realizada no dia 25 de Setembro de 2006, verifica-se que o mesmo consubstanciou uma verdadeira decisão das concretas questões até aí colocadas ao tribunal pelos arguidos nos diferentes requerimentos que nele foram indicados, decisão essa que, de imediato, se veio a materializar nas declarações do perito que as estava a prestar.
Por isso, e sem necessidade de mais aprofundada fundamentação, se considera que não existe qualquer obstáculo à apreciação do recurso interposto pelo Ministério Público.

O momento de subida do recurso
8 – O presente recurso foi admitido pela sr.ª juíza presidente tendo esta determinado que ele subisse imediatamente, invocando, para tanto, o disposto no n.º 2 do art. 407º do CPP, ou seja, que a sua retenção o tornaria absolutamente inútil.
O arguido C., quando respondeu ao parecer da sr.ª procuradora-geral-adjunta colocada junto da 5ª secção deste tribunal, defendeu que este recurso, tal como tem acontecido com muitos outros que têm sido interpostos na mesma fase processual, deveria ter sido admitido com subida diferida, sendo apenas apreciado a final.
Sobre essa questão deveremos, sinteticamente, dizer que, em nosso entender, num caso como este, em que a audiência de julgamento se prolonga por vários meses, em que o recurso pode ser apreciado antes que ela termine e em que a sua eventual procedência, se ele vier a ser apreciado apenas a final, pode implicar a invalidade do acórdão então já proferido, não se pode duvidar da bondade da decisão de ordenar a subida imediata do recurso .
Isto porque a anulação de actos processuais que essa procedência pode provocar não representa apenas uma disfuncionalidade do ponto vista da economia processual, o que já em si não é de subestimar, mas repercute-se de forma indelével na confiança que os cidadãos depositam nas instituições judiciais e na sua aptidão para responder ao fenómeno criminal e, por essa via, no próprio Estado de Direito.
Por isso, entendemos que o recurso foi correctamente admitido com subida imediata, nada justificando a alteração do decidido a esse respeito na 1ª instância.

A introdução da prova no julgamento
9 – A audiência de julgamento de um processo penal democrático, como momento paradigmático de materialização dos princípios da publicidade, contraditório, imediação e oralidade, deve, no nosso modo de ver, permitir tanto a frutuosa perseguição e esclarecimento dos crimes como o êxito da defesa contra uma qualquer suspeita infundada do seu cometimento .
Porque aqueles princípios, mais do que garantias de defesa, são instrumentos que conduzem à descoberta da verdade , na qual se tem de fundar a realização da justiça, só podem, por regra, valer em julgamento, «nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal» , as provas que tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência (artigo 355º, n.º 1, do Código de Processo Penal).
Excepcionalmente, nos casos expressamente admitidos pela lei (artigos 355º, n.º 2, 356º e 357º), podem ser valoradas provas antecipadas ou pré-constituídas desde que as mesmas sejam introduzidas no debate através da sua leitura e, por essa via, sejam objecto de contraditório .
O nosso Código de Processo Penal, se bem que deixe por resolver diversas questões , delimita, com suficiente clareza, os casos em que essa leitura é admissível.
Entre as leituras que expressamente admite, contam-se as das provas contidas em actos processuais relativos às fases preliminares que «não contenham declarações do arguido, do assistente, das partes civis ou de testemunhas» [alínea b) do n.º 1 do artigo 356º].
Um desses casos é, sem margem para dúvidas, o do relatório pericial .
Não se pode, por isso, deixar de concluir que os relatórios das perícias elaborados podem ser lidos na audiência.

11 – A contribuição do perito para «a percepção ou apreciação dos factos » que constituem o objecto da perícia não se esgota porém, ao contrário do que comummente acontece, na possibilidade de o relatório por ele elaborado ser lido na audiência.
Os conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos devem, em regra, ser transmitidos ao tribunal através da prestação de declarações (artigo 350º, n.º 1), no decorrer das quais o perito também pode prestar esclarecimentos sobre o conteúdo do relatório oportunamente elaborado [artigo 158º, n.º 1, alínea a) do CPP]. Mas as declarações não se esgotam nesses esclarecimentos.
Nessa ocasião o perito, para além de dar «explicações, maiores esclarecimentos e mais amplas justificações » das respostas contidas no relatório, pode perfeitamente pronunciar-se sobre circunstâncias importantes que não conhecia quando efectuou a perícia para se saber se, em face delas, o seu parecer se mantém ou deve, e em que medida, ser alterado.

12 – No caso dos autos, uma vez que tinha sido pedido ao perito para avaliar a credibilidade das declarações e ele se pronunciou tendo por base uma determinada narração dos acontecimentos feita perante ele pelos examinados, não pode o tribunal, em caso de desconformidade dessa narração com as declarações prestadas na audiência pela mesma pessoa, deixar de colocar, ou permitir que seja colocada, a esse mesmo perito essa questão tanto mais que a perícia é «uma declaração técnica sobre um elemento de prova» . Se o elemento de prova se alterou isso não pode ser ignorado pelo tribunal e pelo próprio perito.
Só assim o seu conhecimento científico propicia uma melhor apreciação dos factos que constituem o objecto do processo .
E se as perícias foram, como se disse, realizadas para «avaliar a credibilidade das alegadas vítimas » não se pode também obstar a que os examinados expliquem a divergência, na medida em que isso contribua para se atingir o fim que com a perícia se pretendia alcançar .

A valoração da prova pelo tribunal
13 – A admissibilidade da leitura integral do relatório pericial na audiência de julgamento, quando ela se verificar, os esclarecimentos sobre ele prestados pelo perito e as declarações dos visados sobre o que narraram ao perito não implicam, no entanto, a susceptibilidade da valoração desses elementos de prova em toda a sua extensão para efeitos de formação da convicção do tribunal uma vez que a isso obsta, desde logo, o disposto no n.º 4 do artigo 156º do Código de Processo Penal , disposição que estabelece uma clara proibição de prova.
Por isso se disse no acórdão proferido em 18 de Janeiro de 2006 (recurso n.º 7071/05) que as descrições dos factos feitas pelos visados perante os peritos que realizaram as perícias médico-legal e psicológica só podiam ser atendidas no âmbito de cada uma dessas perícias para aferir da sua congruência e não como elementos autónomos valoráveis para a formação da convicção do tribunal .
O mesmo se diz agora quanto aos esclarecimentos dos peritos e as declarações dos visados sobre o que narraram aos peritos.
Os relatos dos examinados transcritos nos relatórios das perícias, os esclarecimentos sobre eles prestados pelos peritos e as declarações dos visados sobre essa matéria não podem constituir «prova positiva» dos factos.
A isso obsta o disposto nos artigos 355º, 356º e 156º, n.º 4, do Código de Processo Penal.

III – DISPOSITIVO
Face ao exposto, acordam os juízes da 3ª secção deste Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público.
Sem custas.



Lisboa, 21 de Março de 2007

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(Carlos Rodrigues de Almeida)

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(Horácio Telo Lucas)

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(Pedro Mourão)