Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa
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    Jurisprudência da Relação Criminal
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 - ACRL de 07-03-2007   concurso. falsificação de documento. uso de documento falsificado. alteração não substancial dos factos. alteração da qualificação jurídica. prova produzida em audiência
I – A expressão incluída pelo legislador na parte final da alínea c) do n.º 1 do artigo 256º do Código Penal é uma regra de concurso que evita a punição simultânea da falsificação e do uso do documento falsificado. Não obsta, de maneira nenhuma, à punição do uso quando, por qualquer motivo, a falsificação não for punível.
II – A alteração não substancial dos factos (358º, n.º 1) e a alteração da qualificação jurídica (358º, n.º 3) têm necessariamente de resultar da prova produzida na audiência de julgamento e não de qualquer reapreciação dos indícios recolhidos nas fases preliminares do processo.
Proc. 2008/07 3ª Secção
Desembargadores:  Carlos Almeida - Telo Lucas - Pedro Mourão -
Sumário elaborado por Carlos Almeida (Des.)
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Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa




I – RELATÓRIO
1 – No dia 11 de Setembro de 2006, o Ministério Público formulou no processo n.º 127/04.0ZFLSB, que se encontrava na fase de julgamento a aguardar a localização do arguido A. anteriormente declarado contumaz (fls. 85), o seguinte requerimento (fls. 102 e 103):
«Vem o arguido acusado de dois crimes de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256° n.º 1 al. c) e n.º 3 do CP.
Verifica-se pois que na acusação proferida contra o arguido se refere entre outros factos que os documentos falsos tinham aposta a fotografia do arguido, tal facto leva-nos de imediato a concluir que o mesmo forneceu essas fotografias a quem procedeu à feitura de tais documentos, para além da possível contribuição monetária que entregou para esse efeito.
Assim, somos de concluir que o arguido para além do uso do documentos falsos é também co-autor da falsificação, pois esta ocorre a solicitação, por vontade ou por decisão com origem na pessoa a que se pretende que o documento respeite, ou seja o arguido prestou a quem falsificou uma ajuda imprescindível à feitura do documento.
Se atendermos à tipologia própria deste tipo de crime, paralelamente à falsificação em si do documento existe o uso posterior à mesma, e sendo o arguido co-autor do crime de falsificação de documentos p. p. pelo art. 256°, n.º 1 al. a) do CP deveria ter sido acusado apenas deste ilícito penal e não de crimes de uso p. p. pelo art. 256°, n.º 1, al. c) do mesmo diploma legal.
Certo é que a ser acusado de dois crime de falsificação p. p. pelo art. 256°, n.º 1 al. a) do CP e tendo usado esses documentos fica nesta disposição legal consumida a sua actuação.
Devendo operar-se uma alteração de qualificação que se expôs, o que se p. nos termos do art. 358°, n.º 1 do CPP.
Assim e, em conclusão, não obstante o despacho que recebeu a acusação, doutamente se considerando os factos que integram a acusação e sua recondução normativa, constitutivos do objecto do processo, ao reconhecer genericamente de questões prévias e incidentais, que não reconheceu existirem, recebeu com a qualificação jurídica ora posta em causa. Por isso recebeu a acusação naqueles precisos termos.
Porém, tal despacho não preclude a possibilidade de a posteriori serem conhecidas concretamente as questões prévias ou incidentais de que conheceu genericamente, que ainda não tenham sido suscitadas especificamente e decididas (cfr. Ac. do STJ, n.º 2/95 de 16 de Maio de 1995, Acs. RC de 08-06-94 e RE de 01-02-94).
Parece-nos que nada obsta a que esta questão seja agora conhecida, por não carecer de produção de prova.
Em síntese, e por todo o exposto, sem necessidade de mais longo excurso, temos que o crime é o apontado e não o referido naqueles despachos, devendo por isso em relação a ele operar-se a alteração de qualificação [não substancial] que se expôs, o que se promove, nos termos do art. 358° n.º 1 do Código de Processo Penal, ex vi do seu n.º 3, ora por maioria de razão desde já aplicável.
Naquela sequência, atendendo a que tal crime não faz parte do elenco de crimes para que os tribunais penais portugueses tenham competência internacional, quando ele ocorra no estrangeiro, nem se enxergando alguma vez tenha ocorrido transmissão de processo de Espanha, ou denúncia internacional desse crime a Portugal, que aceitas tenham sido.
Promove-se ainda seja excepcionada com conclusão negativa a competência internacional dos tribunais penais portugueses e deste Tribunal em particular e, em consequência, nos termos dos arts. 30°, n.º 1, 22°, n.º 1 do Código de Processo Penal este em cotejo com o disposto no art. 5° do Código Penal, este a contrario, sejam os autos mandados arquivar (art. 33°, n.º 4 do CPP)».

Apreciando o requerido, a sr.ª juíza proferiu, em 9 de Outubro de 2006, o despacho que se transcreve (fls. 105):
«Veio Ministério Público requerer que o Tribunal declare a ocorrência de uma 'alteração não substancial dos factos descritos na acusação', ao abrigo do disposto no art. 358°, n.º 1 do Código de Processo Penal.
Mais requer a D. Magistrada que os autos sejam arquivados, com base na incompetência internacional do Tribunal, por resultar da referida 'alteração' que os factos em julgamento terão ocorrido fora do território nacional.
Argumenta o Ministério Público que o facto de se encontrar aposta no documento objecto do processo uma fotografia do arguido (facto descrito no despacho de acusação), nos leva de imediato a concluir que terá sido o arguido a fornecê-la, e ainda que essa colaboração para a adulteração do documento terá ocorrido fora do território nacional.
Cumpre apreciar:
Salvo o devido respeito por opinião contrária não sufragamos a opinião agora perfilhada pelo Ministério Público, não se compreendendo de onde se retiram, neste momento, os 'factos' que alteram os constantes na acusação pública, porquanto, proferido despacho de acusação, não tendo decorrido a fase facultativa da instrução e na ausência de documentos juntos aos autos em fase posterior à supra referida, apenas em sede de audiência de julgamento poderão ser carreados para os autos novos factos, estes sujeitos às regras do artigos 358° e 359° do Código de Processo Penal.
Por outro, o art. 358° do Código de Processo Penal encontra-se inserido na fase da audiência de julgamento, fase destinada à apreciação da admissibilidade e respectivas consequências de novos factos que resultem da prova nela produzida.
Por todo o exposto, indefiro o requerido, sem prejuízo da apreciação de eventuais novos factos que surjam no decurso da produção de prova em sede de audiência de julgamento e aplicação das respectivas consequências».

2 – O Ministério Público interpôs recurso desse despacho (fls. 108 a 118).
A motivação apresentada termina com a formulação das seguintes conclusões:
1. «O despacho que indeferiu a alteração de qualificação [não substancial] que se expôs nos termos do artigo 358° n.º1 do Código de Processo Penal, ex vi do seu n.º 3, ora por maioria de razão desde já aplicável, violou expressamente o artigo 311º, 30º, n.º 1, 22º, n.º 1 33º, n.º 4 do Código de Processo Penal este em cotejo com o disposto no artigo 5º do Código Penal, {este a contrario}.
2. Assim e, não obstante o despacho que recebeu a acusação, doutamente se considerando os factos que a integram e sua recondução normativa, constitutivos do objecto do processo, ao reconhecer genericamente de questões prévias e incidentais, que não reconheceu existirem, recebeu com a qualificação jurídica ora posta em causa. Por isso, foi recebida a acusação naqueles precisos termos.
3. Porém, considera-se que tal despacho não preclude a possibilidade de a posteriori serem conhecidas concretamente as questões prévias ou incidentais de que conheceu genericamente, que ainda não tenham sido suscitadas especificamente e decididas.
4. Parece-nos que nada obstava a que esta questão fosse conhecida, previamente, por não carecer de produção de prova.
5. Em síntese, e por todo o exposto, sem necessidade de mais longo excurso, temos que o crime é o apontado {crime de falsificação de documentos p. p. pelo artigo 256º, n.º 1 al. a) do CP} e não o referido naqueles despachos, devendo por isso em relação a ele operar-se a alteração de qualificação [não substancial] que se expôs nos termos do artigo 358° n.º 1 do Código de Processo Penal, ex vi do seu n.º 3, ora por maioria de razão desde já aplicável.
6. Naquela sequência, atendendo a que tal crime não faz parte do elenco de crimes para que os tribunais penais portugueses tenham competência internacional, quando ele ocorra no estrangeiro, sendo certo que a falsificação ocorreu fora do espaço comunitário europeu e não se conhecendo qualquer convenção ou tratado que obrigue o Estado Português a conhecer deste facto.
7. Considera-se, assim, que deve ser excepcionada com conclusão negativa a competência internacional dos tribunais penais portugueses e deste tribunal em particular e, em consequência, nos termos dos artigos 30º, n.º 1, 22º, n.º 1 do Código de Processo Penal este em cotejo com o disposto no artigo 5º do Código Penal, este a contrario, e devendo os autos serem arquivados (artigo 33º, n.º 4 do CPP).
8. Deve, assim, o despacho recorrido ser revogado e ser substituído por outro que apreciando estas questões prévias (alteração não substancial) determine o arquivamento dos autos».

3 – Esse recurso foi admitido pelo despacho de fls. 120, posteriormente alterado, quanto ao momento de subida, na sequência de despacho da sr.ª Vice-Presidente deste Tribunal da Relação (fls. 110 a 112).

4 – Não foi apresentada qualquer resposta à motivação do Ministério Público.

5 – Neste tribunal, a sr.ª procuradora-geral-adjunta, quando o processo lhe foi apresentado, emitiu o parecer de fls. 256 a 264.

6 – Foi cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal.

II – FUNDAMENTAÇÃO
7 – Uma vez que o recurso interposto pelo Ministério Público é manifestamente improcedente, o tribunal limitar-se-á, nos termos dos n.°s 1 e 3 do artigo 420° do Código de Processo Penal, a especificar sumariamente os fundamentos da decisão.

8 – Pretendia a recorrente que o tribunal de 1ª instância, na fase de julgamento, mas antes de aberta a audiência e produzida a prova, tivesse alterado os factos e a qualificação jurídica constantes da acusação oportunamente deduzida e, com base numa aparente “nova acusação” a que, desta forma, se chegaria, arquivasse o processo por a lei penal portuguesa não ser aplicável ao novo crime.
Não tendo alcançado esse desiderato, interpôs recurso do despacho então proferido.
Porém, o procedimento que a sr.ª magistrada do Ministério Público pretendia que fosse adoptado pelo tribunal é completamente inadmissível num processo penal de estrutura acusatória (artigo 32º, n.º 5, da Constituição) regido pelo princípio da legalidade (artigo 219º, n.º 1, da Constituição) em que ao Ministério Público não é conferida a possibilidade de retirar a acusação antes deduzida.
De facto, tendo o Ministério Público competente considerado, em devido tempo, que o despacho a proferir deveria ser o de acusação, nada permitia que nesta fase o mesmo ou um outro magistrado, por vias ínvias, o substituísse ou fizesse substituir por um despacho de arquivamento.
A posição do Ministério Público foi tomada oportunamente cabendo-lhe apenas nesta fase sustentá-la efectivamente no julgamento [artigo 53º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Penal].
De resto, os indícios recolhidos no inquérito apenas podem, como regra, ser utilizados para a prolação do despacho final dessa fase processual e não para alicerçar qualquer decisão judicial de mérito em fase de julgamento.
Os institutos da alteração não substancial dos factos (358º, n.º 1) e da alteração da qualificação jurídica (358º, n.º 3) apenas se aplicam, como do texto da primeira daquelas disposições expressamente decorre, se, no decurso da audiência, se verificar uma dessas alterações. Por isso, elas têm necessariamente de resultar da prova aí produzida e não de qualquer reapreciação dos indícios recolhidos nas fases preliminares do processo.
Pelo sumariamente exposto se entende que o recurso interposto pelo Ministério Público não pode deixar de ser rejeitado.

9 – Não se pode deixar ainda de dizer que o enquadramento jurídico substantivo que subjaz à pretensão expressa pela recorrente não é, de todo, aquele que temos por vigente em Portugal, embora a recorrente parta de considerações, que compartilhamos, quanto à comparticipação criminosa.
De facto, a expressão incluída pelo legislador na parte final da alínea c) do n.º 1 do artigo 256º do Código Penal não traduz, em nosso entender, mais do que uma regra de concurso, que pretende evitar a punição simultânea pela falsificação e pelo uso do documento falsificado. Não obsta, de maneira nenhuma, à punição do uso quando, por qualquer motivo, a falsificação não seja punível.
Uma outra interpretação conduziria a uma não punição completamente injustificável do uso de documentos falsos não só em casos, como o presente, em que à falsificação não é aplicável a lei penal portuguesa, mas também naqueles em que a falsificação foi cometida quando o agente era inimputável ou em que o respectivo procedimento criminal se encontra extinto, nomeadamente, por prescrição.

III – DISPOSITIVO
Face ao exposto, acordam os juízes da 3ª secção deste Tribunal da Relação em rejeitar o recurso interposto pelo Ministério Público do despacho proferido no processo n.º 127/04.0ZFLSB em 9 de Outubro de 2006.



Lisboa, 7 de Março de 2007

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(Carlos Rodrigues de Almeida)

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(Horácio Telo Lucas)

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(Pedro Mourão)